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“Sobre as quatro formas de ver a relação homem-máquina”

Lendo um instigante texto sobre as implicações psicológicas das tecnologias digitais me deparei com uma interessante classificação das relações entre homens e máquinas. O referido modelo sustenta, bem embasado, que há 4 formas básicas de interação entre o elemento humano e o maquínico. O presente artigo é um desenvolvimento desses modelos, comentados por mim.
Eis aí: 1) Visão Instrumental Por essa visão, o homem utiliza as tecnologias como meios para se chegar a um fim não-tecnológico. Nesse sentido, o papel dos dispositivos tecnológicos é otimizar processos que poderiam ser alcançados, com menos eficiência ou eficácia, sem eles. Por exemplo: usar óculos para ler, carros para se locomover, computadores para produzir e publicar textos (como este).

Ocorre uma clara distinção entre Sujeito e Objeto, e o primeiro tem destaque e maior importância. Podemos dizer que é a visão mais humanista das quatro. Particularmente, é a que eu adoto, enquanto psicólogo e profissional de tecnologias digitais. 2) Visão Protéica Um passo além da relação instrumental.

Por ela, as tecnologias não são opções de instrumentos, mas são necessidades imprescindíveis para que o homem alcance seus objetivos, uma vez que seu corpo não dispõe do que é necessário para realizar as tarefas. As tecnologias, nesse quadro, entram como próteses, isto é, extensões do homem, sejam extensões dos sentidos (microscópios usados para visualizar células, p.e.), do corpo (coletes a prova de bala para a segurança, p.e.) ou da “mente” (bancos de dados como prótese da memória individual, ou a internet como prolongação protéica da criatividade coletiva, segundo Pierre Levy. (2) ). A distinção entre Sujeito e Objeto ainda é clara, mas o Objeto adentra os limites do Sujeito, alterando-o até certo ponto, deixando sua marca. Essa visão é adequada a casos especiais, especialmente em contexto de laboratório. Mas oferece um risco no que diz respeito ao uso de tecnologias no cotidiano: o de tornar o Homem dependente, em escala patológica, de suas “próteses”.

Tal dependência vai desde o uso corriqueiro de blocos de papel para tomar notas, costume que pode obstruir a estimulação da memória, no sentido de tomar notas mentais; até a dependência perigosa de computadores para obtenção de entretenimento, como no caso de adolescentes “viciados” em Chats e orkut. Tal dependência pode ser vista da seguinte forma: ficar sem um prótese, de certa forma, é como ficar sem uma parte do próprio corpo, apesar dessa parte não ser efetivamente corpo!

A “abstinência” das tecnologias pode ter por gerar, por exemplo, o efeito “membro fantasma”. P.e., ficar sem celular por alguns dias, a fim de recolhimento, pode soar pertubador para muitos adultos saudáveis que na verdade nem sequer precisam de fato dos aparelhos. 3) Visão Romântica Pode ser vista como uma versão aumentada e iludida da visão protéica. Por esse modelo de percepção, as tecnologias não são nem instrumentos e nem próteses do homem: elas são partes integrantes do ser humano. Trata-se de um aceite da simbiose homem-máquina. Por essa visão, motorista e carro são um, assim como a “mente” do programador se torna uma mesma coisa com os sistemas de desenvolvimento de software de seu computador.

A visão romântica promete, como todo Romantismo, a realização de um sonho, de uma utopia: a criação de um super-homem-tecnológico, um simbionte mais poderoso que o homem comum, e em todos aspectos melhor que este. “Não há perigos, apenas benefícios na integração homem-máquina”, dizem os românticos. Essa visão é notoriamente defendida por nerds e tecnocratas, e de um modo geral por todos os que trabalham segundo a ótica technology push em desenvolvimento de projetos. (O próprio Pierre Levy, já citado neste texto, é tido por muitos como um Romântico das tecnologias).

O maior risco do modelo romântico de interação homem-máquina certamente está na coisificação do homem, uma vez que ele é tratado como uma peça na engrenagem da máquina. Não importa que essa peça seja o motor central, ainda assim o Homem é reduzido a uma Coisa. Em outras palavras, o Sujeito é visto como um Objeto. 4) Visão Animista Se a visão romântica oferece o risco da coisficação do homem, a visão animista vai mais longe, epistemologicamente falando: pressupõe a hominização da coisa. Nas culturas ditas primitivas, acredita-se que tudo, mesmo objetos como pedras, estátuas e totens de madeira são possuidores de uma anima, isto é, uma força vital, um espírito.

O animismo é uma eidos (uma forma de ver o mundo) como um único organismo inteiramente vivo e integrado por laços espirituais. Para teólogos cristãos, o animismo dos bárbaros explica a idolatria desses às forças da natureza, como os Guaranis, que viam no trovão o adorado deus Tupã. Pois bem… Nas sociedades (pós?) modernas, o animismo está vivo e passa muito bem, obrigado. Afinal, quantas vezes você não ouviu alguém dizer algo como “Essa maquina de xerox não gosta de mim”, ou “Os computadores me odeiam” ou “A internet é um organismo inteligente, vivo, dinâmico, evolutivo”.

Ora, a máquina de xerox não tem emoções. Nem os computadores selecionam com quem irão funcionar melhor: eles apenas respondem a comandos, isso é tudo. E muito menos a internet é um organismo evolutivo. São as pessoas que passam por apuros ocasionais com máquinas de xerox. São pessoas que eventualmente podem não saber como operar computadores.

E, por fim, são pessoas que fazem a internet evoluir. Agentes humanos, individual ou coletivamente, determinam a tecnologia. A tecnologia não tem anima, não toma decisões, não é criativa per si: é tão somente uma somatória de fatores econômicos, psicológicos, tecno-cientificos, etc. O risco maior da visão anímica, contudo, não é negar esse jogo e nem a hominizacao da coisa, mas ignorar o fato das tecnologias serem apenas resultantes de um jogo de forças e fatores humanos, tornando assim imperceptível a contribuição dos homens aos processos tecnológicos. P.e., quando um gerente de um projeto em engenharia diz: “A tecnologia precisa evoluir nesse quesito” corre um risco gerencial de errar por falta de visão. Seria melhor ele se questionar “Precisam evoluir logo essa tecnologia. Mas quem? Onde? Como?”.

QUESTIONAMENTO Qual a sua visão da relação homem-máquina, caro leitor? Referências (1) PELUSO, Ângelo (org.) “Informática e afetividade: a evolução tecnológica condicionará nossos sentimentos?”. Tradução de: Nelson Souza Canabarro. EDUSC, 1998. (2) LEVY, Pierre. As tecnologias da inteligência. O futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993

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