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Há um deficiente na C.I.D.I.D.?

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Davi Wood*

Este artigo tem por objetivo refletir sobre a atualidade do conceito de deficiência, e a conseqüente classificação das pessoas como tais. Como ilustração principal será utilizada a Classificação Internacional das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (C.I.D.I.D.), a qual visa complementar a abordagem médica, focando-se nas conseqüências objetivas e sociais da exteriorização da doença, sendo discutido se o uso de instrumentos classificatórios como esse ainda são convenientes.

A Deficiência, como proposta pela C.I.D.I.D., representa qualquer perda ou alteração de estrutura ou de função psicológica, fisiológica ou anatômica (OMS/SNR, 1989). Quando a C.I.D.I.D. se refere à ‘alteração de estrutura ou de função’ fisiológica ou anatômica, a mesma remonta basicamente a Genética, e a palavra alteração sugere uma modificação não natural na constituição do indivíduo.

Entretanto desde a constatação por Charles Darwin (1809-1882) do processo de Evolução por seleção natural, tal postura se mostra ultrapassada e em descompasso com uma das descobertas mais importantes das ciências naturais. Da perspectiva da Moderna Síntese Darwiniana não existem ‘alterações’, no sentido de desvios de um padrão pré-estabelecido, mas sim variações ou mutações que ocorrem ao acaso e são então selecionadas pelo ambiente (contingências de sobrevivência).

Exemplificando, o que teria acontecido se Darwin tivesse ‘interpretado’ as diferenças observadas entre tentilhões como anomalias de um ‘projeto divino’ e não como variações naturais, cada uma adaptada a seu meio particular? Ou então, se B.F.Skinner (1904 -1990) no campo do comportamento individual, tivesse ‘interpretado’ as diferenças constatadas entre os repertórios dos sujeitos, não como variações selecionadas por suas conseqüências no meio, (contingências de reforço), mas sim como expressão de um desvio inerente aos mesmos? Seríamos todos deficientes em relação à um ‘Adão’?

Dessa forma chegamos ao cerne do argumento: não se é possível classificar as diferenças genéticas entre os indivíduos, em saudáveis ou patológicas, e conseqüentemente rotulá-los de deficientes ou não, dado que se tratam de variações que ocorrem ao acaso, ou seja, não são desvios de um modelo, mas sim fenômenos naturais que jamais poderiam ser chamadas de deficientes, mesmo que o portador de tais variações não conseguisse sobreviver em seu ambiente natural. Desse modo deveríamos esperar pela (…) substituição de classificações rígidas e carregadas de apriorismos por um pensamento articulado sobre as variações da Natureza (American, 2005, p.9). Podendo consistir este ‘pensamento articulado’, na adoção da análise funcional, uma conseqüência direta da obra do físico e epistemólogo Ernst Mach (1838-1916), e do paradigma skinneriano da seleção por conseqüências, não havendo espaço para classificações de qualquer natureza.

Mesmo assim muitos poderiam alegar que os humanos ditos ‘normais’ seriam a ‘fôrma’ a ser usada e da qual o ‘deficiente’ se distanciaria. Entretanto o próprio Homem é um acúmulo de variações aleatórias selecionadas por suas conseqüências, e portanto considerá-lo como um modelo a ser seguido seria atribuir finalidades aos fenômenos naturais, como na teleologia aristotélica. O que não significa negar que a bagagem genética de certa forma limita as possibilidades de quem a carrega. Mas isso vale para todos os animais, inclusive o Homem, o qual a constituição genética impede de realizar um grande sonho: voar. Mas nem por isso o Homo Sapiens é considerado um ‘deficiente’ perante um pombo ou uma galinha.

Todas essas linhas podem aparentar não terem ligação com o tratamento destinado a pessoas ‘deficientes’, mas como segundo Skinner (1953) uma pessoa será sempre produto de suas condições tanto genéticas quanto ambientais, quando classificamos pessoas antes de suas reais interações com o ambiente já limitamos as possibilidades das mesmas, nos isentando da participação na determinação de seus desempenhos. Por isso os ‘deficientes’ são vistos como sendo muito parecidos uns com os outros e, o que é pior, vistos como tendo as mesmas necessidades e possibilidades, o que pode até ser usado para justificar a padronização de atendimento a eles dispensado (Omote, 1996, p.129).

Voltando à definição de deficiência da C.I.D.I.D., a mesma cita alterações de estrutura ou função psicológica, ‘alterações’ às quais não cabe o adjetivo deficiência. Muitas vezes aquilo que é chamado de ‘doença mental funcional’ possui tais ‘alterações’, como no caso da esquizofrenia. Entretanto classificar essas ‘alterações’ como saudáveis ou patológicas e com base nisso afirmar que alguém seja deficiente ou não, seria um absurdo equivalente ao da classificação pelas características anátomo-fisiológicas e por motivo semelhante.

Segundo Banaco (2001) todo comportamento é adaptativo, dentro das contingências (condições ambientais) que o mantém. Sendo assim, um dado comportamento só é classificado como ‘patológico’ quando se desconhece a história de reforçamento do indivíduo, (resumindo, quando se desconhece as leis que regem o comportamento) história essa, responsável pela sua conduta, pensamentos e sentimentos.

Além de desconhecimento quanto à história de vida do sujeito, normas sociais e portanto mutáveis estabelecem o que deve ser considerado ‘normal’ ou ‘patológico’, e conseqüentemente a definição de deficiência perde o caráter oficial e universal.

Passa a ser contingencial (…) alguém é deficiente somente em um contexto temporal, espacial e socialmente determinado (Omote, 1996, p.130). Segundo Gongora (2003) um argumento a favor de normalidade e anormalidade serem estabelecidas por normas sócio-culturais é o fato do homossexualismo ter aparecido até a versão do DSM II como um comportamento patológico e ter sido retirado, por votação, das edições posteriores sem maiores explicações. Outro exemplo que reflete a natureza sócio-cultural e os vieses que interferem na classificação de determinados comportamentos como ‘patológicos’ e a conseqüente classificação do indivíduo como um ‘deficiente mental ou físico’ muitas vezes a priori de suas efetivas interações com seu ambiente físico e social, estão na descrição e discussão feitas por Slater (2004) do famoso experimento de David Rosenhan, que no início dos anos 70 tentou derrubar a suposta (ao ver de Rosenhan) cientificidade do diagnóstico psiquiátrico (e que segundo a autora, conseguiu). Quanto ao termo perda, utilizado na definição de deficiência da C.I.D.I.D., não há problemas aparentemente, já que não fere as descobertas de qualquer ciência, seja ela a Biologia, a Análise do Comportamento ou qualquer outra pertinente aos assuntos humanos.

Destarte, o conceito de deficiência, seja ele o adotado pela C.I.D.I.D., ou qualquer outro semelhante, se mostra anacrônico e sem sentido. Ao adotarmos tal postura, seja no campo genético ou no campo do comportamento individual, é como se estivéssemos postulando a existência de um modelo pré-definido, e que a finalidade da natureza estaria em reproduzir cegamente tal modelo, o que é um absurdo, visto que a ciência não reconhece qualquer finalidade nas ‘ações’ da natureza, se limitando ‘apenas’ a descrever as relações ordenadas entre os eventos naturais (análise funcional). Por último, Darwin no campo filogenético (aspectos anatômicos, fisiológicos e comportamentais das espécies) e Skinner, principalmente no campo ontogenético (comportamento individual), deixaram claro, por suas próprias descobertas, a inutilidade da postulação de tais modelos e que o comportamento animal, e o humano em especial, sempre serão adaptativos, dadas às condições que os mantém. Talvez, o único deficiente entre nós, seja o próprio conceito.

* Aluno de Psicologia e Monitor de Análise do Comportamento do Centro Universitário de Itajubá – Universitas entre 2003-2005

Bibliografia

American, Scientific. Gênios da Ciência, Duetto, 2005.

Banaco, R.A. Auto-regras e patologia comportamental, Sobre Comportamento e Cognição vol. 4 , Esetec, 2001.

Gongora, M. A.N. Noção de Psicopatologia na Análise do Comportamento, Primeiros Passos em Análise do Comportamento e Cognição vol. 1, Esetec, 2003.

Omote, Sadao. Perspectivas para conceituação de deficiências, Revista Brasileira de Educação Especial, 1996.

Saúde, Organização Mundial da. Classificação das Deficiências, Incapacidades e Desvantagens, 1989.

Slater, Lauren. Mente e Cérebro, Ediouro, 2004.

Skinner, B.F. Ciência e Comportamento Humano, Martins Fontes, 2000.

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