Resumo
Estamos absolutamente convencidos que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o ser humano é um indivíduo bio-psico-social. Saúde se define pelo bem-estar desta indissolúvel tríade. Também estamos convencidos de que, por vivermos numa sociedade irremediavelmente patológica estamos, de acordo com a OMS, todos doentes.Neste breve artigo destacamos a díade cérebro-cultura, e, da sua interação, a emergência da linguagem humana. Não nos furtamos em tomar uma posição definida dentre as três possibilidades apresentadas.
DESCRITORES: 1. Filosofia da Mente; 2. Ciências do Cérebro; 3. Ciência Cognitiva; 4. Biologia Evolucionária; 5. Lingüística
Abstract
We are absolutely convinced that, like to proclaim the World Health Organization (WHO), the human being is a individual bio-psycho-social. Health was defined by the well-being of this indissoluble triad. We are also convinced that, on account of our existence was immerse in a society terrifically pathological, we are all sick.In this short article we focalize the dyad brain-culture, and, by yours interaction, the emergency of human's language. We show our option in the three existents hypothesis.
"[…] pois eu não era mais uma criança que não falava, mas um menino falante. Lembro-me disso, e desde então venho observando como aprendi a falar. Não eram os mais velhos que me ensinavam palavras […] num sistema metódico; mas eu mesmo ansioso por expressar meus pensamentos por meio de gritos e pronúncia imperfeita e por vários movimentos dos meus lábios, eu que já tinha minha vontade mas ainda era incapaz de exprimir tudo o que eu queria, ou a quem eu queria, eu mesmo, pelo entendimento que me deste, ó meu Deus, fixava na memória os sons […].
E assim, ouvindo constantemente palavras, à medida que ocorriam nas várias frases, eu ia aos poucos compreendendo seu sentido; e, havendo rompido meus lábios a esses signos, eu ia enunciando. Assim, passei a transmitir aos meus circunstantes os signos de expressão de nossa vontade e assim lancei-me mais profundamente na tempestuosa sociedade da vida humana […]".
Agostinho The confessions [397 dC] (1949)
INTRODUÇÃO – DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM NA CRIANÇA
O mistério de como uma criança aprende a falar tem intrigado e confundido adultos desde a Antigüidade, sem dúvida milênios antes das especulações de Agostinho1 (354-430), que colocou a origem da linguagem na razão do homem, como o fizeram os estóicos, e comparou a evolução da linguagem com o seu desenvolvimento nas crianças. As questões relativas às origens das capacidades e conhecimentos humanos sempre foram fundamentais para as teorias filosóficas. As capacidades mentais de uma criancinha parecem bastante limitadas em muitos sentidos; todavia; ela domina a estrutura extremamente complexa de sua linguagem natural durante o curto período de uns três ou quatro anos.
Além disso, cada criança, exposta a uma amostra diferente de linguagem e geralmente com pouco ou nenhum ensino consciente da parte de seus pais, chega essencialmente à mesma gramática e regras de uso da linguagem nesse breve período. Noutras palavras, cada criança rapidamente se torna um membro bastante amadurecido da sua comunidade lingüística, capaz de produzir e compreender uma variedade imensa de enunciados novos, mas significativos na linguagem que ela aprendeu. É sugestivo de que alguma teoria sobre a natureza da linguagem esteja intimamente relacionada com a teoria a respeito da aquisição e uso da linguagem. As teorias lingüísticas modernas, expostas em termos de regras produtivas, têm oferecido um sério desafio às teorias psicológicas da aprendizagem. Alguns pressupostos: 1º. Seguindo a equação básica da Genética temos: Genótipo + Meio Ambiente = Fenótipo2º. Aplicando à Filosofia da Mente: Cérebro (gene) + Cultura (meme) = Mente e Linguagem3º. O problema da relação Gene e Meme4º. Quanto à aquisição da linguagem podemos ter duas posições radicais:1. A Linguagem depende somente do gene2. A Linguagem depende somente do meme 5º. Ou, uma terceira posição, mais prudente: 3. A Mente e a Linguagem dependem da Interação Cérebro/Cultura.
1. O PROBLEMA DA RELAÇÃO GENE E MEME A interação cérebro/meio ambiente de há muito é fortemente considerada. Já Hipócrates2 registrava: "E os homens devem saber que de nenhum lugar, a não ser do cérebro, provém alegrias, prazeres, risos e zombarias; tristezas, amarguras, desprezo e lamentações. E por isso, de uma maneira especial, nós adquirimos sabedoria e conhecimentos, aprendemos a ver e a ouvir o que é certo e errado, doce e amargo…". Para Hipócrates toda atividade anímica é produzida pelo funcionamento cerebral. Mas, a par disso, há, pelo aprendizado, aquisição de conhecimentos, chegando-se à sabedoria, ligados ao nosso pensamento e sentimento. Como se daria essa interação?O psiquiatra Sonenreich em artigo de 19823, e em 19844, assim resume sua proposta: “O cérebro exerce funções que o tornam incomparável com qualquer outro órgão. É mais conveniente concebê-lo como um processo, como uma atividade, do que como uma massa material. Porém, é difícil pensar a mente como um produto do cérebro e muitos autores adotam posições dualistas. Achamos que cérebro e cultura podem ser incluídos em uma única estrutura, em um só sistema, hierarquicamente superior a esses dois elementos isolados, e que nos permite conceber uma nova manifestação: o psiquismo humano. Trata-se de uma maneira de formular os problemas, de um modo de abordagem”.
Ao nosso entendimento, ratificando e complementando a equação Cérebro/Cultura de Sonenreich, vem a proposta do biólogo Dawkins5, 6 de dar ao fenômeno cultural um caráter tecnicamente evolucionista. A teoria da evolução, tal como foi concebida por Darwin com a sua seleção natural, não pode ser predestinada e mostra-nos que o relojoeiro será necessariamente cego. É esta a tese defendida por Dawkins, professor da Universidade de Oxford. Assim, tal qual o gene, era preciso encontrar uma partícula de transmissão igualmente replicante, que levasse informações (bytes) culturais por entre as gerações sucessivas. Assim como o DNA surgiu num caldo físico-químico primordial, também o caldo da cultura humana estaria gerando a sua forma de sobrevivência através de entidades replicadoras. Seria uma unidade de imitação. Dawkins criou o termo, de raiz grega, meme. Da mesma forma como os genes se propagam num pool, pulando de corpo para corpo através dos gametas, os memes, também pulam de cérebro para cérebro por meio de um processo que pode ser chamado de imitação. Quando é plantado um meme fértil em nossa mente, este passa literalmente a parasitar nosso cérebro, transformando-o num veículo para a sua propagação, exatamente como um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira. Por exemplo, a idéia de Deus? Não se pode saber como ela se originou no pool de memes. De qualquer forma é tão antiga quanto a humanidade. Como se replica? Pela palavra escrita e falada, auxiliada, em muito, pelas Belas Artes. Como a idéia de um Deus tem tamanha penetração cultural? O valor de sobrevivência do meme Deus resulta de sua grande atração psicológica.
Ele fornece uma resposta superficialmente plausível para questões profundas e perturbadoras a respeito da existência. Ele sugere que as injustiças neste mundo talvez possam ser corrigidas num outro. Deus oferece uma proteção contra nossas próprias deficiências, a qual, como um placebo, não é menos eficiente por ser imaginária. Essas são algumas das razões pelas quais a idéia de Deus é copiada tão facilmente por gerações sucessivas de cérebros individuais. Deus persiste com alto valor de sobrevivência ou de poder “infectante” no ambiente fornecido pela cultura humana.E como o meio ambiente modela o cérebro?Tomando como sentido de modelar, assinalar contornos, como se daria esse processo com o cérebro, já tendo ele uma forma definida, ainda que não de maneira rígida? É distinto modelar o barro pelo escultor, pois, trata-se de matéria-prima amorfa, inerte e passiva. Assim, só podemos falar em modelagem como uma forma de relação cérebro/mundo, a partir de um longo desenvolvimento, de trocas e influências recíprocas. Desde a interação de gene/ambiente, de mundo interno/mundo externo, de vivência/experiência, até cérebro/sistema psicoimunoendócrino.Entendemos um cérebro abrindo-se para o mundo, pré-carregado por um genoma que garante sua organização e potencialidades, mas, que somente se torna pleno e individualizado a partir desta interação com o meio. Não o contato de um escultor, com um sentido predeterminado, mas com sentidos múltiplos, com ajustes de sintonia constantes, transformando seus contornos que se vão definindo permanentemente.
2. A LINGUAGEM DEPENDERIA SOMENTE DO CÉREBRO? 2a.A experiência de Psamético Heródoto7 (500 aC) refere que o rei egípcio Psamético (700 aC) ordenou que duas crianças fossem criadas por pastores que nunca lhes falassem a fim de observar qual linguagem elas desenvolveriam espontaneamente. Esta experiência é relevante à nossa discussão, mesmo num projeto tão distante no tempo, pois ela implica a crença de que as crianças abandonadas por si mesmas apresentariam uma linguagem dada pela Natureza, ou que seria a própria linguagem dos deuses. Psamético pensou que, assim, poderia demonstrar que a linguagem era mais velha que nós, e, aparentemente, não duvidava que, mesmo sem tutela, as crianças falassem. Desse modo ele queria ouvir qual palavra as crianças iriam pronunciar em primeiro lugar. Depois de se passarem dois anos, certo dia, as crianças teriam pronunciado, provavelmente ao acaso, uma única palavra, ou algo semelhante, que recebeu uma interpretação muito duvidosa e mais nada.
2.b. A experiência de Frederico II No século XIII, o imperador alemão Frederico II (1192/3-1250) ordenou a realização de experiência semelhante: alguns recém-nascidos deveriam ser separados de suas mães para serem criados por surdos-mudos. Estes jamais deveriam acariciar os bebês nem expressar qualquer tipo de afeto por eles. O imperador queria saber que tipo de idioma as crianças falariam. As crianças não desenvolveram palavra alguma, não apresentaram sequer qualquer indício de linguagem e morreram precocemente.
3. A LINGUAGEM DEPENDERIA SOMENTE DA CULTURA? 3.a. As crianças-lobo Só foi possível, recentemente, se ter alguma certeza acerca do homem isolado e desprovido de linguagem. Durante muito tempo reinaram várias lendas, particularmente, a dos meninos educados por lobos, como Rômulo e Remo. Duas meninas foram recolhidas em Midnapore, uma selva da índia, por um missionário, viviam no meio de um bando de lobos, em perfeita harmonia com eles. Este caso (comparável ao de Mowgli, suscita o problema da adoção ou do rapto de crianças humanas, nas duas circunstâncias, por uma loba), é mais verossímil na Índia, onde os lobos, menos selvagens, estão mais habituados ao homem. As "crianças-lobo", Kamala e Amala, como ficaram sendo conhecidas, foram encontradas pelo Reverendo Singh, em 1920, em uma caverna. O Reverendo Singh carregou as duas meninas consigo, trazendo-as ao seu orfanato. A mais velha, Kamala, teria, aproximadamente, oito anos, e a mais nova, Amala, aproximadamente, um ano e meio. Singh manteve um diário de seus progressos, por exemplo, em "29 de janeiro de 1921 – as outras crianças tentaram, ao máximo, estimulá-las a jogar com elas, mas elas se ressentiam muito, e assustadas abriam suas bocas, mostrando os dentes, às vezes, ameaçando-as com um ruído peculiar pelo nariz."
Em setembro de 1921, ambas ficaram doentes, com diarréia e disenteria. Apareceram vermes em volta de seus corpos. Amala morreu. Kamala não largava o corpo de sua irmã que tinha de ser removido do caixão. Foi difícil domesticá-la: a vida na sociedade dos lobos tornara-a tão parecida quanto possível a estes animais; ela corria rapidamente em quatro patas, uivava, preferia o contato dos lobos, não enunciava palavra alguma, nenhuma mímica emotiva (quando muito uma lágrima por ocasião da morte da irmã). Está claro que todas as "janelas de oportunidade", isto é, o momento ótimo para o aprendizado específico de certas tarefas, já haviam passado nas duas meninas. Depois de cinco anos no orfanato, Kamala pouco conseguiu falar: seu vocabulário consistia, aproximadamente, de umas 30 palavras. Estas palavras não eram as comuns do idioma inglês. Conseguia nomear objetos, mas nunca usava as palavras espontaneamente. Nos dois anos seguintes, aprendeu mais algumas palavras, mas, além disso, não houve qualquer outra mudança psíquica. Após a morte de Amala, a Sra. Singh tentou ajudar Kamala a comportar-se com modos mais humanos, como, manter-se de pé, andar, correr, a servir-se das mãos e mais ainda, a falar: chegou a umas cinqüenta palavras. Ela lambia, farejava o alimento, explorava com o olfato, mostrava uma visão noturna aguçada e o ouvido finíssimo. A ausência de riso e de sorriso era notável. Em 1929, Kamala ficou novamente doente e faleceu.Assim a vida, não isolada, mas em sociedade animal, dá ao homem um comportamento desumanizado. Isto atesta o poder de imitação da criança e não devemos observar somente suas insuficiências, é preciso evocar também esta adaptação extraordinária das meninas à vida de lobo tão pouco conforme à anatomia humana.
Trata-se, sem dúvida, de uma prova de inteligência. É o fenômeno inverso daquele que manifestam os animais domesticados que se humanizam, mas cuja impossibilidade de aprender de fato a linguagem não lhes permite uma transformação tão grande. 3b. As crianças surdas Com os surdos e os surdos-cegos, ainda mais desprevenidos, estamos igualmente diante de isolados, mas de isolados que, em geral, vivem em sociedade, quer seja a sociedade normal, quer seja uma sociedade de surdos. Se a sua enfermidade lhes suprime a motivação verbal, conservam, no entanto, o desejo de comunicar-se e vivem num ambiente sócio-cultural, num banho humano de que tentam apreender alguma coisa. Serão, pois, menos desprevenidos do que os isolados. Particularmente, a consciência do seu "eu" poderia ser despertada neles de maneira elementar, na ausência da linguagem. É difícil possuir uma opinião exata da inteligência dos surdos-mudos, porque há inúmeros intermediários entre o surdo-mudo não reeducado, hoje raridade nos grandes centros urbanos, cujo nível mental dependeria das condições de vida, sozinho, em meio de circunstantes ouvintes ou em meio de surdos, o surdo-mudo educado numa linguagem de gestos que procura transpor com dificuldade a linguagem verbal, enfim, o surdo-mudo ao qual se ensinou a falar normalmente, quer de pronto, quer tardiamente, depois da linguagem gesticulada. De outro lado, muitos surdos não são totalmente desprovidos de audição e sua insuficiência é apenas parcial. Se a surdez sobrevém em crianças normais há outros casos em que é acompanhada de insuficiências cerebrais.
Uma coisa é certa: à parte determinados casos raros de lesões cerebrais, os surdos-mudos só são mudos porque são surdos, quer de nascença, quer antes dos sete anos, porque a linguagem se esquece sem a audição, se não for suficientemente fixada pelo uso. Sua inteligência só é deficiente na medida em que seu pensamento não dispõe de um instrumento verbal, veículo da linguagem interior. Uma reeducação adequada permitiu aos surdos-mudos e aos surdos-mudos cegos atingir a mais cultura. Nada é mais notável do que ver a um tempo esta dependência da inteligência humana dos dados sensíveis, fontes de acervo cultural, e estas extraordinárias possibilidades de substituição do cérebro humano que, privado de uma fonte aparentemente indispensável, chega a construir uma inteligência normal sem audição e mesmo sem visão. A complexidade do cérebro humano torna-o apto à simbólica da linguagem, ao estabelecimento de uma linguagem interior fonte de pensamento reflexivo, qualquer que seja a via sensível pela qual se faz a educação.O homem isolado não pode nada, mas em sociedade consegue atingir uma cultura e um pensamento humano mesmo pelos caminhos mais difíceis do sentido tátil e vibratório. Embora a desumanização destes enfermos seja menor, por causa de sua vida em sociedade, do que a dos isolados, e embora permaneçam por mais tempo aptos a aprender a palavra, percebeu-se que, uma vez que eles não tinham nenhum impedimento real à articulação verbal, havia interesse em desmutizá-los o mais depressa possível, sendo o ideal desenvolver-lhes a linguagem no estádio do balbucio que apresentam como a criança normal.
É, pois, por volta dos dois anos e meio, o mais tardar, que deve começar o aprendizado da linguagem, com auxílio quer dos restos de audição, quer de tudo o que possa suprir a audição: leitura sobre os lábios, sensação das vibrações da laringe, tarefa difícil, mas capital, e que subentende uma dedicação individual em que a instrução pela mão é o ponto de partida obrigatório. Assim, os surdos reeducados na palavra possuirão uma linguagem interior normal, embora não comportando imagens auditivas.A tendência natural do surdo-mudo que deseja comunicar-se é a de exprimir se por gestos, como o faz o ouvinte em país estrangeiro; a linguagem gesticulada espontânea, sem relação com a linguagem normal, não é fonte de pensamento verbalizado; só a utilização desta linguagem pelos educadores normais, que nela transpõem em código o seu pensamento, permitirá criar por este meio uma verdadeira linguagem interior. A linguagem mímica convencional, extremamente engenhosa e capaz mesmo de noções abstratas elementares simbólicas, completada pelo alfabeto datilográfico, que permite reproduzir as letras com os dedos, segundo um código dado, tem o grave inconveniente de prestar-se mal às formas elevadas da linguagem: como vocabulário pobre, falta-lhe, sobretudo, possibilidades gramaticais importantíssimas para o desenvolvimento do pensamento, que não consegue ultrapassar o estádio jargão ou tatibitate. "Meu pai me deu uma maçã", vem a ser "maçã, pai, dar". Se a linguagem mímica é, pois, suscetível de reflexão, ela não dá senão uma linguagem interior incompleta e cria hábitos irredutíveis que não desaparecerão nem mesmo depois da reeducação verbal, o que a torna hoje condenada. Particularmente difícil era a unificação entre a língua mímica anormal e a língua escrita e lida dos surdos-mudos instruídos. Processo engenhoso para suprir a linguagem, o gesto transmite de maneira apenas incompleta a mensagem cultural; não poderia, pois, figurar na origem desta: a linguagem mímica ou a escrita estão sempre sob a dependência da linguagem oral.
O despertar do pensamento termina sempre criando no cérebro uma linguagem interior mais ou menos semelhante à do indivíduo normal.Para melhor conhecer a psicologia do homem sem linguagem seria interessante colher, a respeito, o testemunho de surdos-mudos reeducados acerca de seu estado mental antes da verbalização gesticulada ou oral. Quando se pensa nas dificuldades que tem um homem normal de se repor no estado de espírito em que estivera vários anos antes, não é de admirar que seja isto ainda mais difícil a um surdo-mudo, do mesmo modo que não conservamos nenhuma lembrança de nossa primeira infância antes da linguagem. Um pensamento não verbalizado não consegue, senão muito mal, evocar-se em termos verbalizados. A fragilidade dos testemunhos traz-nos uma prova da transcendência sofrida pelo pensamento na aparição da linguagem interior: é uma verdadeira revolução humanizante que se manifesta. Mas, é preciso insistir, esta humanização não partia da estaca zero: a vida em sociedade já desenvolvera um certo grau de humanização, a consciência era menos obscura do que a dos insulados. Seria interessantíssimo estudar os diversos tipos de surdos-mudos com os métodos dos testes; infelizmente para a ciência mas felizmente para os pacientes, não se dispõe mais hoje dos casos extremos que teriam sido os mais interessantes. Os testes não verbais demonstram simplesmente no surdo-mudo um atraso no desenvolvimento intelectual que confirma a importância da linguagem.
O atraso é mais importante nas operações que exigem capacidade de abstração.Assim, o estudo do homem de cérebro normal privado das possibilidades de atingir a linguagem confirma as conclusões fornecidas pela psicologia da criança, a psicologia animal e comparada e a psicofisiologia: o modo humano de pensamento, que só é possível em razão do número de neurônios do cérebro do homem, expande-se apenas sob o efeito da linguagem, meio humano de pensar. É na medida em que os deficientes sensoriais podem atingir a linguagem que eles se tornam homens normais. A desumanização é tanto maior quanto mais completa a privação social. Como não podemos, senão com muita dificuldade, julgar das possibilidades de pensamento do animal, o mesmo acontece com o homem destituído de linguagem. O homem sem linguagem não é verdadeiramente um homem, embora nele o pensamento prático por imagens não verbais e a consciência de si seja superior à do animal.É particularmente interessante assinalar as analogias existentes entre o pensamento infantil no momento em que o pleno domínio da linguagem não foi atingido, certos traços do pensamento dos surdos-mudos, diversos aspectos do inconsciente humano, principalmente no sonho, e o modo de pensamento dos povos primitivos na fase de pensamento pré-lógico diferente de nosso pensamento de adultos e de civilizados. Inúmeros fatos trazem assim a prova de que a consciência aí não emergiu senão muito incompletamente, em razão da insuficiência da linguagem, de um modo de pensamento coletivo.
O animismo, o totemismo, a crença na realidade dos sonhos, na possibilidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo, a confusão entre ontem e amanhã (o não-presente) são formas de pensamento pré-filosófico e pré-científico que ressurgem nas lendas e que não desaparecem totalmente do cérebro de nossos contemporâneos. A criança e o homem primitivo isolam-se mal do mundo e da sociedade formadora e protetora. A verdadeira consciência pessoal ligada ao desenvolvimento da linguagem e da razão é uma aquisição afinal recente de uma humanidade que evolui há mais de meio milhão de anos. O progresso da humanidade comporta um progresso da linguagem.As matemáticas são uma variedade de linguagem, e a lógica se alicerça na neurofisiologia do cérebro. A estética utiliza outras variedades de linguagem; notadamente a música. A noção de pessoa humana livre e responsável nasceu à beira das ondas azuis do Mediterrâneo graças à conjunção do pensamento grego e do pensamento judaico de que somos os herdeiros. Sua afirmação do valor único de cada indivíduo não deve, entretanto, fazer-nos esquecer que a pessoa livre não seria capaz de se realizar fora da comunidade humana, sendo ela o desdobramento de um processo cultural sempre em marcha para amanhãs insuspeitados, mas que chegam hoje ao ponto crucial da unificação de todas as culturas humanas em torno de um modo científico e racional de pensamento.
4. Um Exemplo de gente em descompasso evolutivo: O Chimpanzé Washoe. Desde a década de 50, várias pesquisas vêm sendo realizadas, para ensinar chimpanzés a falar a linguagem humana, numa tentativa de descobrir o tipo de consciência desses animais. Um casal de pesquisadores norte-americanos, os Gardner8, em 1966, optou por ensinar a linguagem de gestos, usada pelos surdos-mudos, para um filhote de chimpanzé chamado Washoe. Todas as pessoas que conviviam com Washoe falavam com ela nesta linguagem. Os pesquisadores não usavam a voz nem mesmo entre si; só usavam a linguagem dos sinais. Washoe aprendeu por imitação várias condutas cotidianas. Com dez meses, Washoe banhava suas bonecas como via que a banhavam. Nessas condições de vida, por meio de gestos, Washoe aprendeu a comunicar cerca de 150 palavras e a uni-las, formando frases curtas. Desenvolveu uma linguagem simbólica mostrando um cérebro bastante evoluído para o meio ambiente artificial que lhe foi oferecido. No entanto, o sistema fonador dos primatas não está preparado para a linguagem verbal articulada, isto é, seu nível evolutivo não acompanha, ainda, a sua potencialidade cerebral, provavelmente porque em seu habitat natural, ainda não houve emergências de necessidade para tal acontecimento.
5. INATO OU ADQUIRIDO Ainda há uma tendência da teoria e da pesquisa em psicolingüística evolutiva, surgida nestas últimas décadas, em ressaltar a universalidade e a existência de determinantes biológicos inatos de tal universalidade. Deparamo-nos, neste ponto, com questões filosóficas e psicológicas. Retomando a questão nature/nurture, a única e mais influente teoria da evolução da linguagem humana foi oferecida pelo lingüista Noam Chomsky9 – e seu mais fiel discípulo atual do MIT: Steven Pinker10 – e tem, desde então, ecoado por numerosos lingüistas, filósofos, antropólogos, neurologistas e psicólogos. Chomsky propôs que a capacidade da criança em adquirir a gramática de sua primeira linguagem, e a capacidade dos adultos facilmente usarem esta gramática, somente poderia ser explicada se assumirmos que toda gramática é variação de uma única e genérica "Gramática Universal", e que todo cérebro humano já vem com uma construção pré-fabricada permitindo ao órgão hospedar este projeto de linguagem. Isto é oferecido como única resposta plausível a um problema de aprendizagem aparentemente insuperável. A gramática parece ter uma complexidade sem paralelo, além de uma sistemática estrutura lógica. A criança não está evidente e explicitamente disponível para receber informações sobre regras gramaticais, e quando elas adquirem sua primeira linguagem infantil são pobres em habilidades de aprendizagem para inúmeras coisas mais. Tudo aquilo a que a criança está exposta seria a ocorrência da fala em situações concretas. Como chegaria ela a alcançar o conhecimento abstrato da linguagem?A despeito destas infantis limitações adquirem um conhecimento de linguagem em medidas notáveis. Isso conduz a uma aparentemente inescapável conclusão: de que a informação da linguagem pré-existia no cérebro para que ela pudesse obter êxito, antes mesmo do processo começar.
As crianças já devem saber o que é permitido em uma gramática, para ser capaz de ignorar as inumeráveis falsas hipóteses sobre a própria gramática – a que sua limitada experiência pudesse sugerir.Este dispositivo, um "órgão da linguagem" único no cérebro humano, também poderia ser responsável pela impossibilidade de outras espécies adquirirem linguagem. A vantagem este cenário é que ele elimina o ataque de muitas perguntas perturbadoras: a descontinuidade entre comunicações humana e não-humana, a do cérebro humano tão maior (acrescido de uma nova e ampla região), a natureza sistêmica interdependente de regras gramaticais (todas elas derivadas de uma fonte neurológica), as presumidas características universais de estrutura de linguagem, a intertraduzibilidade das linguagens e a facilidade com que a linguagem é adquirida inicialmente pela criança, apesar de um insuficiente input, e uma falta de correção, pelos de adultos, dos erros gramaticais.
O impacto das idéias de Chomsky nos anos 60, junto com trabalhos em Etologia, desenvolvimentos perceptivo e cognitivo, e tantas outras áreas, reviveram a postulação de complexos mecanismos perceptivos e cognitivos geneticamente programados. Terá a criança estratégias inatas que se desenvolveram especificamente para a aquisição da linguagem, ou tal processo se dá na base de outras capacidades cognitivas humanas mais gerais, que também têm suas próprias bases inatas? Tal problema ainda não teve solução, embora suponhamos que tanto os princípios cognitivos gerais, como os princípios específicos de cada linguagem, estão em jogo na construção da linguagem natural da criança.
6. A linguagem como fruto da interação cérebro-cultura. A linguagem humana é aprendida no convívio com outros seres humanos, que vão nomeando os seres do mundo para a criança. Os filhotes do ser humano identificam os seres do mundo vendo-os, cheirando-os, tocando-os, lambendo-os. E vão aprendendo a relacionar sons com esses seres que eles vêem, cheiram, tocam e lambem.Conforme a criança vai percebendo e nomeando os seres com palavras, vai distinguindo cada ser de todos os demais, dirigindo sua atenção especificamente para aqueles que distingue.Os nomes, as palavras, são os sons que indicam os seres do mundo. A criação e aprendizado desses sons têm suas raízes no corpo. Essas raízes corporais são as sensações ou sentidos. As palavras estão impregnadas das sensações que os seres nos despertaram ao longo de nossas vidas.A criação da palavra quente, por exemplo, só é possível graças à presença, em nosso corpo, de neurônios sensoriais para calor, que nos capacitam sentir temperaturas altas. Uma pessoa desprovida desses neurônios não emprega a palavra quente no seu vocabulário, pois esta palavra não teria significado para ela. Doce é uma palavra que é possível graças ao nosso sentido de gustação.Cavalo é um nome dado a um ser de quatro patas, que relincha, que empina e que tem pelos. Mas, somente a descrição de algumas características do cavalo não é suficiente para compor a imagem deste ser. É necessário que a pessoa o tenha visto para saber que essa palavra indica aquele ser. A palavra cavalo indica uma sensação visual. Horrível é uma palavra que indica emoções despertadas pelos seres do mundo em nosso corpo, através do sistema nervoso.Uma palavra está indissoluvelmente ligada às sensações e emoções dos seres humanos e a própria gramática nos revela esse fato. Substantivos e adjetivos são palavras ligadas a sensações corporais. Evocam cores, odores, texturas, emoções que são sentidas através do sistema nervoso do ser humano.
7. Formação social da mente. Vygotsky11, publica em Moscou, no ano de 1960, a sua proposta de relação cérebro/experiência social. É ele quem diz: "Chamamos de internalização a reconstrução interna de uma operação externa. Um bom exemplo desse processo pode ser encontrado no desenvolvimento do gesto de apontar. Inicialmente, este gesto não é nada mais do que uma tentativa sem sucesso de pegar alguma coisa, um movimento dirigido para um certo objeto, que desencadeia a atividade de aproximação. A criança tenta pegar um objeto colocado além do seu alcance; suas mãos, esticadas em direção àquele objeto, permanecem paradas no ar. Seus dedos fazem movimentos que lembram o pegar. Nesse estágio inicial, o apontar é representado pelo movimento da criança, movimento este que faz apenas parecer que a criança está apontando um objeto – nada mais que isso”.“Quando a mãe vem em ajuda da criança, e nota que o seu movimento indica alguma coisa, a situação muda fundamentalmente. O apontar torna-se um gesto para os outros. A tentativa mal-sucedida da criança engendra uma reação, não do objeto que ela procura, mas de uma outra pessoa. Conseqüentemente, o significado primário daquele movimento mal-sucedido de pegar é estabelecido pelos outros. Somente mais tarde, quando a criança puder associar o seu movimento à situação objetiva como um todo, é que ela, de fato, começará a compreender esse movimento como um gesto de apontar.
Nesse momento, ocorrerá uma mudança naquela função do movimento: de um movimento orientado para o objeto, tornar-se-á um movimento dirigido para uma outra pessoa, um meio de estabelecer relações. O movimento de pegar transforma-se no ato de apontar. Como conseqüência dessa mudança, o próprio movimento é, então, fisicamente simplificado, e o que resulta é a forma de apontar que podemos chamar de um verdadeiro gesto”.“De fato, ele só se torna um gesto verdadeiro após manifestar objetivamente, para os outros, todas as funções do apontar, e ser entendido também pelos outros como tal gesto. Suas funções e significado são criados a princípio, por uma situação objetiva, e depois pelas pessoas que circundam a criança. Como a descrição do apontar ilustra, o processo de internalização consiste numa série de transformações [que aqui enumeramos]”:“Uma operação que inicialmente representa uma atividade externa é reconstruída e começa a ocorrer internamente. É de particular importância, para o desenvolvimento dos processos mentais superiores, a transformação da atividade que utiliza signos, cuja história e características são ilustradas pelo desenvolvimento da inteligência prática, da atenção voluntária e da memória”.“Um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal.
Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e, depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica), e, depois, no interior da criança (intrapsicológica). Isso se aplica igualmente para a atenção voluntária, para a memória lógica e para a formação de conceitos. Todas as funções superiores originam-se das relações reais entre indivíduos humanos”.“A transformação de um processo interpessoal num processo intrapessoal é o resultado de uma longa série de eventos ocorridos ao longo do desenvolvimento. O processo, sendo transformado, continua a existir e a mudar como uma forma externa de atividade por um longo período de tempo, antes de internalizar-se definitivamente. Para muitas funções, o estágio, de signos externos, dura para sempre, ou seja, é o estágio final do desenvolvimento. Outras funções vão além no seu desenvolvimento, tornando-se gradualmente funções interiores. Entretanto, elas somente adquirem o caráter de processos internos como resultado de um desenvolvimento prolongado. Sua transferência para dentro está ligada a mudanças nas leis que governam sua atividade; elas são incorporadas em um novo sistema com suas próprias leis”.“A internalização de formas culturais de comportamento envolve a reconstrução da atividade psicológica tendo como base, as operações com signos.
Os processos psicológicos, tal como aparecem nos animais, realmente deixam de existir; são incorporados nesse sistema de comportamento e são culturalmente reconstituídos e desenvolvidos para formar uma nova entidade psicológica. O uso de signos externos é também reconstruído radicalmente. As mudanças nas operações com signos durante o desenvolvimento são semelhantes àquelas que ocorrem na linguagem. Aspectos tanto da fala externa, ou comunicativa, como da fala egocêntrica, interiorizam-se tornando a base da fala interior”.“A internalização das atividades socialmente enraizadas e historicamente desenvolvidas constitui o aspecto característico da psicologia humana; é a base do salto qualitativo da psicologia animal para a psicologia humana. Até agora, conhece-se apenas um esboço desse processo".
CONCLUSÃO
"[…] o todo é mais do que a soma das partes. Do átomo à estrela, da bactéria ao homem e à sociedade, a organização de um todo produz qualidades ou propriedades novas em relação às partes consideradas isoladamente: as emergências. Então, a organização do ser vivo produz qualidades desconhecidas no nível dos seus constituintes físico-químicos”. Edgar Morin (2000) Homo sapiens – Quem primeiro usou esta expressão para classificar a espécie humana foi Lineu na sua obra “Sistema da Natureza”, dada a público em 1758.
O termo zoológico Homo sapiens implica que o homem se caracteriza na série animal pelo pensamento, pela reflexão, pelo poder de ideação e abstração.Entretanto, por mais complexo que seja este pensamento humano aparece, aos olhos da psicologia animal, apenas como o desdobramento evolutivo do que existia em germe nas espécies inferiores. O comportamento dos seres mais primitivos nos parece hoje muito mais complicado do que parecia aos primeiros observadores.Quando se consideram os pássaros e os mamíferos, ou ainda, os mais elevados dentre estes, os macacos antropóides (gibões, orangotangos, gorilas, chimpanzés e chimpanzé pigmeu bonobo), ou outros como o cão e o gato, que a domesticação abriu aos problemas humanos, não é fazer antropomorfismo, porém, emitir um juízo científico, afirmar que eles estão muito próximos de nós: o Homo sapiens não poderia separar-se em um orgulhoso insulamento; não é o único inteligente em um universo de animais e máquinas. Apenas, franqueando o escalão humano, a complexidade atingiu um nível crítico de saturação, em que as qualidades novas, emergindo do aumento quantitativo, introduzem tais mudanças e tais possibilidades, que se torna legítimo falar, então, de uma diferenciação de natureza qualitativa.
O que nos levou a subestimar o pensamento animal foi o fato de não podermos conhecê-lo senão do exterior, em certas reações, sendo necessária uma longa experimentação, a utilização de testes variados para tomarmos conhecimento de que as afirmações em geral excessivas dos "amigos dos animais" não deixavam, todavia, de ter algum fundamento.Ante a expressão inteligente e compreensiva de um cão ou de um chimpanzé pigmeu bonobo, tem-se a tentação de dizer que não lhes falta senão a palavra para exprimir seu pensamento. Esta observação introduz-nos ao âmago do problema fundamental para quem quer compreender a peculiaridade do pensamento humano: somente o homem é suscetível de uma verdadeira linguagem que lhe permite comunicar seu pensamento com os semelhantes. Mas se a linguagem é sem dúvida, na sua própria origem, um meio de comunicação particularmente necessário em uma espécie social para o trabalho em comum, é preciso ter cuidado para não separá-la em demasia do pensamento, de não transformá-la em mero instrumento a serviço da personalidade humana, instrumento cuja ausência no animal superior quando muito impediria a comunicação de seu pensamento análogo ao nosso. No homem, a linguagem funciona ao mesmo tempo como linguagem exterior, permitindo-nos comunicar, e como linguagem interior, capaz de assegurar ao nosso pensamento, a consciência reflexiva.
O pensamento animal, se existir, será de modo diferente do nosso, bem como seu grau de presença no mundo, isto é, de autoconsciência, será distinto, porque seu psiquismo não é verbalizado nem verbalizável.O homem desprovido de linguagem, ou cuja linguagem é rudimentar, não é apenas constrangido em suas relações com outrem, mas é limitado no próprio plano subjetivo de seu pensamento, quer se trate do primitivo, da criança, do surdo-mudo não reeducado pela palavra, dos deficientes, e de casos patológicos como os psicóticos e certos afásicos. Na origem da humanidade, como na do indivíduo, o humano é pura virtualidade e reside, sobretudo, na possibilidade de adquirir, um dia, uma linguagem, lenta invenção coletiva no decurso dos milênios no primeiro caso, e de aprendizado da linguagem do seu grupo, vetor das influências culturais, no outro. Entretanto, não é a linguagem que preside a origem do homem, mas esta novidade biológica que consiste no seu "cérebro maior em tamanho e complexidade interna", cujas possibilidades funcionais permitem a linguagem, irrealizável pelos cérebros animais demasiadamente pobres em neurônios e sinapses. Há uma idade em que o cérebro amadurece para a linguagem e quando a criança aprende a falar; é neste momento uma das chamadas "janelas de oportunidades", que ela se humaniza verdadeiramente, como o demonstra o estudo comparativo dos macacos e das crianças.
Esta humanização aparece como um processo social, uma tomada de contato com o outro, uma inserção na sociedade: pensamos, e somos nós mesmos, porque recebemos quando crianças, em dado tempo, da sociedade, os meios de pensar e de afirmar nosso eu. Passada a idade da linguagem, inúmeras possibilidades desaparecem: a criança educada pelos lobos só muito dificilmente aprenderá a falar, e permanecerá com um pensamento desumanizado (como vimos); a criança primitiva perderá a maior parte de suas possibilidades de progresso, enquanto que pequenina, era igual a nós, saudáveis e normais, em possibilidades; a criança surda, reeducada tardiamente na verdadeira linguagem, conservará um pensamento deficitário.O pensamento humano é um processo cultural; do fato de uma sociedade poder ser opressiva e impedir o desenvolvimento dos indivíduos não se deve concluir que possa o homem fazer-se sozinho; sem contato social, ele permaneceria próximo do animal, com um pensamento e uma consciência rudimentares. Os primeiros homens eram no que há de essencial, tão pouco livres como os próprios animais. Há no homem, desde a origem, um poder cerebral inato de reflexão e liberdade, mas este não se desenvolve senão pela cultura do meio e através da linguagem.Diz a máxima que "os pensamentos vêm ao espírito do homem antes de exprimir-se no discurso", que eles nascem sem o material da linguagem, desnudos, por assim dizer. É absolutamente falso. Quaisquer que sejam os pensamentos advindos ao espírito do homem, não podem nascer e existir a não ser na base do material da linguagem, na base dos termos e das frases da linguagem. Não há pensamentos nus, liberados dos materiais de linguagem. A realidade do pensamento se manifesta na linguagem. Não há pensamento verdadeiramente humano sem linguagem. Caso contrário, o psiquismo seria tão somente a re(a)presentação sensitivo-sensorial dos mundos interno e externo, da vida subjetiva no espaço interno virtual. Assim, por exemplo, um cego de nascença teria um pensamento igual aos dos indivíduos normais, apenas sem as imagens visuais. Delacroix12 (1930), formulara excelentemente as relações entre pensamento e linguagem: "
O pensamento faz a linguagem fazendo-se pela linguagem". Não devemos confundir pensamento com o pano-de-fundo constituído pelas nossas emoções, pelo estado de ânimo e humor, que, por serem fenômenos afetivos, prescindem de linguagem verbalizável.Assim, para quem quer compreender e situar o homem, importa inclinar-se sobre a linguagem, esta instância humana que nos assegura a possibilidade de uma orientação infinita no mundo infinito, e que, no seu grau superior cria a ciência. A linguagem foi até aqui o apanágio, sobretudo, de diversos grupos de especialistas ignorando-se geralmente entre si: até pouco tempo atrás eram escassos os contatos entre a neurociência e a lingüística. Uma das tarefas que se mostrou das mais úteis foi o reagrupamento do tipo daquele que deu origem, inicialmente, à cibernética, progredindo, em seguida, à ciência da computação, à inteligência artificial, à nova robótica, e por fim, à filosofia da mente, que permitiu um esforço comum terminando numa síntese aplicada a um melhor conhecimento do fenômeno humano.Em nosso entender uma saída para as controvérsias apresentadas neste artigo será admitirmos, juntamente com Deacon13, uma CO-EVOLUÇÃO gene/meme. Isto é, as bases biológicas da linguagem humana teriam se desenvolvido juntamente com a evolução cultural da linguagem em seu habitat natural. Neste circuito fechado de interação promover-se-iam, pari passu, novas capacidades emergentes de cada lado. Em outras palavras, pelo menos metaforicamente, a cada mutação gênica haveria uma mutação mêmica correspondente, e vice-versa, aumentando as probabilidades do surgimento de adaptações evolutivas convergentes.
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Adalberto Tripicchio é médico, biólogo, filósofo, teólogo e psicólogo; doutor em filosofia, medicina e teologia. Autor do livro "Teorias da Mente" (São Paulo: Tecmedd, 2004).
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