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S. Freud versus T. More

Uma criança recém-nascida ainda não distingue o seu eu do mundo externo, ou seja, forma um todo com ele. Encontra-se sob o império do princípio do nirvana, configurando-se uma situação de plenitude, de gratificação absoluta, que, embora sem discriminação ou consciência, permanecerá gravada na essência do indivíduo. Essa experiência primeva seria a raiz da intuição de um paraíso perdido a ser resgatado. Seria o locus criador de utopias (1), tais como o Eldorado, as diversas Ilhas da Fantasia, a Terra Prometida, em suma, de um não-lugar imaginário, onde o homem viva em permanente abundância, no seio da Mãe Natureza. Seria a experiência original, responsável pela nostalgia do ser, que o instiga a retornar aos primórdios de sua criação. É o que se lê no Álbum de Família de Nélson Rodrigues: “O céu, não depois da morte; o céu, antes do nascimento – foi teu útero…” E prossegue: “Eu acho que o homem não devia sair nunca do útero materno. Devia ficar lá, toda a vida, encolhidinho, de cabeça para baixo, ou para cima, de nádega, não sei.”
Freud chamou de Isso (id) à forma primitiva de funcionamento da psique, em que o desejo coincide com sua gratificação. Isso – pró-nome, im-pessoal ­aquilo a partir do qual será denominado, fundamento impessoal de uma pessoa (2).

Pela proximidade do mundo externo, uma parte do Isso transforma-se em eu. O bebê percebe, por exemplo, que o seio da mãe pertence ao mundo exterior, devido às sensações de desprazer que sua ausência lhe impõe.

O eu emerge da falta do outro. Entretanto, buscará, doravante, preencher essa falta.

Mas a dor que nos desola,

A mágoa de um não ser dois ­

Nada explica nem consola. (3)

No início de seu desenvolvimento, o eu tende a isolar de si tudo que pode tornar-se fonte de desprazer, a lançá-Io para fora, criando um puro eu em busca de prazer, que sofre então o confronto de um exterior estranho e ameaçador. Dá-se, assim, o primeiro passo no sentido da introdução do princípio de realidade(4).

Tal princípio caracteriza-se pela oposição entre prazer e desprazer, entre eu e não-eu e pela diferenciação do impulso primordial em dois componentes: o sexual ou impulso de vida, que está a serviço do Eros e o destrutivo ou impulso de morte, a serviço de Thânatos.

No continuum entre esses dois opostos debate-se a civilização humana. Que o homem possa, todavia, resgatar a origem comum de ambos, que está para além do bem e do mal. Segundo a reflexão de Nietzsche: "Observou-se mal a vida, se ainda não se descobriu a mão que, piedosamente, mata (5)."

O Isso mantém-se como fonte de impulso e reivindica a sua descarga, o que para nós corresponde à sensação de prazer. O Isso, regido pelo princípio do prazer, nada sabe, somente vive. Indiferente às categorias do antes e do depois, é duração em ato. É decurso, porém sem projeção.

Em contrapartida, a relação com o mundo criou o princípio de realidade, impondo, através da falta, um retardo na descarga do impulso, o que por nós é sentido como desprazer. É tal retardo que permite a construção da civilização. Por meio dele, o homem biológico adquire sua natureza cultural, torna-se um ser social, dotado de uma língua, e da capacidade de pensar e fazer escolhas. Ser-em-si adquire o caráter de ser-para-os-outros.

Como vemos, a civilização é construída sobre uma renúncia da gratificação do desejo, em outras palavras, sobre a repressão, que envolve tanto os componentes eróticos como os agressivos do impulso. A situação de total desamparo do ser humano ao nascer facilita seu processo civilizatório, isto porque a tarefa de evitar o sofrimento coloca obtenção de prazer em segundo plano. Deste modo, a fim de não perder a proteção dos pais, o eu infantil reprime partes de si para o Isso e busca conformar-se ao desejo alheio. Woodv Allen, em seu inteligente filme "Zelig" (pelo amor dos deuses, se alguém tiver uma cópia desta preciosidade, por favor, mande-me um e-mail), mostra, de forma caricatural, a que ponto chega a conformação do eu ao outro.

Nas relações com o outro – inicialmente representado pela mãe e pelas primeiras instituições sociais como família e escola – o eu internaliza um sistema de leis e valores, componentes do que Freud denominou de sobre-eu (superego), graças ao qual, eu me tomo como objeto a partir da perspectiva do outro. É este outro que me diz quem sou pela auto­-observação, o que devo fazer pela consciência moral, e o que devo ser pelo ideal do eu (6).

A partir de hoje pende-me ao pescoço

De um fio de cabelo o relógio das horas:

A partir de hoje cessa o curso dos astros,

E o sol, e o cantar do galo e as sombras;

E o que o tempo jamais me anunciou

É agora surdo e mudo e cego: ­

Toda a natureza agora se me cala

Ao tique-taque da lei e do relógio (7).

A repressão é antes de tudo orgânica. Rejeitamos em nós o animal. Rejeitamos o fato de entre urina e fezes nascermos. Não é sem razão que a beleza, a limpeza e a ordem ocupem destacado lugar dentre as exigências da civilização. Nossa atividade sexual faz-se acompanhar por certa repugnância. É normatizada pela civilização, que proíbe os desvios como perversões (8). A subversão desses e de outros valores culturais permeia a obra de escritores chamados malditos, como Sade, Baudelaire e Nélson Rodrigues. Chico Buarque em "Geni e o Zepelin", canta uma perversa e marginalizada, que salva da destruição uma comunidade, graças a favores sexuais prestados ao comandante invasor (segundo o próprio Chico ele usou essa imagem como valor simbólico). Erasmo Carlos, outro compositor, em momento de inconformismo, já perguntara: "Por que é que tudo o que eu gosto é imoral, é ilegal, ou engorda?" Gabriela, Cravo e Canela de Jorge Amado aponta para o esforço – nesse caso inútil – da civilização em domar um Eros primitivo.

Em O Lobo da Estepe de Hermann Hess, o personagem Harry debate-se num confronto de vida e de morte com seu "lobo". Nesse resgate do natural, embora sob forma poética, encontram-se, ainda, os singelos versos de Fernando Pessoa:

Prefiro rosas, meu amor, à pátria

E antes magnólias amo

Que a glória e a virtude (9),

De que maneira lida a civilização com o componente destrutivo do impulso?

Freud (10) assinala que em conseqüência da mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada sofre permanente ameaça de desintegração. Na base de toda relação afetiva, encontrar-se-ia a agressividade. No entanto, diz ele, será sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras para receberem as manifestações do seu ódio. Neste caso, a união entre indivíduos dá-se principalmente pelo processo de identificação, que remonta às origens do desenvolvimento do eu, quando o bebê colocava no exterior as fontes de desprazer e no interior as, de prazer. O que outrora foi um mecanismo individual vigora então na formação do grupo que se caracteriza não somente por certa imaturidade, mas por uma monotonia também, uma espécie de pobreza psicológica. Não se aceita o diferente, pois que se define como inimigo: Fora com os estrangeiros! Caça às prostitutas e travestis! Que se enclausurem os loucos!

Podemos, inclusive, inferir sobre o grau de maturidade de uma civilização, a partir do tratamento que nela se confere às minorias. Porém, nunca abandonamos inteiramente os estágios passados do nosso desenvolvimento. Insistimos em retirar da realidade tudo o que nos desagrada ou nos ameaça. Simão Bacamarte, o ilustre alienista de Machado de Assis, descobria enfermos por toda a Itaguaí e esteve para confinar a população inteira no hospício da Casa Verde, até se dar conta do absurdo de sua empresa. Colocou então em liberdade todos os internos e "curvou a cabeça, juntamente alegre e triste, e ainda mais alegre do que triste. Ato contínuo, recolheu-se à Casa Verde (11)."

Freud vai ressaltar ainda que a parcela de agressividade do indivíduo que não encontrou expressão, ou seja, não pôde dirigir-se para fora, é internalizada e assumida pelo sobre-eu. A tensão criada entre o severo sobre-eu e o eu é vivida pelo homem civilizado como sentimento de culpa e se expressa como necessidade de punição. E uma vez que o eu não escapa da observação do sobre-eu, sente-se culpado não só quando faz realmente algo considerado mau, mas também quando identifica em si a intenção de fazê-Io (12).

Reza corretamente o cristianismo ao dizer que o eu peca por pensamentos e palavras, atos e omissões, por sua culpa, sua culpa, sua máxima culpa. Diante do infortúnio, o eu apela para o sobre-eu, reconhece sua culpa, eleva as exigências de sua consciência, impõe-se abstinência e se castiga com penitências. Toda essa temática se revela com arte e mestria em O Crime e Castigo de Dostoiévski.

Verifica-se de que maneira uma ameaça de infelicidade externa de outrora – perda de amor dos pais ou autoridade externa – foi permutada por uma permanente infelicidade interna, pela tensão do sentimento de culpa (13). Grande parte desse sentimento não é percebida como tal e aparece como uma espécie de mal-estar.

Esta velha angústia,

Esta angústia que trago há séculos em mim

Transbordou da vasilha,

Em lágrimas, em grandes imaginações,

Em sonhos em estilo de pesadelo sem terror,

Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.

Mal sei como conduzir-me na vida

Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!

Se ao menos endoidecesse deveras!

Mas não: é este estar entre,

Este quase

Este poder ser que…

Isto (14).

Diante de tantos sacrifícios que a civilização impõe, não somente à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor por qual motivo lhe é tão difícil ser feliz na civilização. Via repressão de tendências impulsivas, o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança (15). Como resultado da repressão, os elementos libidinais transformam-se em sintomas, e os componentes agressivos, em sentimento de culpa. E Freud acrescenta que mediante os esforços do eu para obedecer simultaneamente a três amos – o mundo externo, o isso e o sobre-eu – não constitui surpresa sua personificação como um ser à parte. Justamente esta parte mais servil se apresenta como se fosse todo o sujeito. Cumpre ao eu deixar de ser, nessas relações, mera crosta endurecida. Cumpre recuperar sua origem (16).

Vimos que o sujeito encontra-se mediado entre si e si mesmo por uma distância que a cultura abriu no seu interior. Em outras palavras: a cultura o exilou no seio do seu próprio ser, para que pudesse ser sujeito. Introduziu no que era próprio o alheio, o outro.

A quem como a ti amei eu, ó sombra amada!

Atraí-te a mim, pra dentro de mim – e desde então

quase me fiz eu sombra, e corpo tu (17).

Reconhecer que este ser está no começo do eu, é fundamentar toda relação possível com a realidade. Trata-se de buscar a origem externa dessa distância interior, o que significa, para o sujeito, a origem e o sentido do seu cultural.

A distância interior que permite ao eu tomar a si mesmo como objeto, revela que o eu não é todo o sujeito e que há sempre um excedente de si mesmo na própria individualidade. E tal excedente que a arte, por exemplo, dá à luz. O artista trafega entre o Isso e o eu. Sua obra são pontes que ele constrói entre o inconsciente e o consciente. Também nos sonhos, nos lapsos de linguagem e na fantasia, expressa-se esse excedente de eu.

A fantasia é, assim, uma atividade que mantém elevado grau de liberdade, em relação ao princípio de realidade, permanecendo regida pelo princípio do prazer, ao preço de tornar-se impotente, inconseqüente e irrealista. Por força da imaginação, visiona a reconciliação do indivíduo com o todo, do desejo com a realização, da felicidade com a razão. Somente na utopia essa harmonia é possível, dita o princípio da realidade, mas a fantasia insiste em tornar-se real, em que o conhecimento está subentendido na ilusão (19).

Grande parte das descobertas científicas deve-se a homens que ousaram imaginar uma ordem diferente para os fatos e se empenharam na sua verificação. A relegação de possibilidades reais para a terra de ninguém da utopia constitui, por si só, um elemento essencial da ideologia do princípio de realidade estabelecido.

Ao voltar-se para o terreno das possibilidades, o eu experimenta um renascimento, onde, aceitando o risco de não-ser, abre-se ao desenvolvimento da diferença do outro. Todavia, para obter uma verdade qualquer sobre si é necessário que eu passe pelo outro. Isto para que eu veja o que o outro em mim não pôde ver: aquele excedente, aquilo que precisamente baniu de meu Ser como invisível e insensível. Nesse renascimento, o eu abdica as promessas de segurança e de consolo apresentadas pelo sobre-eu, para lançar-se em sua total e absoluta solidão.

Fernando Pessoa o sabia: "Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido". Ou, como diz a canção de Ivan Lins (que nós perdemos para os USA), na poesia de Vitor Martins:

Começar de novo e contar comigo,

vai valer a pena ter amanhecido,

sem as tuas garras

sempre tão seguras,

sem o teu fantasma,

sem tua moldura…

Não mais encontrando sentido no medo do sobre-eu, que estava no fundo de todo relacionamento, o eu perde o medo do outro. Para sobreviver, eu não mais preciso ser como o outro, nem corresponder ao seu desejo. Eu, deixa de ser objeto – ser-para-os-outros – e conquista a condição de sujeito – ser-para-si. Na constante criação específica do ser para si, nos diz Sartre funda-­se a liberdade. Para mim, sou o absoluto de minha liberdade e é isso que o outro me nega, fixando-me (20).

O próximo não gosto de o ter próximo:

Lá pra o alto e bem pra longe!

De outro modo, como seria ele a minha estrela? (21)

Instaura-se um sujeito criador, pois cria continuamente a si próprio, capaz de nomear, pois advém da autonomia do ser. Realiza-se, desse modo, a utopia de uma sociedade humana, que se define por um duplo laço – somente existe por seres independentes, mas essencialmente unidos ao grupo.

Referências bibliográficas

  • 1. MORE, T – Utopia. Londres: Peguin Classics, 2003.
  • 2. ROZITCHNER L – Freud y los Limites del Individualismo Burgués. Buenos Aires: Siglo
  • 3. Veintiuno, 1972, p. 79.
  • 4. PESSOA F ­- Poesias Coligidas. Inéditas. In: ____. Obra Poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1974, p. 519.
  • 5. FREUD S – O Mal-Estar na Civilização. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 85.
  • 6.NIETZSCHE F – Além do Bem e do Mal. São Paulo: Hemus, p. 88, s/d.
  • 7. ROZITCHNER L – (1972) opus cit., p. 63.
  • 8. NIETZSCHE F – Contra as Leis. In: ____. Poemas. Coimbra, Centelha, 1986, p. 147.
  • 9. FREUD S – (1974) opus cit., pp. 125-127.
  • 10PESSOA F – Odes de Ricardo Reis. In: ____. opus cit. (1974), p. 269.
  • 11. FREUD S – opus cit. (1974), pp. 134-136.
  • 12. ASSIS M – O Alienista. In: Machado de Assis. 6ª ed. São Paulo: Global, 1991, p. 158.
  • 13. FREUD S­ – opus cit. (1974), pp. 146-147.
  • 14. FREUD S – opus cit. (1974), p. 151.
  • 15. PESSOA F – Ficções do Interlúdio. Poesias de Álvaro de Campos. In: opus cit. (1974), p. 390.
  • 16. FREUD S – opus cit. (1974), p. 137.
  • 17. ROZITCHNER L – opus cit. (1972), pp. 38.53.
  • 18. NIETZSCHE F – Ao Ideal. In: opus cit. (1986), p. 191.
  • 19. ROZITCHNER L – opus cit. (1972), pp. 38-53.
  • 20. MARCUSE H – Eros e Civilização. 6ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 132-145.
  • 21. SARTRE JP & VIRGíLlO F – O Existencialismo é um Humanismo. Lisboa: Martins Fontes, 1978, p. 141.
  • 22. NIETZSCHE F – O Próximo. In: ____. opus cit. (1986), p. 139.

PS: Escrevi esse artigo sob a tonalidade de meu 2º divórcio.

 

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