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A Psicanálise sob a lente da própria – parte I

Como artigo inaugural para minha coluna, SOB A LENTE DA PSICANÁLISE, achei apropriado que o primeiro objeto de estudo, sobre o qual eu focaria essa lente, fosse a própria Psicanálise. Seria absolutamente da ordem do impossível, focar de uma só vez um objeto de estudo tão amplo e multifacetado. Dessa forma, optei por fazer alguns “cortes” no referido objeto e examiná-lo através de amostras sucessivas.

Procurei me acompanhar de alguns autores, aos quais "convidei", para que participassem comigo desta inauguração. Dentre eles, quero destacar: Jean Paul Valabrega (A Formação do Psicanalista); Elizabeth Roudinesco (A História da Psicanálise na França); Peter Gay (Freud: Uma vida para o nosso tempo), entre outros tantos que aqui, embora não citados, me servem de inspiração.

Para a realização do primeiro "corte-artigo", estarei aqui acompanhado de Jean-Paul Valabrega, o qual escreveu "A formação do psicanalista", lançado pela Martins Fontes Editora. Como o próprio nome do livro revela, minha intenção é começar enfocando o aspecto da formação do analista. Temática exaustivamente abordada na literatura especializada, muito embora esteja muito distante da obtenção de um consenso a respeito.

Diga-se de passagem que o estado de confusão e desordem no qual a psicanálise se encontra, parece não encontrar precedentes desde a sua criação. Estaríamos vivendo uma "crise" da psicanálise? Ou, a bem da verdade, estaríamos vivendo uma crise individual e coletiva de quem a pratica? Ao que parece, Freud já teria sido influenciado por reflexões dessa espécie, em seu ensaio "O mal-estar na civilização" (1929-30). O meu acompanhante neste artigo se questiona: "Em se tratando de mal-estar, o que Freud não nos diria hoje"!

Na verdade não conseguimos identificar muitos denominadores comuns entre os pós-freudianos, muito ao contrário, o que verificamos atualmente é uma exacerbação na criação de novas teorias e, conseqüentemente a formação de verdadeiros "exércitos" de seguidores. Se esta é a situação no tocante à teoria, a situação fica mais problemática quando adentramos a observação da práxis, onde também não podemos observar qualquer unidade.

Atualmente, vemos inúmeras pessoas, na verdade profissionais, os quais escudados pela auto-denominação de psicanalistas, proferirem verdadeiros impropérios em nome daquilo que acreditam ser o seu "minuto de fama", prestando-se a realizar aconselhamentos, sugestões, encontrando na mídia o seu verdadeiro target (alvo) a ser atingido. Eu diria até que esses profissionais transformam-se em verdadeiros ilusionistas, acabando muitas vezes como vítimas das suas próprias ilusões, passando a acreditar que realmente estariam ajudando alguém.

Existe também toda uma corrente que se apresenta como sendo de "inspiração psicanalítica", aqui cabendo de tudo, desde massagens, relaxamentos, passando pelos trabalhos de sexologia. Citando Valabrega, no chamado mercado do "mal estar", sempre há uma nova oferta de cuidados.

Passaremos agora a enfocar o "sistema" subjacente à questão da formação. Esse processo começa pela análise inicial, até os "controles" (algo próximo à supervisão, mas que o que se quer com o termo "controle", é enfatizar a dimensão política, envolvida nessa atividade). Esse processo passa também pelas re-análises. Se fizermos uma volta histórica, desde o primeiro Grupo das Quartas-feiras, o qual se reunia em torno de Freud (1902), a fundação da Sociedade Psicanalítica de Viena (1908), seguida pela da Associação Psicanalítica Internacional (1910). A história nos revela que as sociedades e instituições psicanalíticas não eram diferentes das outras instituições humanas, além de estarem submetidas às mesmas leis. Sempre se pode perceber a tendência em se transformarem em aparelhos burocráticos, onde se evidenciam forças que exercem sobre os indivíduos, coerção e censura, pressão e coação. A existência do poder é algo da ordem do inevitável e, segundo Valabrega, basta que tenhamos a ambição de "evitar o pior", ou seja, se não podemos evitar a existência do poder, temos que tentar evitar o seu abuso.

Assim, vemo-nos diante de duas tendências extremas, as quais são incompatíveis com a evitação do abuso do poder. Aqui, seguiremos um pouco a descrição de Valabrega:

As Sociedades Oficiais, filiadas à IPA: caracterizam-se por um tipo de administração burocrática, centralizada e pela aplicação de padrões rígidos, hierarquizados; contam com aparelhos diretores, cuja lógica interna leva ao exercício de um poder abusivo, voluntário ou inconsciente, problemas que mergulham suas raízes na matéria psicanalítica.

Os comitês põem em prática, tanto com os analistas como com os candidatos, uma forma de seleção inaceitável, prejudicial ao progresso da psicanálise. Toda seleção baseada em critérios objetivos ou científicos, é radicalmente má, pois resulta na eliminação de espíritos dos mais originais e geniais.

As Sociedades que assumem uma posição laissez-faire, também denominada de ABERTURA: são instituições que acabam sendo regidas pelas leis de Talião, intrigas, ambição pessoal, nepotismo, acarretando à promoção dos aduladores e dos medíocres.

Assim, podemos observar que os dois maiores obstáculos que temos pela frente podem ser denominados: contração e expansão. Já encontramos em Freud, a abordagem desses fenômenos de alienação que tanto fascinam e se transmitem do individual ao coletivo. Em "Psicologia das massas e análise do ego" (1921), Freud realiza uma comparação entre os fenômenos de grupo e multidões, às relações entre o guia, o chefe (FÜHRER) e as tropas a eles sujeitas e submissas, ao estado amoroso, à sugestão e à relação hipnótica. Nesse momento, notamos que Freud recorre aos conceitos de Ideal de ego e, mais particularmente, ao mecanismo da Identificação.

Podemos notar também na "História do movimento psicanalítico" (1914) e, um pouco mais tarde, em "Um estudo autobiográfico" (1925), os primeiros vestígios dos conflitos, dissensões, lutas e rupturas, os quais agitaram o movimento psicanalítico desde a sua gênese. Aqui, defrontamo-nos com as dissidências de Alfred Adler e Carl Gustav Jung. Segundo o nosso companheiro de empreitada, J-P. Valabrega, "o móvel central de todas essas polêmicas é e continua sendo o mesmo de sempre, a saber: o que é que é e continua sendo da psicanálise, tanto na teoria quanto na prática? E o que não é ou já não é? Ou ainda: quem é ou continua sendo psicanalista e quem já não o é? A pergunta é: onde começam o abandono, a desnaturação e a falsificação?

Percebam que todas essas questões, sem exceção, nos conduzem ao quesito da formação do analista. Dessa maneira, a psicanálise se coloca de forma singular entre os outros ramos de disciplina e, por sua essência e sua base, apresenta o caráter de só poder avançar, constituindo uma figura em arco ou espiral, o que implica em retornar permanentemente às suas origens. Nessa forma de configuração da psicanálise, enquanto disciplina de estudo, em espiral, encontramos também uma concordância com o pensamento de Jean Laplanche (em co-autoria com J-B. Pontalis: "O Vocabulário de Psicanálise").

Dessa forma e com essa mesma estrutura em espiral é que são caracterizados ao mesmo tempo o movimento "regressivo-progressivo", que parece regular a maioria das curas psicanalíticas observadas in vivo, e, estreitamente paralela e homóloga, a evolução da própria psicanálise.
Gostaria de citar, antes do término dessa primeira amostragem obtida pela nossa lente psicanalítica, a frase de um combatente de Budapeste, citada por Paul Guimard: "A SITUAÇÃO É BOA, MAS NÃO É DESESPERADA ".

E, assim como essa frase bastante contundente quanto às produções do inconsciente, me lembro de uma outra proferida por uma ex-paciente, o qual ao referir-se à mãe, disse: "Minha mãe é como a pata com os pintinhos"! Anos depois, utilizando-me da mesma frase numa aula na faculdade de psicologia, na qual lecionava psicanálise, qual não foi minha "surpresa" ao perceber que tive que repetir a frase umas três vezes, no mínimo, para que os alunos pudessem demonstrar que havia "caído a ficha"!

Dessa forma, o analista pode comprar um consultório fashion, comprar uma biblioteca extremamente cara, "comprar" (no sentido de poder custear) o seu percurso numa instituição oficial, filiada à IPA, comprar a sua participação em grupos de estudo dirigidos por aqueles que ele reputa como os "papas" da psicanálise, enfim, tudo aquilo que o dinheiro pode comprar. Mas, o que devemos sempre ter muito claro é que é algo da ordem do impossível poder comprar uma "escuta analítica", a qual não se encontra à venda nas "boas casas do ramo" e só pode ser oriunda da própria análise pessoal.

Conforme o prometido no início deste trabalho, peço que os leitores tenham um pouco de paciência para esperarem pelos próximos capítulos, uma vez que como disse, o universo da psicanálise é muito amplo, e não se faz possível, senão através de "cortes", submetê-la à lente da própria psicanálise.

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