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Coerção como subcategoria de controle escolhido no período do sistema escravista

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Alex Franco; Fábio dos Santos; Murillo Mendes; Nara Moraes; Patrícia Vaz

Universidade Federal da Bahia

RESUMO
O artigo analisa aspectos da trajetória do controle coercitivo no contexto da sociedade escravista do Brasil. A partir da identificação de contingências aversivas, desde o início com o tráfico de escravos da África para o Brasil até as diferenças sociais dos dias atuais, verificamos o quanto estamos imersos num modelo de coerção social por vezes aceita como natural. Através da análise do sistema escravista empregado no território brasileiro, discutimos a coerção como forma de controle e de contracontrole que é habitualmente empregada até hoje pela nossa sociedade, evidenciando os subprodutos típicos do controle coercitivo – violência, agressão, opressão, inflexibilidade emocional, autodestruição e destruição dos demais, ódio, doenças e estado geral de infelicidade.
Palavras-Chave: Coerção; contracontrole; sistema escravista; subprodutos típicos

“E se o castigo for freqüente e excessivo, ou se irão embora, fugindo para o mato, ou se matarão por si, como costumam, tomando a respiração ou enforcando-se, ou procurarão tirar a vida aos que lha dão tão má, recorrendo se for necessário a artes diabólicas, ou clamarão de tal sorte a Deus, que os ouvirá e fará aos senhores o que já fez aos egípcios, quando avexavam com extraordinário trabalho ao hebreus, mandando as pragas terríveis contra suas fazendas e filhos.”
(Antonil, Cultura e Opulência no Brasil, 1967)

Através deste trecho, André João Antonil condensou a idéia do uso de uma subcategoria do controle comportamental e suas implicações no contexto escravista. Traduzindo para a linguagem behaviorista assim ficaria: “Se a coerção for freqüente e excessiva, ou desistirão (fuga), ou utilizarão a forma última de fuga (suicídio), ou gerarão contracontrole, ou se esquivarão através de diversos comportamentos”.

O período da escravidão no Brasil constituiu uma época de utilização intensa e aberta da coerção. Do escravo, a sociedade branca esperava fidelidade, obediência e humildade. Essas três qualidades especiais conformam a personalidade do bom escravo. Para que essas expectativas da aristocracia fossem alcançadas o uso da punição e da ameaça de punição foi largamente empregada.

As contingências que controlavam o comportamento dos negros escravos inseriam continuamente estímulos aversivos, produziam algo que normalmente seria um reforçador negativo. Esse tipo de contingência denominada punição, ocorria quando os senhores queriam que uma ação do escravo fosse seguida ou pela perda de reforçadores positivos, a exemplo da comida, de água ou descanso, ou pelo ganho de reforçadores negativos, tais quais o castigo, o tronco, o pelourinho, o chicote.

As contingências aversivas no decorrer da vida de escravo tem maior repercussão a partir do tráfico negreiro. Logo de início, os controladores punem negativamente os negros retirando-lhes reforçadores positivos tais como terra-natal, presença de familiares e “liberdade”. Em seguida, a viagem da África para o território brasileiro torna-se uma situação coercitiva devido às deploráveis condições de alojamento e de alimentação. No porão dos navios eram alojados 200 a 300 negros ficando disponível para cada um, um mínimo de espaço possível. A alimentação era apenas feijão e carne salgada, comida esta que os negros não estavam acostumados, além de faltar água. Associado a isso, as contingências ambientais deixavam a situação ainda mais dolorosa: o calor ardente do Equador e a fúria das tempestades.

Durante a viagem já é possível identificar alguns dos subprodutos da coerção. O controle aversivo a qual estavam submetidos, fazia com que os negros se revoltassem. Mas ao menor sinal de motim, não se distinguia ninguém; os controladores faziam impiedosas descargas de fuzil no porão repleto de mulheres, homens e crianças. A punição e a privação levam a agressão. Mas coerção induz mais do que apenas o ato agressivo em si mesmo. Depois de ser punido, um sujeito fará qualquer coisa que possa para ter acesso a outro sujeito que ele possa atacar. Acontece que desvairados pelo desespero, os negros furiosos se atiravam contra seus companheiros ou rasgavam em pedaços seus próprios membros. Para alguém que acabou de ser punido, a própria oportunidade para atacar prova ser um reforçador positivo.

Chegando ao Brasil, os escravos sobreviventes de todas as situações aversivas da viagem, são conduzidos para a negociação com os senhores. Vendido, o escravo assume tarefas, trabalhos árduos em favor de seu amo. O modelo de escravidão não visa manutenção de nenhum reforçador positivo. Se em alguma coisa discrepa, é logo mandado castigar. Os escravos metidos nesta tortura, sustentando o horrível combate da vida com a morte, tremendo, e sendo obrigados a miúdo a comparecerem como réus: alguns tornavam o fôlego, e morriam; outros passavam navalhas às goelas; outros lançavam-se aos poços; outros precipitavam-se das janelas, das grandes alturas; outros finalmente matavam a seus senhores. Este comportamento é caracterizado pelo behaviorismo como uma contra-reação quase automática gerada por coerção severa.

Todo controle coercitivo só funciona em longo prazo se o controlador tiver uma população cativa. Mas a coerção inevitavelmente produz um de seus mais proeminentes efeitos colaterais: contracontrole. Os escravos acabaram por se dar conta da própria força, ocorrendo assim uma insurreição parcial em alguns engenhos da Bahia e houve receio de que ela se espalhasse até Pernambuco. Essas várias conspirações e tentativas de revolta caracterizam alguns contracontroles iniciais sob sistema escravista.

Inquietos com essas estimulações aversivas, os escravos elaboravam meios de resistir contra seu opressor imediato, isto é, o senhor. A resistência assumiu várias formas: fuga, suicídio, assassinato, passividade no trabalho, etc. Em qualquer uma dessas formas, o escravo negava a sua condição e se contrapunha ao funcionamento do sistema como um todo. A fuga, entretanto, foi a mais significativa forma de resistência e rebeldia. Não só pela fuga em si, mas pelas suas conseqüências: os fugitivos se reuniam e se organizavam em núcleos fortificados no sertão, denominados Quilombos, desafiando as autoridades coloniais.

Palmares foi o maior quilombo formado no Brasil e funcionava como pólo de atração para outros escravos, ou seja, Palmares se tornou um importante contracontrole da história dos escravos. Como o controle desencadeia um ciclo, Palmares (contracontrole) desencadeou um contracontracontrole: várias expedições foram feitas contra ele, mas nenhuma foi efetiva. Apenas em 1694, um bandeirante contratado conseguiu finalmente destruir Palmares, caracterizando o sucesso do contracontracontrole instituído.

Além dos Palmares, houve ainda uma outra notável tentativa de contracontrole efetivo: o Levante dos Malês. Esta rebelião foi planejada por participantes que haviam tido experiências anteriores em combates na África. Avisados desta tentativa de contracontrole, as autoridades organizaram imediatamente um contracontracontrole para a repressão do movimento. O confronto durou aproximadamente 3 horas levando ao fracasso do contracontrole dos rebeldes escravos. Se levarmos em conta outras variáveis tais como a instabilidade política, o levante dos malês foi motivo de grande inquietação para as camadas dominantes do país.

De fato, a escravidão no Brasil era generalizada e não se concentrava apenas nas grandes propriedades. Nas cidades, a exemplo de Salvador, ter escravos era aspiração comum de todos os homens livres. Não era excepcional ex-escravos, que alcançaram a alforria por meio de agressões e revoltas, tornarem-se donos de escravos. Esta situação é no mínimo curiosa.

Do ponto de vista comportamental, retaliação bem sucedida provê reforçamento rápido e poderoso. A partir desse fato, é fácil ver como a agressão poderia tornar-se um novo modo de vida para os inicialmente subservientes. A agressão que levou às novas vantagens pode agora ser usada para ajudar a mantê-las. Desta forma, os ex-escravos transformaram-se em cópias carbono do controle que “derrubaram”; o ciclo de coerção e represália repete-se incessantemente.

Em 1850, é assinada a Lei Eusébio de Queiroz que proibia o tráfico de escravos. Em 1871, foi aprovada a Lei do Ventre Livre que declarava livres os filhos de escravos. Em 1885, é aprovada a Lei dos Sexagenários, estabelecendo liberdade aos escravos com mais de 60 anos. Em 1888, a princesa Isabel promulgou a Lei Áurea, declarando extinta a escravidão no Brasil. Naturalmente, a abolição da escravatura não foi obra exclusiva dos abolicionistas. Como demonstraram as fugas e rebeliões ao longo de toda a história do Brasil, os escravos não permaneceram passivos. A possibilidade de um levante escravo de grandes proporções foi considerada e atemorizou os escravistas, enfraquecendo a sua resistência ao movimento. A longo prazo, as medidas de contracontrole funcionaram. As tentativas anteriores de contracontrole efetivo abriram caminho para o sucesso do contracontrole final.

Contudo, os escravos recém libertos, viram-se sem rumo. Eles estavam totalmente inseridos no controle do sistema escravista. Essa situação parece contraditória: “quando eram escravos, lutavam por liberdade; agora que estão livres não sabem o que fazer?”. Analisando comportamentalmente, essa singularidade é perturbadora. Ações, crenças ou aparências não convencionais ameaçam sua segurança. E quando as condições mudam, quando a sociedade relaxa algumas contingências e estreita outras, elas freqüentemente são incapazes de adaptar-se; mudanças as ultrapassam, a mudança torna as coisas inicialmente piores. Estes são subprodutos infelizes de coerção “efetiva”. Essa sensação de não adaptação é ilustrada perfeitamente num trecho do livro “Bons Dias” de Machado de Assis:

“[…] No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
– Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que…
– Oh! Meu Sinhô! Fico.
– … Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo; tu cresceste imensamente. Quando nascestes, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos…
– Artura não qué dizê nada, não, sinhô…
– Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis; mas é de grão em grão que a galinha enche o papo. Tu vales muito mais que uma galinha.
[…] Pancrácio aceitou tudo; aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por não me escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.
Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio; daí para cá, tenho lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e, (Deus me perdoe!) creio que até alegre.” (Machado de Assis, ‘Bons Dias’, p. 489-491)

A distância que separava o ex-escravo da condição de cidadão era enorme, como continua enorme até hoje a distância que separa a população negra da mesma condição. A contínua postulação moral – “a oportunidade está disponível para todos” – apenas produzirá mais amargura e contracontrole violento. Hoje, como no século XIX, não há possibilidade de fugir para fora do controle. Não há quilombo possível, nem mesmo cultural. A luta é de todos e é dentro do controle.
Conclusão
Ao descobrirmos e analisarmos as origens do comportamento cada vez mais complexo somos obrigados a concluir que não controle é uma ilusão. Mas não precisamos punir para evitar ou impedir as pessoas de agir como queremos que ajam ou de agirem mal. Podemos alcançar o mesmo fim com reforçadores positivos, sem produzir os indesejáveis efeitos colaterais da coerção.

“Se nunca tivéssemos escravizado uns aos outros, o ideal de liberdade da servidão não teria sido necessário. Mas genericamente, se não tentássemos controlar uns aos outros por ameaças de punição, privação, restrição e perda, todos teríamos sido livres sem que jamais o conceito de liberdade tivesse surgido. Liberdade seria então um fato da vida, mas o termo, nas suas conotações atuais, jamais teria sequer adentrado nossa linguagem.” (Sidman, ‘Coerção e suas implicações”, p. 42-43)

Bibliografia
ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1967
KOSHIBA, Luiz ; PEREIRA, Denise M. F. História do Brasil. São Paulo: Atual,1996
MACHADO DE ASSIS, Bons dias!, John Gledson (org.), São Paulo: Hucitec, 1990.
SIDMAN, Murray. Coerção e suas implicações. Editorial Psy, 1995

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