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O Fenômeno do Remorso – Considerações teórico-clínicas

Analisaremos o fenômeno do remorso, com vistas a seu embasamento teórico, bem como às suas implicações clínicas.

Nosso interesse precípuo na elaboração deste trabalho é o de enfocarmos o "remorso", com seu companheiro quase que inseparável, o "ressentimento", os quais acabam por se constituir em expressivos entraves para o desenvolvimento da vida interior, redundando em inibições não menos expressivas, no que tange à vida afetivo-social de quem deles padece.

Procuramos também configurar o estabelecimento de uma ponte em relação aos conceitos de "Narcisismo", "pulsão de morte", "sentimento de culpa", além de outros que aparecerão no decorrer desta apresentação.

Partiremos da definição do remorso, afirmando que o mesmo se constitui "num pesar interno, o qual produz na alma, o ter realizado uma ação má. Tratar-se-ia de uma inquietude que desperta a memória de uma culpa, crescida clandestinamente na obscuridade. Esta culpa põe em evidência o acionar de um castigador interno, que cumpre as suas funções de tortura no próprio sujeito. Essa tortura pode ocorrer de forma alternada ou permanente". (Luis Kancyper)

O sujeito com remorso acaba entrando numa busca contínua por perdão, o qual não poderá ser obtido por encontrar-se referenciado a uma culpa que, sob certos aspectos, ele não tem consciência. Assim, essa dívida interna acaba por constituir-se em algo impagável.

Freud descreveu o remorso como sendo a manifestação do sentimento de culpa. Optamos aqui, por citar as suas próprias palavras; no trabalho de 1924, " O problema econômico do masoquismo", ele nos diz: "Os pacientes não acreditam facilmente em nós, quando lhes falamos sobre o sentimento inconsciente de culpa (…), não podendo admitir que abrigam em si mesmos esses impulsos, sem estarem conscientes de sua existência".

"O remorso não seria monocausado, isto é, além da existência do sentimento de culpa, existiria também uma exigência interna de manifestar um comportamento auto-punitivo e repetitivo, o qual estaria a serviço da necessidade de padecer de um sofrimento de cunho masoquista".


Relação entre o remorso e a pulsão de morte

Segundo Kancyper, o remorso seria o resultado de uma "construção", ou seja, teria sua raiz inconsciente e a sua elaboração seria feita, em certa medida, de forma consciente. Seria como uma fórmula transacional, construída sobre o sentimento inconsciente de culpa, pois o sujeito ignora a verdadeira natureza dos desejos, em especial, os agressivos que o sustentam. O remorso se apresenta sempre com duas facetas muito ligadas, a saber: o sentimento de culpa e o auto-castigo.

Na conferência de número "32", das "Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise", "Angústia e Vida Pulsional", de 1932, Freud faz referência sobre a distribuição de Tanatos no ego, no superego e no Id e faz a diferença entre a pulsão de morte ligada e a não-ligada, além de suas relações com a necessidade inconsciente de castigo e com o sentimento de culpa inconsciente.

Freud acabou por achar mais adequada a utilização do termo "necessidade de castigo" em detrimento do "sentimento inconsciente de culpa", até porque talvez o sujeito não se sinta culpado em sua experiência vivencial. Mas, neste ponto não deixa de introduzir uma diferença: enquanto a necessidade de castigo designa uma força que tende para a aniquilação do sujeito, o sentimento de culpa consciente ou inconsciente estaria reduzido sempre a uma mesma relação tópica: a do ego com o superego (J. Laplanche e J-B. Pontalis).

Tipos de remorso

* a) primário e secundário
* b) pré-edípico e edípico
* c) básico e fraterno
* d) originado pela culpa e pela vergonha

O remorso originado pela culpa, está relacionado com a memória de perda da marca traumática, que deixa uma ação condenável, pela qual o superego reclama, mediante o sentimento de culpa, um castigo implacável.

Já, o remorso por vergonha, está relacionado com um sentimento de inferioridade, por não se ter cumprido os ideais próprios, bem como com os parentais.

Existe uma enorme dificuldade em se estabelecer uma delimitação conceitual precisa, embora ambas apresentem diferenças, enquanto às suas manifestações clínicas.

Laplanche e Pontalis, citam uma observação de Daniel Lagache, o qual faz depender mais especialmente o sentimento de culpabilidade, do sistema superego-ideal do ego e o sentimento de inferioridade do ego ideal.

Sabemos que durante sua vida, Freud foi leitor assíduo dos grandes poetas e dizia que estes "nos permitem aperfeiçoar nossos conhecimentos sobre a alma humana".

Para objetivarmos nossa finalidade inicial, citaremos dois poetas muito expressivos: em primeiro lugar, citamos Charles Baudelaire, o qual retrata o intenso sentimento de culpa, com a cruel necessidade de castigo, originada por uma relação intrapsíquica torturante e sadomasoquista:

"Carrasco de si mesmo"

Sem cólera te golpearei
E sem rancor, tal açougueiro
Como na rocha Moisés
Eu sou a ferida e a faca
A face e a bofetada
Eu sou os membros e a roda
E a vítima e o carrasco
Sou o vampiro de meu sangue
Um desses abandonados
Condenado ao riso eterno
Cujo sorriso é impossível

O outro poema é de autoria de Jorge Luis Borges e ilustra o remorso originado pela vergonha, decorrente da pressão sempre renascente entre o ego e as instâncias ideais da personalidade:

"O Remorso"

Senti o pior dos pecados
Que um homem pode cometer,

Não fui feliz
Que as geleiras do esquecimento
Me arrastem e me percam sem piedade
Os enganei,

Não fui feliz
Meus pais me geraram para o jogo
Arriscado e formoso da vida
Para a terra, a água, o ar, o fogo, Cumprida
Não foi sua jovem vontade. Minha mente
Se aplicou às simétricas porfias
De arte que entretece ninharias
Me legaram valor, não fui valente
Não me abandona, sempre está a meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.

O Remorso pré-edípico e edípico: essas são classificações que se dão segundo a origem, a natureza do sentimento de culpa e a necessidade de castigo.

Aqui, devemos entender que as diferenças fenomênicas acham-se condicionadas pela interação particular que se desprende da intensidade do sadismo da instância crítica e punitiva, bem como do estado de coesão egóico.

Ainda com relação à culpa, encontramos em León Grinberg, duas modalidades:

-a culpa persecutória
-a culpa depressiva

Segundo Grinberg, um dos principais conteúdos na experiência da culpa persecutória, é precisamente o ressentimento, que não só pode ser experimentado com relação ao objeto, mas também em relação ao próprio ego.

Já, na culpa depressiva, o que predomina é o penar e a preocupação pelo ego e pelo objeto, a nostalgia e a responsabilidade. (…) Quanto maiores são o ressentimento e o remorso, maiores serão a culpa e a perseguição e, mais difícil será a elaboração dos lutos.

Remorso básico e fraterno:

A partir da diferença que se estabelece entre o Complexo de Édipo e o Complexo fraterno, os remorsos poderão assim ser classificados:

Os remorsos básicos que remetem ao complexo edípico, estão relacionados com a culpa mais intrínseca e essencial, que é a culpa por existir. O nascimento do filho firma a imortalidade e a sentença de morte dos progenitores, da mesma forma que lhes dá continuidade, os aniquila, uma vez que é o filho que sobrevive.

A sobrevivência do filho, sela a morte do pai. Contudo, esse pai morto torna-se um credor, e o filho vivo, o devedor de uma dívida que jamais será saldada em sua plenitude, já que também constitui uma função estruturante para o sujeito.

Recolhemos da sabedoria popular que um filho, ao nascer, traz um pão debaixo do braço. Porém, para quem? Para alimentar as carências do sistema narcisista parental. O filho nasce, portanto, programado e predestinado a cumprir uma missão e o seu não cumprimento, age como uma fonte permanente de culpabilidade, por ele ignorada, mas que não cessa de agir e de produzir os seus efeitos nocivos.

Acha-se inscrito no "Grande Livro da Dívida", o qual é escrito através de dois registros: o narcisista e o edipiano (J. Lacan).

A dívida narcisista (o filho como o falo da completude parental) e a culpa edípica (o filho como herdeiro que sobrevive aos pais), convergem para constituir os remorsos básicos ou primários do conflito humano.

Remorso primário e secundário:

Assim os remorsos são classificados, quando relacionados ao ressentimento.

Podemos assim resumir:

-o indivíduo ressentido contabiliza injustiças.
-o indivíduo com remorso, coleciona dívidas.

Gostaria de encerrar essa apresentação, deixando claro que pretendo, no próximo texto, abordar as "conseqüências clínicas", resultantes das questões acima abordadas, como por exemplo, a sua influência na depressão, na melancolia, nos distúrbios gastro-intestinais, bem como psicossomáticos em geral.

Bibliografia

"Ressentimento e Remorso"

Luis Kancyper. Ed. Casa do Psicólogo

"Teoria Psicanalítica da Libido"

Karl Abraham. Ed. Imago

"Inibição, sintoma e angústia"

S. Freud. Obras completas. Imago editora.

Acesso à Plataforma

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