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Um Projeto para toda vida

Ao escrever o Projeto para uma Psicologia Cientí­fica, em 1895, Freud pretendia dar à psicologia o status de ciência natural. Embora tenha falhado no intento, o Pro­jeto contém o embrião de quase todo o desenvolvimento posterior da psicanálise. O projeto surpreende, pois utiliza modelos que se aproximam dos modelos computacionais atuais de compreensão da mente (redes neurais). Novos paradigmas procurando integrar o conhecimento neuro­científico e psicanalítico vêm sendo concebidos.: psicanálise; neurociência; redes neurais; “Projeto para uma Psicologia Científica”
O Projeto para uma Psicologia Científica [Entwurf einer Psychologie], também chamado de Psi­cologia para Neurologistas, foi escrito em 1895 por Freud(4). Foi salvo da destruição graças a Marie Bonaparte, que adquiriu o manuscrito de um livrei­ro(5), e publicado somente muitos anos após a morte de Freud. Para o psicanalista tradicional, o Projeto é um embaraço, um texto reducionista sobre mecânica neurológica que não faz jus às publicações analíticas posteriores. Para os novos "neuro"-psicanalistas, o Projeto evidencia o gênio de Freud: um modelo computacional de funcionamento mental que se propõe a reduzir a distância entre os processos psíquicos e o mundo físico, quantificável e parte das "ciências naturais".

O Projeto falhou, pois não foi capaz de tornar os processos psíquicos "explícitos e livres de contradi­ção". Sob o ponto de vista histórico, o Projeto pode ser entendido como uma resposta à insatisfação de Freud com o capítulo teórico de Estudos sobre Histeria escri­to por seu então reticente colaborador Josef Breuer e uma substituição à contribuição deste(9). Porém, foi também um trabalho crucial para o desenvolvimento do pensamento de Freud. Após reconhecer a incapa­cidade de responder questões sobre o funcionamento mental em termos neurológicos, Freud abandonou o Projeto neurológico e se dedicou firmemente ao campo psicológico. Sua publicação A Interpretação dos Sonhos foi baseada nesta decisão. O Projeto, entretan­to, traz consigo o embrião da psicanálise, incluindo conceitos centrais, como libido, processos primários e secundários, ego e repressão. Ele representa, portan­to, a transição do discurso freudiano do neurológico para o psicológico e permite a compreensão da ori­gem neurológica de seu raciocínio. Embora Freud tenha abandonado o Projeto e mesmo buscado sua destruição, ele nunca abandonou, por toda sua vida, a esperança de al­gum dia encontrar os substratos orgânicos para seus conceitos metapsicológicos.

Cento e doze anos após o Projeto, cabe-nos a pergunta: será possível desenvolver uma psicologia que seja uma ciência natural? Será possível desenvolver modelos matemáticos capazes de gerar categorias de funcionamento mental ao mesmo tempo mensurá­veis e úteis para a descrição do funcionamento men­tal qualitativo, normal e patológico?

O Projeto para uma Psicologia Científica: teoria psicanalítica ou psicologia neurológica?

O Projeto pode ser analisado sob diversos aspec­tos: filosófico, histórico, da psicologia do Eu, neuroló­gico e computacional. Apesar de renegado por Freud, as idéias do texto estão implícitas ao corpo teórico da psicanálise, ao mesmo tempo, que antecipam por meio século desenvolvimentos do campo neurológi­co. Freud começa propondo o uso de energia, que ele denomina como a letra Q, "sujeita às leis gerais do movimento". Há dois tipos de energia Q: Q exógena se origina do ambiente; Q interna (Q' η) se origina das necessidades biológicas básicas, como fome, respira­ção e sexualidade.

Com a idéia de uma Q'η , Freud começa a desen­volver as bases do conceito de libido. Freud irá poste­riormente definir instinto como o representante psí­quico de um fluxo interno contínuo de energia. A diferença entre instinto e Q consiste na natureza men­tal do primeiro, enquanto que Q seria simplesmente um conceito mecânico relacionado à energia somáti­ca. Para Sirkin e Fleming(12) esta distinção é crucial para a compreensão do papel da satisfação do desejo posteriormente na teoria psicanalítica. Libido pode ser utilizada, portanto, como termo geral para a dinâ­mica (ou aspecto energético) dos instintos. Apesar de inicialmente definida como a manifestação dinâmica da sexualidade, a libido vem representar aspectos mais amplos do instinto vital, que inclui sexualidade, mas não é restrito a esta.

A segunda idéia do Projeto, ainda controversa na época, é que as partículas materiais do sistema nervo­so são os neurônios. Para Freud, o princípio da inér­cia neural é que "neurônios tendem a descarregar Q". Um aspecto importante do sistema nervoso seria a capacidade de eliminar Q, seja esta proveniente do ambiente externo, ou produzida endogenamente. Isto pode ser alcançado através da satisfação das necessi­dades teciduais (que aumentam de Q'η) e, portanto, serve a uma função primária para a manutenção do equilíbrio do sistema.

Enquanto que o conceito de função primária é um princípio neurológico, o conceito de processos primá­rios é de natureza psicológica. No Projeto existem dois tipos de processos primários: aqueles que satis­fazem desejos (e levam a descarga de Q'η) e aqueles que envolvem defesa contra dor. A essência do pro­cesso primário é sua natureza "desinibida". Para Freud, prazer seria a sensação de descarga e despra­zer coincidiria com aumento do nível de Q. Processos primários seriam, portanto experienciados como pra­zerosos.

Para energizar movimentos e outras atividades necessárias para satisfação e sobrevivência no am­biente é paradoxalmente necessário acumular Q. Freud postula um papel secundário para o sistema nervoso, que envolve o acúmulo de Q e sua liberação, quando necessária para diminuir temporariamente o fluxo contínuo de Q'η. O objetivo final seria descarre­gar Q (função primária), mas para que isto seja possí­vel é necessário o acúmulo contraditório de Q no sis­tema (função secundária). Freud considera como pro­cesso secundário aquele que resulta em inibição imposta por um segundo sistema. Isto inclui a ativi­dade cognitiva (pensamento e julgamento) que inibe e redireciona impulsos de sua gratificação imediata. O princípio do prazer é exemplo de processo primá­rio, enquanto o princípio da realidade é exemplo de processo secundário. Para Freud, haveria vantagens evolutivas na capacidade de restringir impulsos para melhor adaptação do organismo à realidade.

A satisfação dos desejos é um conceito central na conexão entre o Projeto e a teoria psicanalítica. Um desejo, de acordo com o Projeto, consiste de três idéias ligadas por um neurônio de associação: 1) Necessi­dade tecidual, definida pela somatória de Q endóge­no (Q'η); 2) A memória ou representação do objeto desejado e 3) A memória de uma experiência anterior de satisfação da necessidade. Portanto, um desejo é uma necessidade associada a um objeto de gratifica­ção, que é associado à memória de satisfação. Para Freud, desejos estão na base de todos os processos mentais. Nos textos de metapsicologia, Freud consi­dera que o instinto nunca se tornaria objeto da cons­ciência, apenas a idéia que o representa alcançaria a consciência. O termo desejo vem designar tal idéia.

No "Projeto", Freud propõe três sistemas de neu­rônios: Phi (φ), Psi (ψ) e Ômega (ω). O sistema φ é o mais exterior e responsável por conduzir Q exógeno do estímulo externo para o interior do sistema, é o sistema central no qual a maior parte do trabalho do aparato mental ocorre. Embora ψ seja protegido de Q externo pela triagem periférica, ele é exposto a Q'η sem esta proteção. O sistema ψ também é mais inter­no e responsável pela percepção da qualidade do estí­mulo em ψ e da consciência e percepção da realidade. Para Freud a consciência é o aspecto subjetivo de parte dos processos psíquicos no sistema nervoso: os processos perceptuais (sistema ω). Desta forma, a consciência para Freud já em 1895 desempenhava um papel relativamente menor no processamento de informações do sistema nervoso.

Freud descreve um Ego em termos neurológicos no seu Projeto, que é funcionalmente equivalente ao Ego descrito em textos psicanalíticos posteriores. Ambos correspondem ao mecanismo dos processos secundários. No Projeto, Ego é definido como uma organização neural responsável por inibir a passa­gem de Q. Para Freud, o sistema nervoso seria uma vasta de rede de neurônios interconectados, de com­plexidade progressiva à medida que se caminha do exterior para o interior. Freud postulava a existência de barreiras de contato (sinapses ainda não haviam sido definitivamente descobertas) que limitariam o fluxo de Q de um neurônio a outro. Quando o nível de Q aumentasse o suficiente, seria possível atraves­sar as barreiras de contato. À medida que barreiras de contato eram ultrapassadas por Q, elas se enfra­queceriam. Desta forma, padrões de configurações energéticas poderiam ser desenvolvidos com a pas­sagem de Q.

Freud também postulava que neurônios ricos em Q conectariam mais facilmente entre si do que com neurônios pobres em Q, o que facilitaria o desenvol­vimento de redes neurais energizadas dentro do sis­tema. Neurônios do Ego teriam barreiras de contato enfraquecidas e já seriam previamente carregados com Q. Desta forma, a rede neural do Ego seria capaz de acumular (e, portanto, também de inibir) uma grande quantidade de Q. O sistema de testagem de realidade (ω) teria tempo para então determinar quando seria apropriado descarregar Q.

Os processos primários do organismo requerem apenas imagens mnêmicas e suas facilitações energé­ticas; destas surgem desejos e defesas primárias, os primeiros envolvendo a passagem de Q'η em direção à imagem mnêmica e as segundas pela repressão da imagem de abandono da desejada descarga energéti­ca. O Ego seria, portanto, formado pela acumulação de imagens mnêmicas e suas facilitações energéticas, que regularmente receptariam Q'η endógeno. Desta conceituação provém a idéia do Ego como um grupo de facilitações permanentes para o fluxo de Q'η, assim como um grupo de neurônios energeticamente conectados que servem como reservatório de Q. O caráter alucinatório dos sonhos seria decorrente da paralisia do sono, que propicia uma corrente retró­grada de Q'η de ψ para ω, de forma a proteger o Ego de injúria. Freud inicialmente descreve defesa primá­ria em termos da resposta biológica do organismo à dor (ou de uma imagem mnêmica associada à dor). Ele propõe que idéias causadoras de desprazer no Ego e de natureza sexual sejam reprimidas, também como forma de defesa.


O Projeto após 112 anos: cognição é computação?

O método mecanicista e reducionista que Freud dispunha para a construção de seu Projeto era sim­plesmente inadequado para a enormidade da tarefa. Apesar de evidente sofisticação no desenvolvimento de conceitos como retroalimentação, redes neurais e sinapses, Freud terminou imerso em uma teia teleoló­gica de termos físicos, psicológicos e mecânicos. Entretanto, será agora possível desenvolver uma psi­cologia normal e patológica como parte das ciências naturais, em se utilizando o termo escolhido por Freud? Em outras palavras, a decisão de Freud de abandonar o projeto devido às limitações da ciência da época pode ser revertida, 112 anos depois?

O avanço exponencial das neurociências tem propiciado o desenvolvimento de todo um mundo repleto de potencialidades para testar hipóteses de funciona­mento cerebral. A tentativa de Freud desenvolvida em seu Projeto é uma abordagem de "baixo para cima". Um modelo de "baixo para cima": 1) não seria baseado em um construto psicológico a priori, origi­nário das ciências humanas, 2) não consideraria a existência da consciência a priori, mas elaboraria teo­ricamente como a consciência pode ser produzida a partir da modelagem de informação. Freud, em sua curiosidade de desvendar a natureza humana, bus­cou inicialmente delimitar categorias baseadas em seu conhecimento neurológico para, somente após falhar, partir então para a completa dependência de categorias exclusivamente psicológicas. O desenvol­vimento posterior da Psicanálise deu-se dentro do contexto clínico de atendimento e os modelos desen­volvidos dentro da interação entre clínica e teoria.

O Projeto, se transposto para o ambiente atual de desenvolvimento neurocientífico, seria o equivalente ao desenvolvimento teórico de redes neurais e pro­cessamento matemático (não-linear) de informação. Existem diversas maneiras diferentes de mecanismos físicos processar informação. A mais conhecida é a maneira como computadores trabalham. A maior parte das teorias iniciais de psicologia cognitiva assu­mia este tipo de arquitetura computacional. Modelos modernos de arquitetura computacional de Processamento Distribuído Paralelamente (PDP) são utilizados(2).

Sistemas PDP consistem em um grande número de unidades interconectadas similares a neurônios. As conexões têm pesos variáveis que determinam o quanto de ativação flui entre as unidades. Cada parte da rede funciona localmente e paralelamente com outras partes. Representações consistem em padrões de ativação distribuídos sobre a população de unida­des e memória consiste no padrão de força das cone­xões, distribuído entre as unidades. Ativações podem ser discretas ou contínuas e podem ser aumentadas na direta proporção da soma do estímulo (função de ativação linear) ou como função não-linear do estímu­lo (geralmente uma função em forma de sigma). A conectividade pode ser unidirecional ou bidirecional (ou interativa).

Algumas redes possuem unidades ocultas entre suas camadas, capazes de transformar padrões de entrada em padrões esperados de saída (em redes não-lineares). O aprendizado em redes neurais con­siste na modificação dos pesos entre suas unidades, que pode ser não supervisionado (ou auto-organiza­do; o algoritmo de Hebb é um exemplo clássico: "uni­dades que disparam juntas", conectam juntas) ou supervisionado.

Porém a modelagem computacional por redes PDP tem limitações tecnológicas. Modelos de PDP se diferenciam de redes neurais biológicas de diversas maneiras. Mesmo o maior modelo PDP é minúsculo se comparado ao cérebro; modelos PDP possuem apenas um tipo de unidade (comparada com a multi­plicidade de neurônios), apenas um tipo de ativação, excitatória ou inibitória (comparada com os inúmeros neurotransmissores) e sua modelagem não considera a complexa microcircuitaria e anatomia cerebral. Modelos PDP devem ser vistos como simplificações do cérebro capazes de possuir atributos relevantes para o desenvolvimento teórico, como o uso de repre­sentações distribuídas, modificação de conexões, desenvolvimento de regras de somação, ativações grupais e limites de ativação. Todos os modelos PDP possuem aspectos realistas e não realistas. Seu suces­so ou falha é relacionado à necessidade de depender criticamente de suas características não realistas para generalização teórica.

Críticos do modelo computacional de ciência cog­nitiva(6) aceitam a visão computacional (expressa por meio da matemática, da álgebra linear, na qual a com­putação é expressa como o mapeamento de um vetor de entrada para um vetor de saída), mas apontam para a importância da "participação" do Eu na auto-organização do todo. A proposta é a utilização de sis­temas de dinâmica não-linear cujas equações possam ser pensadas como a trajetória em um espaço de múl­tiplas dimensões ou hiperespaço preenchido com "atratores" e "repulsores". O ambiente somático se encontraria em fluxo contínuo, assim como as redes neurais se manteriam em constante afinamento. Os acertos da trajetória no supernível neural definiriam a linha da consciência. Tal visão não é limitada pelas manipulações matemáticas inerentes ao processa­mento (passivo) de informação, mas ressalta a mate­mática e neurobiologia dos aspectos auto-organiza­cionais do sistema.

Não foi por menos que a tentativa de Freud criar um modelo puramente neurológico da mente falhou. O modelo proposto no Projeto é contemporâneo e muitas das complexidades computacionais para sua execução são limitadas mesmo dentro do desenvolvi­mento tecnológico atual. Mas o que dizer dos méto­dos de investigação in vivo do cérebro humano? Será possível desenvolver categorias "de baixo para cima" utilizando métodos funcionais, como a Tomografia por Emissão de Pósitrons (PET), Ressonância Magnética Funcional (fMRI), Mapeamento Cerebral (BEAM) ou a aplicação sistemática de testes neurop­sicológicos?

O desenvolvimento tecnológico está em franco progresso, e investigando por meio de métodos que possibilitam estudar a atividade cerebral em tempo adequado para sua comparação sistemática com estados psicológicos e, portanto, para a construção sistemática de modelos de psicolo­gia normal "de baixo para cima" com padrões emer­gentes de atividade quantitativamente medidos, apesar da maior parte das imagens de PET scan, por exemplo, levarem diversos minutos para ser adquiridas pelo apa­relho. Exceções são imagens "de água", que corres­pondem ao fluxo cerebral, mas mesmo estas são limi­tadas pela quantidade de radiação envolvida e a baixa qualidade das imagens produzidas (não é sem motivo que, tradicionalmente, imagens de PET são pareadas com imagens de ressonância magnética para melhor identificação anatômica).

Estudos modernos com PET tentam contornar estas dificuldades por meio da construção de mode­los matemáticos que predigam a seqüência e propor­ção de regiões estimuladas, por exemplo, por ima­gens visuais e comparando a seguir o resultado calcu­lado por modelagem com aquele observado pelo apa­relho. Trata-se de cálculo bastante sofisticado que visa identificar redes neurais in vivo, mas ainda restri­to a modelos de estimulação claramente delimitada, como o processamento perceptual.

O uso de fMRI (ressonância magnética funcional) tem sido promissor pois não utiliza radiação e produz ima­gens de aquisição rápida, porém a utilização de estí­mulos psicológicos como padrão de ativação tende a produzir resultados erráticos. A fMRI produz resul­tados mais consistentes quando estímulos biológicos são utilizados (como por exemplo a infusão de inter­leucina-6 para verificar o padrão cerebral que leva à ativação de resposta de estresse na periferia). Finalmente, o uso de mapeamento cerebral e poten­ciais evocados têm a vantagem de produzir informa­ção em tempo pequeno (milisegundos), mas limitada à mensuração (primariamente) cortical (e distorções de estruturas subcorticais); os eletrodos são grandes e abarcam uma grande região cerebral o que também limita sua interpretação. Outras técnicas, como men­suração neuroendócrina, espectroscopia etc. também possuem limitações que impedem o seu uso para construir sistematicamente categorias "de baixo para cima" de funcionamento neural que possam ser gene­ralizadas para categorias mentais clinicamente obser­vadas.

Modelos etiopatogênicos e patofisiológicos: a testagem de modelos psicológicos

Mas se o desenvolvimento de categorias de "baixo para cima" ainda é tecnologicamente limitado, o mesmo não se pode dizer da testagem de modelos psicológicos de "cima para baixo". Modelos de "cima para baixo" utilizam dados clínicos em associação com modelos neuropsicológicos, para, então, formu­lar hipóteses neuroanatômicas e construir teorias bio­lógicas. As técnicas descritas acima vêm sendo inten­samente utilizadas para testar hipóteses em transtor­nos do Campo Psi, como esquizofrenia, doenças afeti­vas, transtornos de ansiedade, distúrbios de persona­lidade. Experimentos com PET abordam a hipótese dopaminérgica em esquizofrenia, a mensuração de movimentos oculares busca a distribuição de traços genéticos do distúrbio em pacientes e familiares. O uso de métodos tradicionais de neuropsicologia, em conjunção com estudos funcionais e anatômicos de imagem é de papel instrumental no desenvolvimento e testagem de hipóteses de funcionamento frontal e circuitos frontossubcorticais(10,11).

Mark Solms(13) propôs um modelo de integração entre o conhecimento neurocientífico e psicanalítico que aborda como o aparato mental concebido em psi­canálise poderia ser representado nos tecidos cere­brais. O conhecimento neuropsicológico geral, adqui­rido tradicionalmente por meio do estudo destes pacientes não pode ser diretamente traduzido em ter­mos psicanalíticos devido a diferenças metodológi­cas. A idéia do pesquisador é utilizar métodos psica­nalíticos de observação para a investigação de fenô­menos mentais em indivíduos com lesões cerebrais localizadas.

"Solms(13) expande a hipótese de Freud(4) e propõe que o Ego coincida anatomicamente com a expansão corticotalâmica que separa mundos internos e exter­nos. O Ego se originaria na superfície dos córtices perceptuais primários e motores e terminaria no anel límbico no interior cerebral. Sua função básica seria mediar mundos interno e externo através do estabe­lecimento de barreiras entre as superfícies senso­riomotora. Tais barreiras seriam construídas durante o processo de desenvolvimento, com base nos regis­tros mnêmicos de conexões entre percepções externas e internas. O Ego seria responsável pela interposição de memória entre impulso e ação e pela produção de atenção, julgamento e pensamento. Os limites anatô­micos do Ego não devem ser confundidos com sua esfera funcional de influência (de maneira análoga à teoria metapsicológica, que não confunde topografia com dinâmica). O pesquisador aponta para a ação da região pré-frontal sobre estruturas ativadoras nuclea­res como um exemplo desta distinção. Para ele, o Ego é igualmente comandante e servente das forças que regula(13).

O Id teria seu epicentro neural na substância cin­zenta ao redor do terceiro e quarto ventrículos e pro­jetaria sua ação rostralmente, através do sistema reti­cular ascendente. O hipotálamo seria responsável por sua regulação, assim como pela adaptação da perife­ria por meio dos sistemas neurovegetativo e endócri­no. O sistema ativador ascendente é influenciado por informações de regiões corticais posteriores (informa­ção relativa a necessidades biológicas e perigos ambientais) e por programas relacionados a metas formuladas por regiões anteriores. Desta forma, o Id seria influenciado e influenciaria a realidade, através de sua interação com o Ego, desenvolvido a partir de sua experiência cortical. Enquanto os órgãos senso­riais e motores da periferia tendem a se ligar direta­mente ao Ego, órgãos vitais no interior do organismo (inclusive sistema reprodutor) se relacionam direta­mente ao Id. Portanto, o Id teria contato direto com o mundo externo por meio das emergências das vísce­ras nos orifícios mucosos da boca, ânus e genitais, as zonas erógenas da teoria clássica da libido.

A expansão cortical anterior ao córtex motor pri­mário é a última a amadurecer no neuro-desenvolvi­mento. Ela codifica seqüências proposicionais por meio de uma série de retranscrições de padrões de atividade motora (e cognitiva). A estruturação da região pré-frontal poderia ser considerada como o desenvolvimento do processo secundário. O desen­volvimento do superego, como subespecialização do Ego, também envolveria o amadurecimento de re­giões pré-frontais específicas. Finalmente, um papel importante para o Ego seria o desenvolvimento de transcrições simbólicas (e de linguagem) que exerce­riam um papel crucial de proteção contra superesti­mulação por meio da organização da infinita diversi­dade de coisas externas reais em categorias léxicas.

Dualismo salvador?

O dualismo mente-cérebro vem servindo bem à ciência. É curioso como a psicologia e a neurologia se desenvolveram em espelho, cada qual focando em sua metodologia. A questão é se de fato é chegado o momento de executar o salto que une categorias metodologicamente diversas. De certa forma, o salto já está ocorrendo no que diz respeito à testagem de teorias psicológicas e psicopatológicas para transtor­nos mentais por intermédio dos avanços tecnológicos já disponíveis(7,8).

Entretanto, estamos ainda longe de desenvolver teorias sistemáticas "de baixo para cima". Teóricos como Solms podem se utilizar de conceitos freudianos para criar hipóteses de integração entre o mental e o físico. Tais hipóteses podem ser testadas fisicamente e, portanto, o desenvolvimento da psi­canálise como "ciência natural" já faz parte do coti­diano científico. Entretanto, elas partem de categorias firmemente ancoradas de "cima para baixo", seja sob o ponto de vista de teoria psicanalítica, seja sob ponto de vista de dados neuropsicológicos.

O ponto inicial de investigação parte de um fato sem paralelo: a consciência(1,3). Será o produto do "Eu" consciente nada mais que um construto da consciência ou uma conseqüência necessária do cére­bro que produz a consciência? A questão do qualita­tivo versus quantitativo, formulada por Freud, continua sem resposta definitiva. Questões relativas a isomor­fismo, redução ponto-a-ponto, paralelismo, analogia e homologia devem ser respondidas com a metodolo­gia neurológica ou filosófica?

Talvez o desenvolvimento tecnológico ocorra de maneira inesperada e possibilite o uso de máquinas de alta definição capazes de quantificar os diferentes aspectos funcionais do sistema nervoso com menos limitações. Talvez seja possível o desenvolvimento de redes neurais de alta complexidade e programas matemáticos capazes de analisá-Ias. Os principais físicos contemporâneos foram teóricos e postularam suas teorias anos antes da possibilidade de sua testa­gem empírica. Talvez os cientistas atuais do Campo Psi sejam matemáticos, envolvidos com modelagem do funcionamento neural, capazes postu­lar a psicologia científica "de baixo para cima" ante­vista por Freud em 1895.

Referências bibliográficas

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