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Psicoterapia e Neurociências

Por Julio Peres

Vários neurocientistas chamam atenção ao equívoco persistente: “Se as doenças forem ‘mentais’ deve-se tratar a mente com Psicoterapia, mas se elas forem físicas ou ‘cerebrais’, deve-se usar tratamentos físicos que afetem o cérebro, como medicamentos”. Uma nova geração de profissionais da saúde mental aos poucos corrige com embasamento neurocientífico tal lapso de fragmentação, demonstrando que a cognição superpõe-se ao cérebro, modificando a dinâmica funcional do mesmo. A Neurociência, com sua abordagem integrativa, é relativamente recente.

Surgiu no final dos anos 1970 da necessidade de convergir contribuições de diversas áreas da pesquisa científica e das clínicas, anteriormente isoladas, para compreensão do funcionamento holístico do sistema nervoso. A multidisciplinariedade é um fator intrínseco e fundamental da nova disciplina, que reúne investigações do espectro biomolecular ao cognitivo/mental. A confluência das diversas linhas de pesquisas é promissora à construção de um conhecimento mais assertivo do que no passado, quando a desarticulação entre os achados independentes preponderava.

A seguir, serão relacionados alguns achados consistentes sobre o dinâmico processo de comunicação neural no Sistema Nervoso Central (SNC), como plataforma de partida à construção de pontes integrativas entre a Neurociência e a Psicoterapia. O encéfalo humano em idade matura tem aproximadamente cem bilhões de neurônios. Reunimos também aproximadamente um trilhão de células da glia, pouco conhecidas e recentemente mais estudadas. Há uma década acreditava-se que as células da glia serviam especialmente para fornecer sustentação ao SNC.

Hoje, estudos demonstram que tais células participam ativamente do processo de comunicação neural. Cada célula nervosa pode receber em média informações de vinte mil outros neurônios e também transmitir informações para outras vinte mil células nervosas, configurando “incontáveis” possibilidades de receber, transmitir, processar, interpretar e comunicar tais dados no SNC. As sinapses elétricas e as sinapses químicas são as duas maneiras mais estudadas pela Neurociência das células nervosas se comunicarem. As sinapses elétricas conduzem informações muito rapidamente (microssegundos), envolvendo processos complexos de potenciais de ação ou correntes elétricas com limiares precisos para interromper ou manter digitalmente o fluxo de impulsos na rede neural. As sinapses químicas são em geral mais lentas. Isto é, processam comunicações em milissegundos, porém com rica modulação das informações pela abertura e fechamento de diferentes canais da membrana celular, os quais operam analogicamente em precisa sincronia com uma variedade de neuromoduladores (aminoácidos, aminas e peptídeos).

Sempre que um comportamento é emitido, ativamos e desativamos simultaneamente redes neurais, e milhares de sinapses excitatórias e inibitórias ocorrem nesse processo. O SNC manifesta ainda o sofisticado fenômeno da Plasticidade Neural, recurso que dispomos para modificar, compensar, gerar e ajustar funções neurais fundamentais à nossa vida, como o aprendizado e a memória.

De maneira simplificada, podemos dizer que regular a homeostase e mediar a emissão de comportamentos são as principais funções do SNC. Doença, dor e sofrimento psicológico também fazem parte desse sábio sistema regulador: eles sinalizam que o equilíbrio do conjunto deve ser restabelecido com procedimentos corretivos. A emissão de comportamentos é um processo que envolve a volição e a consciência e, por essa razão, temos possibilidade de interface mais ampla com o SNC. A Neurociência tem demonstrado que um comportamento pode ser aprendido e aperfeiçoado pela experiência, que altera a “voltagem” das sinapses na rede neural, provendo a formação de novos circuitos neurais e novas memórias, acessíveis em ocasiões posteriores. As experiências que alteram o fluxo de informações neurais não são apenas objetivas, mas também subjetivas. Estudos com neuroimagem e visualização de exercícios físicos específicos, como pedalar uma bicicleta em subida cada vez mais íngreme (I), pedalar constantemente em uma reta (II) e soltar a bicicleta em descida cada vez mais acentuada (III), revelou importantes reciprocidades neurofisiológicas. A ínsula e o tálamo foram ativados com correspondente aumento da resposta cardiovascular nas induções de esforço físico crescente (condição I) (Williamson e cols., 2001).

Outros estudos com neuroimagem funcional revelam correlações neurais parecidas no uso real e imaginário de instrumentos. Estruturas corticais similares foram ativadas durante a execução de uma tarefa motora e durante a execução pantomímica (imaginária) da mesma tarefa.

Estudos em primatas revelam que o encéfalo gera continuamente predições com mapas mentais adquiridos com as experiências, suficientemente confiáveis para antecipar o que ocorrerá no futuro próximo como conseqüência de uma ação conhecida. Com base nesses achados, é provável que o encéfalo humano trace também mapas de comportamentos baseados em experiências. Os bancos de memórias, constituídos mediante experiências objetivas e subjetivas são referências fundamentais à capacidade humana de gerar comportamentos adaptativos. Assim, os achados da Neurociência ilustram a importância das experiências subjetivas como determinantes de reciprocidades neurais, tal como se manifestam em respostas comportamentais do dia-a-dia. A maneira pela qual percebemos e interpretamos o mundo é legitimada pelo SNC, e conforme modificamos a mesma, novos circuitos neurais são desenvolvidos. Esse é um dos pontos fundamentais de conexão entre a Psicoterapia e a Neurociência, que exploraremos em novos artigos.

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