Vacilos na Diferença Diário de Supervisão (Março/94)
por Rafael Tassinari
"Um mergulho no vacilo – no susto. É um sábado pela manhã. Estamos no início do ano, é verão e o sol quente já promete um dia de muito calor. Estamos todos, eu mais 26 alunos, num hospital psiquiátrico, mantido por instituição católica e conveniado ao INAMPS, na zona oeste da cidade de São Paulo. É a primeira aula no hospital e, para a maioria desses alunos, a primeira vez que entram num hospital psiquiátrico. A proposta da aula de hoje é um primeiro contato com toda a área física do hospital, com os funcionários, suas atribuições e com os pacientes internados.
Entramos na recepção e nos consultórios médicos. Existe uma certa animosidade no ar. Alguns alunos perguntam:
– Quem mantém o hospital? – Quantos pacientes estão internados? – Quantos médicos prestam assistência?
Tudo bem compassado. Uma pergunta de cada vez.
Vamos andando, apresentando os funcionários para os alunos e conversando. Enquanto alguns olham aqui, perguntam lá, outros vão xeretando outras salas e iniciando um contacto com o novo lugar. O grupo caminha… Quando adentramos o primeiro pátio interno com pacientes (que dá acesso às enfermarias) o grupo de alunos diminui o passo – sutilmente o ritmo diminui; os alunos se aconchegam, alguns se dão os braços – muda o clima.
Observo.
Primeiro um aglomerado: O que será isso? Na minha fantasia um recorte. Vejo tudo em câmara lenta, como se uma poeira espessa envolvesse o grupo, agora já uma massa compacta que se move modorrenta, plasmada em si mesma, encistada. Aproximo-me do grupo de alunos. Alguns se acercam, andam colados a mim, me resvalam. Sinto quase que o abraço de um aluno. Enchem-me de perguntas, agora uma atrás da outra:
– Por que os pacientes estão aqui? – Como é o dia-a-dia deles? – Não me parece ter ninguém tomando conta. Eles ficam assim largados? -Eles estão medicados? Qual o remédio?
Entre nós, enclausurados, e os pacientes que livremente circulam pelo pátio, a nuvem agora me é clara – uma rede de tensão que se instala – uma cortina de vidro, de fumaça que embaça e protege, denunciando a distância que faz esse contacto.
De repente, um olhar, um grito, um gesto de um dos pacientes, rasga:
– Gente, é visita!
E no desencadeamento de uma reação em cascata, a maioria dos pacientes nos olham, nos chamam, vêm até nós, falam, brincam e cantam. Rompem a distância. Invadem o grupo de alunos, implodindo, pulverizando. Tudo se atomiza, se agencia. Alguns trazem flores.Outros cospem na cara. Mas a maioria quer mesmo é conversa e muitas vezes conversa fiada. Cria-se um alvoroço. Os alunos me olham, a maioria atônitos, buscam em mim uma referência. Perguntam para mim se podem responder as perguntas dos pacientes! E … como responder?!
– O que é que eu faço? Me pergunta cada semblante.
Em alguns a angústia é tanta, que estampada, faz saltar os olhos que me penetram, perfuram.
Já não dá mais para continuar. Eis que meu termômetro me fala – vamos bater em retirada …."