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A psiquiatria contemporânea a Freud

Para apresentar a psiquiatria da época de Freud, inicio pela palavra psicose.

A palavra psicose foi grafada pela primeira vez em 1845, por um psicólogo alemão, Feuchtersleben, e apa­receu no ano seguinte, pela primeira vez, no Zeitschrifte fur Psychiatrie und Gerichtliche Medizin (Jornal de Psiquiatria e Medicina Forense).
Segundo o Petit Robert, a palavra psicose só foi usada na França em 1869, e, se acompanharmos toda a literatura do sécu­lo XIX, veremos que o primeiro aparecimento da palavra psico­se, com grande destaque, é no trabalho de Möbius, de 1892, quando ele divide as doenças mentais em psicoses exógenas e endógenas.

Assim, psicose é uma palavra de curso muito restri­to, especialmente no século XIX. Quando Kraepelin faz a sua sistemática, a palavra psicose não aparece. Depois ela irá sur­gir freqüentemente em todos os tratadistas.

O livro de Pinel, Traité sur Ia manie, pode ser considerado a publicação número um da psiquiatria. Nesse trabalho, todas as coisas que têm relação com a loucura são chamadas de mania. A melancolia é uma mania de um objeto único, mos­trando que ele percebeu a monoideação do melancólico, mas exagerou.

Já quando escreve o seu segundo livro, oito anos após – o Traité médico-philosophique de I'aliénation men­tal -, já abandona aquele conceito global de que mania era a loucura, e começa a pensar na classificação e na ordenação das loucuras.

Isso vem a ser feito em 1838, pelo seu discípulo Esquirol, no Traité des maladies mentales. Mas, continua ain­da a idéia fundamental da loucura, a loucura como uma mani­festação global e muito especial, que tem uma relação certa­mente com o sistema nervoso.

O primeiro dos psiquiatras alemães, Griensinger, é quem formula a célebre expressão: "doenças mentais são doen­ças cerebrais". E Griensinger deixa também um outro caminho, que em psicanálise será seguido: que a desordem mental, a perturbação mental, a doença mental são uma coisa única. Não existem variedades, nem modalidades. Teoria hoje conhecida como Psicose Única.

Ela segue um ciclo, é um fenômeno evolutivo que começa com a mania, passa pela me­lancolia, segue-se no delírio e termina por uma diminuição glo­bal das funções mentais, que é a demência. Isto ficou estabele­cido; a noção de alienação persistiu.

Quando MoreI escreve o seu Traité des maladies mentales, faz uma dedicatória engraçada, porque dedica o livro a GilIes Falret, "mon premier maître en aliénation mental".

Em seguida, os grandes clínicos vão descrevendo varieda­des de loucuras, como Falret, que descreveu la folie circulaire – a loucura circular -, depois Baillarger, que descreveu la folie de double forme – a loucura de dupla forma -, e, mais tarde, Magnan, com o delírio alucinatório crônico progressivo. Não há a palavra psicose. A loucura apresenta-se sob essas for­mas, sob essas variedades.

Há um progresso bastante grande na ordenação dos conhe­cimentos psiquiátricos com o trabalho de Kahlbaum, em 1870. Kahlbaum, pela primeira vez, distingue grupos de sintomas, que hoje chamamos síndromes (Zustandbildern) e unidades de doença (Krankheiten Einheiten). E é nessa linha de traba­lho que seu discípulo Hecker descreve a hebefrenia. A hebefrenia foi publicada nos Virchow Archiv, uma revista de clínica geral, em 1871, no volume 52, que foi traduzida em francês, em L'Evolution Psiquiatrique. Também nessa época, em 1875, é publicado em Viena, na cidade de Freud, o livro de Krafft-Ebing, Psychopatia sexualis, no qual pela primeira vez são cunhados os nomes sadismo e masoquismo.

Em 1896, Kraepelin, que vinha publicando sucessivamente edições do seu já então Manual de psiquiatria (no começo chamava-se compêndio, era um livro pequeno, fino e terminou numa grande obra de quatro imensos volumes), pre­para a primeira sistematização da psiquiatria, criando as entida­des clínicas. E aí, chamou atenção o aparecimento de duas formas de entidades clínicas que ele fez, pela fusão da mania, da melancolia, da loucura de dupla forma e da loucura circular, a que deu o nome de manische-depressive lrrsinn – ­loucura maníaco-depressiva. E, ao outro grupo de psicoses delirantes, que tinha aspectos também motores, catatônicos, que começavam mais cedo sob a forma de hebefrenia e, ao contrário da psicose maníaco-depressiva, cujos períodos ter­minavam numa volta ao normal – normal entre parêntesis -, essa outra doença, que tinha um curso progressivo, grave, ele chamou demência precoce – dementia praecox. Disse em latim aquela palavra que MoreI tinha usado em 1856.

Essa era a psiquiatria que havia na última década do século XIX. Era a obra de Kraepelin, de 1896, a quinta edição, e a psiquiatria francesa, que ainda persistia na separação das do­enças por nomes especiais. A demência precoce de Kraepelin ainda era chamada confusão mental crônica, nome que os brasileiros do Rio de Janeiro: Teixeira Brandão defendia contra a escola de Juliano Moreira, do outro lado da vasta chácara da Praia Vermelha.

No entanto, havia sempre a idéia de que a loucura, a doença mental, tinha uma base orgânica, e algumas pessoas diziam que a psicose, isto é, a loucura, era a expressão de uma alteração do sistema nervoso, que seria a neurose.

A palavra neurose é muito mais antiga. Ela vem do século XVIII, foi cunhada por Cullen, um médico inglês, e designava afecções (nervosas). Mais tarde ela mudou de aspecto.

É preciso chamar a atenção que, também neste final de século, instala-se em Paris a Escola de Charcot, que trabalhou com certos aspectos da doença mental, especialmente com a histeria, como a Grande Histeria. Quando Charcot obteve o seu Serviço na Salpétrière, ficou localizado ao lado da enferma­ria das mulheres epilépticas, e é por isso que se atribui à histeria convulsiva aquele modelo que eles tinham ali ao lado, na outra enfermaria.

Charcot interessou-se por hipnotismo; ele mostrou que as manifestações psíquicas podiam se transformar em sinto­mas corporais. Ele cultivou essa histeria, que podemos hoje reco­nhecer com certa facilidade, porque havia no seu servi­ço um homem chamado Berger.

Berger era um excelente dese­nhista e desenhou todas as fases da histeria, como se pode ver não só no livro de Berger, como algumas dessas gravu­ras estão reproduzidas no livro famoso de Gilles de Ia Tourette, de 1881, sobre a histeria, que ele chama hystérie normale (vejam vocês hystérie normale!).

Berger também fez um excelente documentário fotográfico. A fotografia já nascia, e a Clínica da Salpétrière publicou esses retratos. As histéricas de Charcot chamavam atenção. Algumas de suas fotos parecem estilos de estrelas de Hollywood dos anos 20 e 30, aquelas atitudes passionais, aquelas variações. Isto deu a Charcot um nome enorme e fez com que um jovem médico vienense quisesse passar lá algum tempo.

Eu não sei, mas a minha impressão é que, da França, Freud trouxe mais uma certa atitude em favor do hipnotismo, do que propriamente a doutrina das neuroses defendida por Charcot, que ele depois mudará bastante. Assim, na época de Freud, as doenças mentais não tinham ainda o nome psicose. Esse nome já tinha sido criado, mas se tornou mais comum nos tratados. Por exemplo, o tratado de Aschaffenburg, que é de 1911, já usa psicoses sintomáticas; no tratado de Bumke, já do fim da década de 20, a loucura maníaco-­depressiva transforma-se em psicoses afetivas.

Mas, o conhecimento da doença mental acontece poste­riormente. Há aqui então, duas linhas muito importantes, que marcam o pensamento da especialidade: a linha da psiquiatria e a linha da psicanálise. Freud começa com seus trabalhos, uma nova orientação, uma nova visão, novos dados, e a psiquiatria começa a receber o influxo de Ciências Psicológicas.

O autor que terá importância na formação do pensamento de Karl Jaspers, que passou como um meteoro, iluminando toda a psiquiatria, foi Dilthey, especialmente distinguindo as duas maneiras de interpretar os fenômenos psicopatológicos: a compreensão e o esclarecimento (ou, explicação) – Verständnis e Erklärung.

Verständnis, a compreensão, é um dado psicológico, é o que fazem todos os psicólogos, psiquiatras e psicanalistas, que procuram com­preender as manifestações clínicas.

Esclarecer é explicar o fenômeno pela sua causa, pela sua origem, é descobrir a lesão cerebral. Quando Kreutzfeld & Jaccobi encontram alterações nos núcleos da base correspondentes a uma determinada psicose, quando os estudos de todos os gran­des mestres da anatomia patológica terminam no achado de Nogucchi & Moro do espiroqueta (sífilis) no córtex, e se conhece a natureza da paralisia geral, nós estamos esclarecendo, estamos explicando pela causa (correlata em termos mentais).

O que marcava a psiquiatria de Kraepelin é que ele, tendo vindo da medicina, sempre esperava uma expli­cação causal, influência da Física newtoniana. Kraepelin teve a fantasia de pensar que cada doença mental tinha sua etiologia própria. Evidentemente que, quan­do nós encontramos uma psicose como a psicose da pelagra, com todas as características como foi descrita por Llopis, pen­samos que esse ideal não era assim tão abstruso. Quando ele pôde mostrar que as alucinações cutâneas dos cocainômanos eram devidas à presença de pequenos cristais de cocaína sob a pele, havia uma explicação causal e etiológica. Mas isto caiu muito cedo.

Ainda não havia sido publicado o grande monu­mento de Kraepelin, que é a 8ª edição do seu tratado, que foi editado em quatro volumes pela Casa Barth (começou em 1904 e acabou em 1913), quando começavam Hoche e outros a dizer que a manifestação da doença mental não era por doenças, mas por síndromes.

E é, sobretudo, o trabalho de Bonhoeffer, que está publicado no grande tratado de psiquiatria de Aschaffenburg, sobre as psicoses sintomáticas, que mostrou que todas as causas exter­nas produzem o mesmo quadro mental. Esse quadro tem um sintoma central: o sintoma obrigatório. É a primeira vez que aparece a idéia de um sintoma obrigatório na doença mental, que é a turvação da consciência.

A turvação da consciência, a mudança da consciência, apa­rece nesse trabalho como a coisa fundamental. Isso foi caracte­rizado especialmente mais tarde por dois psiquiatras alemães, Stertz & Ewald, e foi visto que traumatismos, infecções, tóxicos exógenos, desordens metabólicas, todos esses elementos pro­duzem o mesmo quadro mental, a psicose sintomática, e que, ao contrário, um agente único, o etanol, provoca embriaguez agu­da, delirium tremens, alucinose dos bebedores, epilepsia e de­mência. Deste modo, nós vemos que a etiologia não nos serve.

Kraepelin acentuou em seguida a evolução. Ele tinha feito a grande separação das psicoses chamadas endógenas em maníaco-depressivas, cujas crises tinham de ter um fim bom, um restitutio ad integra até certo ponto, e a demência pre­coce, que já se chamava então esquizofrenia (depois dos trabalhos de Bleuler), que tinha um curso crônico. Na obra inicial de Bleuler, Dementia Praecox de 1911, não existe a palavra incurabilidade. Finalmente, a terminação e o quadro anátomo-patológico. Esse conjunto de elementos: síndrome, fator etiológico, decurso, terminação e quadro anátomo-­patológico, só foi preenchido em toda a psiquiatria pela pa­ralisia geral (neurolues=neurosífilis). É um modelo inatingível e que não importa, porque inclusive acabou. Era tão bom que acabou. Ficou então a doença mental, a psicose, para ser estudada mais profundamente.

A partir do mecanismo da compreensão, Jaspers publica, em 1910, um trabalho sobre o desenvolvimento ou processo, em que ele estuda os delírios de ciúme. Em 1913, ele lança a sua Psicopatologia Geral. A Psicopatologia Geral repre­senta na história da psiquiatria o que é O Cravo Bem Tempera­do para o piano. Quem não leu a Psico­patologia Geral de Jaspers não pode seguir cursos adianta­dos no Campo Psi. É fundamental. Nesse livro, Jaspers mostra que a doença mental tem uma estrutura.

Essa estrutura caracte­riza-se por uma perda do relacionamento com o mundo, com o eu e a instituição de uma série de sintomas secundários, delíri­os, alucinações, que trazem cada vez mais uma mudança que caracteriza a verdadeira loucura, o delírio.

A obra de Jaspers foi revista por ele em 1942. Jaspers tinha sofrido muito, tinha passado fechado, isolado, todo o tempo da guerra. (Após a segunda guerra) ele tinha sido chamado (de volta à universidade) e feito reitor em Heidelberg.

Jaspers teve a triste idéia de publicar um livro denominado Die Schuldfrage (O problema da culpa), em que assume a culpa do povo alemão pelo nazismo e pelas atrocidades, sobretudo con­tra os judeus, de uma maneira completa. A casa dele foi apedre­jada no dia seguinte, e ele teve de se exilar na Basiléia. De modo que a revisão de sua obra psiquiátrica, feita nas edições sucessivas, nessas que correm hoje aqui, não é completa, por­que ele não deu valor ao homem que continuou a sua obra, que foi Kurt Schneider.

Kurt Schneider, em 1945, publicou uma psicopatologia em que dava uma nova ordenação à psiquiatria. De um lado, as psicoses de base cerebral; elas podem ser agudas ou podem ser crônicas; caracterizam-se pela existência de um quadro anátomo-patológico, têm uma causa, têm uma evolução mui­to típica. E há, do lado oposto, todas as reações vivenciais anormais e as manifestações de personalidade. E, no meio dessas duas, existem as duas psicoses que parecem ser ce­rebrais, mas para as quais não temos prova nenhuma: a psicose maníaco-depressiva e a esquizofrenia.

O conceito de endogeneidade que foi depois trabalhado por Weitbrecht, que tem sido muito discutido e foi trabalhado também por Tellenbach, não chega a explicar. Nesse momento, há um grupo de pesquisadores que concentram seus trabalhos na Universidade de Toronto. Eles recebem material de esquizo­frênicos mortos em nove hospitais psiquiátricos famosos. Eles estão contando receptores de células, para ver se des­cobrem alguma coisa que seja típica da anatomia patológica da esquizofrenia. Se isso vai dar certo, não sei.

O que é uma psicose? É difícil dizer e fazer uma definição. Pensando nisso, eu fico com a idéia de que a psicose é um espectro que tem dois pólos: o pólo da despersonalização e o pólo da desrealização. Toda psicose é formada por um conjunto de alterações do conhecimento do indivíduo do próprio eu e do conhecimento do indivíduo do mundo em que ele se encontra. Psicose é a alteração entre o eu e o mundo exterior, e a neurose é a alteração da relação entre o ego, o id e o superego.

Mas, realmente, na psicose temos de ter esses dois compo­nentes fundamentais: a perda do próprio eu, o eu que se trans­forma, o eu que se modifica, que chega até à demência, o apaga­mento total da relação com o mundo exterior; o eu que se torna agressivo, que se torna diferente, que se torna ameaça­dor, que se torna perseguidor, que se torna apagado, triste, melancólico, ou que se torna um carnaval de mania. Na realida­de, se nós quisermos dizer que a psicose é caracterizada por um único sinal, nós não o encontraremos.

Apenas as psicoses sintomáticas exógenas têm um sinal central, que é a turvação da consciência. Fora disso, a psico­se é formada por elementos os mais diversos da biografia, das experiências, das circunstâncias. É realmente um nome para aquele mais velho fenômeno de todos, a loucura. A loucura descrita pelos trágicos gregos, a loucura descrita na Bíblia é a mesma loucura de hoje, do homem que mora em apartamento em qualquer cidade do mundo. Psicose igual a loucura.

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