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Retornando às bases de Paidéia

“O princípio espiritual dos gregos é o humanismo”. Werner Jaeger Assim como Heidegger, quando se sentia confuso voltava a Kant, penso eu, que em Educação, devamos voltar a esta obra de imenso valor, a Paidéia, de Werner Jaeger. Aí, conseguiu ele sintetizar a evolução do próprio conceito de Paidéia, discriminando os períodos pelos quais passou a formação do Homem grego, e o seu processo espiritual, pelo qual logrou elaborar o seu ideal de humanidade.

A paideia grega revisitada é minha pretensão fazer um resumo, o mais enxuto possível, de Paidéia. Podemos dividir a história da educação grega em três períodos:

1. O período antigo, que compreende a educação homérica, e a educação antiga de Esparta e Atenas;

2. O novo período, da educação no século de Péricles, sendo este o período áureo da cultura grega, que se inicia com os Sofistas e se desenvolverá com os filósofos/educadores gregos Sócrates, Platão e Aristóteles, e

3. O período helenístico, já de decadência, em que a Grécia é conquistada, primeiro pelos macedônios e depois pelos romanos. Atenas perde a sua posição de centro cultural do mundo em favor de Alexandria.

Apesar de vencida, a Grécia triunfou pela sua cultura, que se difundiu e universalizou, mas o que ganhou em universalização perdeu-o um tanto em originalidade e alento criador, penso eu.

Somos herdeiros dos gregos e fiéis depositários do seu legado cultural. Na sua atividade racional e nos seus ideais se encontram algumas das nossas raízes culturais mais profundas. Enfim, a cultura européia ocidental é o produto do cruzamento de algumas linhas de força essenciais, a saber:

1. a inteligência grega;

2. o direito romano, e

3. a religião cristã.

A educação grega, sobretudo a educação ateniense no seu apogeu, universalizada pelos romanos (Roma helenizou-se e depois se romanizou), patenteia ainda hoje as suas influências, tanto no modo como continuamos concebendo o que seja educação, como nos seus ideais educativos, e também em algumas das formas de realizar esses ideais, sobretudo por meio de conteúdos educativos privilegiados. Em suma, em matéria de educação, os gregos não só definem o modelo como indicam a pedagogia a ser seguida. Será por isso que, em qualquer compêndio de História da Educação, o lugar que aí é reservado à educação nos povos primitivos e nas civilizações orientais ou é diminuto, ou não existe. Somos levados a concluir que uma história da educação, com sentido e significado para nós, na nossa realidade educativa atual, começa na Grécia, porque é com os gregos que a educação se põe como problema.

E esta preocupação é dominante na Atenas do século V aC. Os sinais são bem evidentes:

1. O aparecimento dos Sofistas que se apresentam com novas propostas e soluções educativas, com um novo plano de estudos e com novos mestres, em nada semelhantes aos do passado;

2. Sócrates, que se diz impelido a realizar uma única missão, uma "missão divina", que ele entende como "missão educativa", e que questiona e problematiza: O que é educar? O que é ensinar e aprender? O que é a virtude e pode a virtude ser ensinada?

3. Platão, na "República" e em "As Leis", propõe as suas respostas a estes mesmos problemas, e

4. Aristóteles, cuja "Ética a Nicômaco" constitui também uma visão do problema educativo, e que na Política versa ainda o mesmo tema.

Mas esses sinais encontram-se não só na filosofia como também na literatura grega desta época, nas suas diferentes formas, seja na poesia (épica ou lírica), na tragédia ou na comédia (também elas escritas sob a forma poética), cuja intenção última é, afinal, uma intenção educativa.

Mas os novos ideais educativos do século V aC alicerçam-se, por um lado, em ideais já anteriormente expressos e, por outro, constituem um desenvolvimento, um alargamento e um enriquecimento desses mesmos ideais. Como diz Jaeger, "a história da formação grega (…) conserva bem clara a marca da sua origem". (JAEGER 1979:7)

Quais são afinal esses ideais educativos, que os gregos vão construindo, e de que modo irão evoluir na sua forma última, aquela que encontramos ao longo da cultura ocidental, na idéia de Paidéia?

Contudo "não se pode utilizar a história da palavra Paidéia como fio condutor para estudar a origem da educação grega, porque esta palavra só aparece no séc. V". (JAEGER 1979:8) A palavra Paidéia encontra-se pela primeira vez em Ésquilo, "Os Sete contra Tebas", e designa a "criação dos meninos" (Pais, Paidos = criança), significado "em nada semelhante ao elevado sentido que mais tarde adquiriu". (JAEGER 1979:8)

E se quisermos encontrar um fio condutor que nos guie ao longo da história da educação grega e lhe dê unidade, encontramo-lo no conceito de aretê. De fato, "o tema essencial da história da educação grega é (…) o conceito de aretê que remonta aos tempos mais antigos". (JAEGER 1979:23)

É este conceito que exprime a forma primeira, e originária, do ideal educativo grego. Mas se o ideal educativo grego, na sua forma mais alta, se consubstancia no conceito de Paidéia, é inegável que este conceito "conserva bem a marca da sua origem" (JAEGER 1979:22), já que Paidéia – não é possível traduzi-lo em português numa única palavra – inclui, também, o conceito de aretê, para o qual remete. Nas grandes discussões sobre educação que o séc. V aC conhece, os dois conceitos – Paidéia e aretê – estão sempre presentes, interpenetrando-se até quase à sinonímia.

Assim, os sofistas reclamam-se professores de aretê política e a sua Paidéia consistirá em ensinar a technê politikê, a qual permitirá o domínio da aretê política. Também Sócrates, onde diz não fazer outra coisa senão persuadir novos e velhos, a não se preocuparem tanto com o corpo, e as riquezas, mas sim com sua alma, para torná-la o melhor possível, dizendo-se que a virtude (aretê) não vem da riqueza, mas sim a riqueza da virtude, bem como tudo o que é bom para o homem, na vida particular ou pública.

Igualmente, para Platão, a questão central e decisiva se resume, afinal, saber o que é a virtude (aretê). O tema de todos os diálogos platônicos é bem a prova disso; é verdade que se questiona e se procura saber o que é a coragem, a sabedoria, o amor, o belo, a justiça, e tantas outras virtudes. O problema é que esses valores são, por fim, apenas exemplos de virtudes ou atributos do homem virtuoso, mas não são a virtude.

O problema está não em saber quais são as virtudes, mas, precisamente, em saber o que é a virtude. O mesmo se dá com as virtudes. Por mais numerosas que sejam, haverá sempre certo caráter geral que as abrange a todas e por força do qual elas são virtudes. É este caráter geral que se deve ter em vista, para se saber o que é a virtude.

Enfim, o tema da virtude – aretê – como central e núcleo fundamental à volta do qual gira toda a discussão acerca da questão educativa, da Paidéia, – porque educar é, em última análise, tornar melhor o homem, aperfeiçoá-lo, torná-lo mais virtuoso – é bem visível ainda em Aristóteles, já do século IV aC, bem como em toda a literatura da época que chegou até nós na poesia, na tragédia, na comédia.

É em Homero e nos chamados poemas homéricos, a Ilíada e a Odisséia, que tal ideal educativo aparece originalmente formulado e explicitado. E se, em ambos os poemas, o ideal homérico de homem – o herói – se define pela aretê, o modo de concebê-la não é igual nos dois poemas. Assim, na Ilíada, entre todas as suas muitas heróicas personagens, destaca-se claramente a figura de Aquiles, o herói modelo, nobre, valente e corajoso, o melhor – aristós – entre todos. Aquiles encarna, pois, a aretê e é na sua figura que se caracteriza esse ideal.

Para além do guerreiro valoroso, valente, corajoso e honrado, Aquiles é o protótipo do perfeito cavaleiro da época homérica, arcaica, cortês, cavalheiresco, de boas maneiras, fino e polido no trato social. Mas se é em Aquiles que melhor se realiza este ideal, é evidente que não se chega lá espontaneamente, antes se pressupõe uma educação apropriada. É dessa educação que Homero nos fala quando põe na boca de Fênix, o velho preceptor e educador de Aquiles, estas palavras: "Fui eu que te fiz o que és!", ou ainda quando Fênix declara que foi a ele que Peleu, o pai de Aquiles, confiou o filho quando da partida para a guerra de Tróia. "Para isso me enviou, a fim de eu te ensinar tudo isto, a saber fazer discursos e praticar nobres feitos".

 Estes versos definem com exatidão a aretê da Ilíada e consagram o ideal educativo nela presente. Mas ser aristós (possuidor de aretê), como superlativo que é, é ser, de entre todos, o mais valente, o mais conceituado, e comportar-se como o primeiro, conforme o significado do verbo aristein.

Esta aretê é já, nos poemas homéricos, algo que não é dado, mas sim conquistado, algo conscientemente procurado, por isso mesmo um ideal de cuja realização queremo-nos aproximar o mais possível. Contudo, aretê não é ainda aqui entendida como virtude, como em grego clássico, mas sim como excelência, superioridade, enfim, aretê designa um atributo próprio da nobreza, um conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais tais como: a bravura, a coragem, a força e a destreza do guerreiro, a eloqüência e a persuasão, e, acima de tudo, o heroísmo, entendido como a fusão da força com o sentido moral. A esta concepção de aretê se juntou, não pela etimologia, mas pelo sentido, agathós. Ser agathós é ser nobre, é ter força ou coragem ou habilidade para qualquer fim superior. Enfim, aretê, assim entendida, caracteriza aquilo que Burckhardt, pela primeira vez, designou por espírito agônico ou ideal agonístico grego e que tão lapidarmente aparece definido por Nestor na Ilíada "ser sempre o melhor e distinguir-se dentre os demais".

Este ideal de homem (o homem de ação – cujo modelo exemplar é Aquiles – e o homem de sabedoria, protagonizado por Ulisses), e este espírito agonístico perdurarão na Grécia, mesmo durante a época clássica. A combatividade e a competitividade constituíam o espírito dos concursos poliesportivos e se, o prêmio, para o vencedor, não tinha valor pecuniário, consistindo numa coroa de folhagem de árvores simbólicas dos vários deuses em honra dos quais se celebravam os Jogos, então lutava-se apenas pela honra e pela glória, pela superioridade e pelo heroísmo. De fato, o vencedor dos Jogos cobria-se de glória pessoal e, sendo considerado um herói, isso se refletia na sua Pólis. Em Atenas, por exemplo, ele era recebido com pompa e circunstância.

Se esta é a aretê da Ilíada, a da Odisséia é já mais alargada. A Odisséia relata o regresso do herói – Ulisses – a casa, vindo da guerra de Tróia. Ora, Ulisses junta à força, coragem, bravura e eloqüência, a astúcia, a manha, o engenho e a inteligência, que o levam a desvencilhar-se das situações mais complicadas, nas aventuras do regresso. Por isso, no poema, o seu epíteto mais comum é "Ulisses dos mil artifícios". Mas, mais uma vez, estas qualidades incutem-se e desenvolvem-se apenas através da educação.

Assim, na Odisséia, Telêmaco, filho de Ulisses, é o único jovem em formação, e é a sua educação que o transforma, do jovem dócil e passivo do começo do poema, no príncipe consciente dos seus deveres, no companheiro de luta, valente e ousado, que ajudará o pai, na sua vingança, a enfrentar os pretendentes de Penélope, sua mãe e fidelíssima esposa de Ulisses.

Mas, quer na Ilíada quer na Odisséia, a educação que se propõe traz uma pedagogia que lhe corresponde: a pedagogia fundada no exemplo vivo ou no exemplo mítico, a pedagogia do paradigma. O herói prototípico institui-se como modelo exemplar a seguir. Imitar os heróis, o que desperta a emulação, para, como eles, ser herói, possuidor da aretê heróica.

Homero é, entre todos os poetas gregos considerado o maior e, crendo-se nos testemunhos, é indicado também como o educador de toda a Grécia. De fato, a tradição homérica e o ideal educativo que nela se propõe são transmitidos oralmente, de geração em geração, pelos aedos e rapsodos. Também só assim se pode compreender a afirmação: "Nele [em Homero], pela primeira vez, o espírito pan-helênico atingiu a unidade da consciência nacional e imprimiu o seu selo sobre toda a cultura grega posterior". (JAEGER 1979:77)

Na verdade, separados politicamente e organizados em cidades-estado independentes, os gregos estão, contudo, espiritualmente unidos. Primeiro, pela unidade de língua, mas outros elementos presidem a essa união: os jogos pan-helênicos, os grandes santuários religiosos e, sobretudo, a mesma cultura. É este espírito, que se veio a designar de pan-helênico.

Os primeiros educadores do mundo grego são os poetas, que surgem não apenas como educadores da sua época, mas, porque, a sua influência perdurou muito além do seu tempo, como educadores de toda a Grécia. E porque Homero é, de todos, o mais influente, é ele, fundamentalmente, o educador da Grécia e mesmo de todo o mundo antigo. Ser culto ou homem cultivado era, na Antiguidade, saber Homero de cor e ser capaz de citá-lo em qualquer ocasião. Até à época clássica, e mesmo durante a época clássica, onde este tipo de educação coexistiu com a nova educação, manteve-se esta educação tradicional e este ideal educativo.

No entanto, pelos fins da época arcaica, já este ideal tinha sido alargado. Não bastava cobrir-se de honra e glória, como nos tempos homéricos, mas pretendia-se alcançar a excelência tanto no plano físico como no plano moral. Tal ideal exprime-se pela palavra Kalokagathia – beleza e bondade – os atributos que o homem deve procurar realizar. O ideal de harmonia expressa-se com a aspiração à kalokagathia, na qual se via a bondade ligada à beleza, bondade resultante de um firme e equilibrado domínio de si, e beleza que representa exteriormente a serena ordem interior da alma. Aristóteles assinalou que o fim do homem é 'viver feliz e belamente'. Por isso a educação grega é a busca de uma perfeita euritmia. Assim, o homem forma-se segundo o princípio da autarquia, de um crescente domínio de si, pela libertação de seus instintos, desejos e paixões, que devem ficar submetidos à razão. Platão define o governar-se a si próprio, ser temperante, ter autodomínio, comandar em si próprio os prazeres e as paixões.

Para alcançar tal ideal propõem-se a ginástica, para desenvolver o corpo, e a música, com a leitura e o canto das obras dos grandes poetas, para o espírito. Tratava-se, com tal programa educativo, de desenvolver uma das qualidades do homem, a sofrosyne, que podemos traduzir por temperança, e que implicava um perfeito domínio de si, aliando sabedoria e ação avisada, porque fundada nessa sabedoria. Música não tem aqui o sentido estrito que hoje lhe damos, mas incluía tudo o que estava relacionado com as Musas: poesia, drama, história, oratória e também, claro, música no sentido restrito. É este ideal de kalokagathia que os latinos plasmam na fórmula "Mens sana in corpore sano". Este estudo dos poetas, na música, tinha fins essencialmente morais e psicopedagógicos e, juntamente com a ginástica, eram considerados uma formação completa e equilibrada. Era um ideal de sabedoria, pelo domínio dos instintos, desejos e apetites pela razão, um ideal de equilíbrio e harmonia, um ideal de medida, de justa medida. Desenvolver o corpo e o espírito de forma equilibrada e harmônica, tanto um como o outro, não mais um que o outro. Este ideal ainda hoje continua presente e vivo.

O programa completo de estudos era constituído pela ginástica, ensinada nos ginásios e nas palestras, sendo o pedotriba o mestre de educação física, e pela música que ensina as crianças a tocar cítara, para se acompanharem enquanto cantam as obras dos grandes poetas, sendo o mestre o citarista. Nesta altura, o citarista ensina ainda a ler e escrever, porque para cantar os poetas é preciso saber ler as suas obras. Já no fim da época arcaica, o programa completava-se com a gramática ministrada pelo didáscalo, o mestre de ler e escrever, que ensinava também rudimentos de cálculo. Como parece que se tratava de escolas diferentes, aparece a figura do pedagogo-escravo que acompanhava o menino à escola e que supervisionava o seu aconselhamento, vigiando o seu comportamento moral.

Essas escolas eram públicas, mas não do Estado, contudo eram por ele supervisionadas, através de um funcionário, o sofronista, em Atenas. Figura idêntica aparece em Esparta, o pedonomo, com funções de vigilância sobre as crianças e sobre o tipo de educação que lhes era ministrado.

Quando terminavam a escola, o Estado (Pólis) obriga-os a aprender as leis e a viver de acordo com elas, a fim de que não procedam ao acaso. Tal como o mestre-escola que, para os que não sabem escrever, traça as letras com o estilete e lhes entrega a tabuinha, forçando-os a desenhar o traçado dos caracteres, assim também a cidade, depois de ter delineado as leis, criadas pelos antigos legisladores, força-os a mandar e a serem mandados de acordo com elas. Mas este era apenas o programa educativo escolar que, de modo nenhum, esgotava a totalidade do programa educativo. Depois da escola, a cidade continuava educando nas reuniões políticas, administrativas e jurídicas, nos jogos, com o esplendor das artes figurativas e arquitetônicas, e, sobretudo, com a magnificência das representações dramáticas. Nem em Atenas, nem em toda Grécia o teatro era só para os privilegiados: era a escola de todos os cidadãos.

É que a educação ateniense, posta em prática na escola e na cidade, tinha duas finalidades precisas: o desenvolvimento do cidadão fiel ao Estado e a formação do homem que adquiriu plena harmonia e domínio de si, sendo, por isso mesmo, absolutamente autárquico.

Se, até agora, todo o problema educativo girava, essencialmente, à volta da educação do homem como ser individual e por isso o objetivo fundamental da educação era a formação do homem, tratando-se de saber qual o caminho que o processo educativo devia seguir para que o homem, cada homem, pudesse alcançar o ideal, a aretê individual, entendida neste momento como kalokagathia, a partir de agora, na Atenas do século V aC, isso já não é o bastante. Para além de formar o homem, a educação deve, sobretudo, formar o cidadão. A finalidade cívica da educação passa, claramente, a primeiro plano. É originariamente grega a idéia, tão atual, de que a educação é preparação para a cidadania. Habitante da Pólis, o homem só é o que é porque vive na cidade e sem ela nada é. E o que diz respeito à cidade, é comum, isto é, afeta a todos enquanto comunidade e afeta cada um enquanto cidadão ou membro dessa comunidade. Neste sentido, é evidente que, acima de tudo, o homem é um animal político, o Zoon politikon, como bem o captou Aristóteles, distinguindo-o do animal pela sua qualidade de cidadão, e o Biós politikos é a forma própria e sublime de vida do homem como habitante da Pólis.

A consciência da cidadania cedo faz sentir a necessidade de uma nova educação, pois que a antiga, com o seu receituário básico, simples e elementar de ginástica e música, já não servia para a formação do cidadão, nem correspondia às novas necessidades individuais nem às novas exigências sociais e políticas. Politicamente, a organização democrática do Estado foi a forma de governo escolhida pela Cidade-Estado de Atenas. Ora, no estado democrático ateniense, a exigência de todos os indivíduos enquanto homens livres, ou seja, cidadãos, era de participarem ativamente no Estado e na vida pública. São deveres cívicos inalienáveis e aos quais, ninguém se pode eximir, e a participação nas assembléias tornam indispensáveis os dotes de eloqüência e apela para uma formação oratória. Neste contexto se compreende que tenha surgido uma nova estirpe de "educadores" – com o estrondoso sucesso que se lhes conhece – que se apresentam como professores no sentido atual do termo, (os primeiros professores da história) e que oferecem, a troco de dinheiro, o ensino da "virtude", o ensino da aretê política ou, como também lhe chamam os sofistas, a technê política.

Os sofistas convertem, pois, a educação numa técnica ou numa arte, na qual eles são mestres e, por isso, capazes de transmiti-la e ensiná-la, e os jovens, seus alunos, que vierem a dominar a technê política alcançarão, por isso mesmo, a aretê política.

Mas esta aretê política, ou melhor, technê política, tão em conexão com as finalidades práticas que se propõe – formação de homens de Estado e de dirigentes da vida pública – vai conduzir, necessariamente, à valorização do homem, cidadão individualmente considerado, e vai, igualmente, orientar-se num sentido amoral ou mesmo imoral. Os seus contemporâneos vão acusar os sofistas de imoralidade.

Indubitavelmente que o centro da vida política é o homem (daí falar-se em humanismo, ou no giro antropocêntrico que a sofística implica), mas o homem individual (de onde o individualismo sofístico) e, então, o humanismo sofista não é senão um individualismo ou um relativismo total. É bem conhecida, e muito citada a este propósito, a paradigmática frase de Protágoras, "O homem é a medida de todas as coisas".

Indubitavelmente, também, que o homem, assim situado no coração da Pólis, quer vencer na vida política, quer fazer valer os seus interesses ou as suas convicções, quer ganhar um lugar de destaque, quer ser eleito para cargos públicos, quer ser governante e aceder ao poder. Para isso, para ter êxito político, precisa saber falar bem, encantar o auditório, construir discursos persuasivos, formular os argumentos que justifiquem e validem as suas posições, fazendo-as prevalecer como as melhores. Precisa, pois, da arte sofística da oratória, da retórica e da dialética. Mas como é necessário ter sucesso na vida pública e política, vencer a todo o custo e a qualquer preço, isso só será possível convencendo os outros das minhas razões, retórica e dialética, que se tornam armas potentíssimas que é preciso saber esgrimir com perícia; técnicas cujo domínio permite utilizá-las segundo as nossas conveniências, mas técnicas que se pode aplicar a qualquer conteúdo.

Seja qual for o profissional com quem entre em competição, o orador conseguirá que o prefiram a qualquer outro, porque não há matéria sobre a qual um orador não fale, diante da multidão, de maneira mais persuasiva do que qualquer outro profissional. Tal é a qualidade e a força desta arte que é a retórica. Sendo assim, esse conteúdo é esvaziado de sentido, pelo menos de sentido ético, e o discurso reduz-se, por isso mesmo, a um mero exercício tecnicista, a uma mestria ou a um virtuosismo técnicos. O domínio dessa técnica permite construir os argumentos necessários a fazer valer este ou aquele ponto de vista, conforme os meus interesses do momento e independentemente da contradição que possa existir entre esses pontos de vista.

Entram assim em crise os valores da tradição: verdade, justiça, virtude, retidão etc. Eles não importam, porque o que importa é vencer. Quando muito, o que importa é o que é bom para mim. Em todo o caso, não valem como valores absolutos, mas são relativizados. São o que o homem quer e decide que sejam a cada momento. A dialética aplicada à política vira, portanto, as costas à ética. De fato, trata-se de saber o que é a retórica ou oratória, estabelece-se que não é ciência, mas técnica e, em todo o caso, técnica maldita, pois, como o prova Sócrates, só precisa dela quem quer enganar e ludibriar os outros, quem quer praticar o mal e a injustiça: "É para isto, Polo, que a retórica me parece ter utilidade, uma vez que, para quem não pensa em praticar a injustiça, é reduzido o seu préstimo, para não dizer que não tem nenhum…" Ora, os artífices desta técnica são os sofistas, "Sofistas e oradores são a mesma coisa", pelo que o Górgias, condenando a retórica porquanto conduz à imoralidade, condena simultaneamente toda a sofística, e de forma bem cáustica e veemente. Não admira que os sofistas venham a ser acusados de imoralidade, de administrar uma educação perversa e pervertida, de corromper a juventude e de sublevar os valores tradicionais, minando as bases da ordem social e política estabelecida. É esta situação, a que a nova educação conduziu. Será esta tendência degenerescente em que desabou a sofística, que Sócrates quis inverter, reconstruindo a conexão da cultura do espírito, da cultura intelectual com a cultura moral e política e voltando a situar o ethós no coração do homem, no centro da atividade política e no centro da aretê.

Ao longo dos diálogos platônicos são muitas as vezes que Sócrates se escandaliza e considera um paradoxo o fato de para todos os ofícios se exigir uma competência específica e o mesmo não se verificar para os governantes e políticos. Por exemplo, um sapateiro, um alfaiate, um carpinteiro precisam de certo saber para realizar o seu trabalho, "ao passo que ao político bastava uma educação genérica, (…) muito embora o seu 'ofício' tratasse de coisas muito mais importantes." (JAEGER, 1979:136)

Enfim, os sofistas apresentam-se como mestres de aretê política, mas estão bem longe de corresponder a tal presunção. É verdade que ensinam os homens a discursar elegantemente nas assembléias, indo mesmo ao ponto de instruírem-nos a servir-se despudoradamente de todos os meios para realizar as suas ambições. Mas, afinal, aos olhos de Sócrates e de Platão, os sofistas são, tão só, demagogos e a especialidade de que se dizem mestres não é outra coisa senão a demagogia. Por isso, ao que ensinam, "dou-lhe o nome geral de 'adulação' e partes da mesma adulação são para mim também a retórica (…) e a sofística", como afirma Sócrates.

Mas se é comum a todos os sofistas considerarem-se mestres da aretê política, a sua opinião diverge no que respeita ao modo de concebê-la e de realizá-la. Assim, para uns, a educação que levará ao domínio da arte política consistirá na transmissão de um saber enciclopédico, de uma polimatia da qual se dizem mestres – o representante mais significativo desta tendência é Hípias, o qual, contrariamente à maior parte dos outros sofistas, atribui um alto valor formativo às matemáticas, incluindo ele próprio, no ensino que ministra, o cálculo, a astronomia, a geometria e a música, disciplinas estas que, mais tarde, vieram a constituir o quadrivium; para outros, dos quais o principal representante é Protágoras, a educação é, essencialmente, formação do espírito e do cidadão, e o modo privilegiado de consegui-la é pelo ensino da gramática, da oratória e retórica e da dialética, disciplinas estas que, na Idade Média, formaram o chamado trivium e que, juntamente com o quadrivium, constituíram as sete artes liberais.

A verdadeira Paidéia, conscientemente procurada, é, portanto, para Protágoras, uma cultura geral de caráter superior, entendida como alimento para o espírito, ou melhor, como alimento que forma o espírito.

Platão que, tanto quanto se sabe, foi o primeiro a chamar-lhe formação, definirá a educação como formação geral, insistindo, contudo, no fato dessa formação valer por si mesma e em si mesma, porque desinteressadamente procurada e não em vista de qualquer finalidade prático-utilitária. Por isso se esforça tanto em distingui-la do saber especializado e técnico dos profissionais, não só porque esse saber não é um saber pelo saber, mas antes é um saber-como, um saber-fazer, portanto um saber meramente técnico, e também porque, em conseqüência, é um saber utilitário, isto é, um saber que é meio para um fim e não um fim em si mesmo.

De entre as novidades introduzidas pelos sofistas destaca-se por terem sido os primeiros a ministrar um tipo de educação superior e, sobretudo, a convicção de que "a educação não acaba com a saída da escola. Em certo sentido, poderia dizer-se que é precisamente nessa altura que principia". (JAEGER 1979:335) De fato, a sua educação dirige-se ao jovem que já concluiu o currículo escolar tradicional e quer iniciar a sua vida política. Esta mesma idéia será alargada com Sócrates, para quem a educação não consiste na transmissão de conhecimentos, mas sim na formação do homem como Homem.

Assim, "a verdadeira essência da educação é dar ao homem condições para alcançar o fim autêntico da sua vida. Identifica-se com a aspiração socrática ao conhecimento do bem, com a phronesis. E esta aspiração não se pode restringir aos poucos anos duma chamada cultura superior. Só pode alcançar o seu objetivo ao longo de toda a vida do Homem; de outro modo não o alcança". Enfim, para Sócrates, "a suma e o compêndio do 'tudo o que eu tenho' é a Paidéia." (JAEGER 1979:532)

Platão retomará esta idéia socrática, considerando que o processo educativo completo – o do filósofo-governante – terá o seu termo aos 50 anos de idade. Assim, a formação dialética realiza-se dos 20 aos 35 anos e dos 35 aos 50 consolida-se, pela prática dessa mesma formação. Toda a educação anterior é considerada como propaidéia, como propedêutica à verdadeira Paidéia. A longa duração da formação dialética (15 anos na sua totalidade), e, nem sequer, ao fim desse período, se pode considerar completa, pelo que, afirma Platão, só aos 50 anos se pode dar por concluído o processo educativo, isto não é senão uma maneira metafórica de dizer que a educação nunca acaba e que dura tanto quanto durar a vida do homem. O próprio do homem é, portanto, encontrar-se permanentemente em processo de formação. Convenhamos que esta idéia, tão valorizada nos nossos dias e, tantas vezes, apresentada como uma invenção e uma exigência exclusivas do nosso tempo, não é nada nova, penso eu.

Mas o que Platão, no séc. IV aC, sintetiza desta maneira tão exemplar, é algo que se encontra presente na cultura grega, desde as suas origens. Diz Jaeger a propósito do homem grego "à medida que avançava no seu caminho, ia-se-lhe gravando na consciência, com crescente claridade, a finalidade sempre presente, em que a sua vida assentava: a formação dum elevado tipo de homem. A idéia de educação representava para ele o sentido de todo o esforço humano". (JAEGER 1979:6)

O homem só é homem pela educação, só vale pela educação – os gregos bem o perceberam. Daí que a educação constitua para eles um interesse vital, de tal modo que o problema educativo se lhes impõe como o problema fundamental do homem e como o problema decisivo para o destino do homem. Homem e educação encontram-se inelutavelmente vinculados, de tal modo que um só existe pelo outro. Por isso, Jaeger acrescenta mais à frente "os gregos viram pela primeira vez que a educação tem de ser um processo de construção consciente" (JAEGER 1979:12), caso contrário, ela não forma o homem como homem e, muito menos, o elevado tipo de homem que se pretende.

Em uma síntese da evolução do ideal grego de educação: "O ideal grego de educação é o primeiro que aparece na história de maneira consciente e caracteriza-se, em geral, pela formação do homem político, o homem da Pólis (…), do cidadão, tanto no aspecto civil como no aspecto bélico. Esse ideal sofre uma evolução, a partir dos tempos heróicos de Homero, onde predomina o guerreiro, até à época (…) de Péricles, em que sobressai o político". Dentro deste desenvolvimento, a educação grega tem como aspiração a excelência – aretê -, mais tarde esse ideal é completado pelo de kalokagathia, o ideal da perfeição do corpo e da alma em beleza, bondade, sabedoria e justiça do indivíduo na comunidade pública. Mas todo o ideal grego aparece, finalmente, como Paidéia.

Mas, afinal, o que se pode entender por Paidéia, palavra polissêmica que consubstancia o ideal grego de educação? Platão, define-a como toda a verdadeira educação ou Paidéia, a que é educação na aretê, que enche o homem do desejo e da ânsia de se tornar um cidadão perfeito, e o ensina a mandar e a obedecer, sobre o fundamento da justiça". (JAEGER 1979:136) Ou ainda desta outra "A Formação (Paidéia) que, desde a infância, inspira o desejo apaixonado de se tornar um cidadão completo e realizado", como diz o personagem, o Ateniense, num dos diálogos platônicos.

A Paidéia é, então, entendida como formação, como uma formação geral que dará ao homem a forma humana, ou seja, que o construirá como homem e como cidadão. E este ideal aparece claramente como o ideal de Paidéia no séc. IV aC, e encontra-se bem presente, desde logo, com os sofistas, mas este é também o ideal que encontramos em Sócrates, em Platão, em Aristóteles ou em Isócrates. A Paidéia, assim concebida, torna inteligível a afirmação "O princípio espiritual dos gregos não é o individualismo, mas o 'humanismo', para usar a palavra no seu sentido clássico e originário. Humanismo vem de humanitas. (…) Significou a educação do Homem de acordo com a verdadeira forma humana, com o seu autêntico ser. Tal é a genuína Paidéia grega (…). Não brota do individual, mas da idéia. Acima do homem como ser gregário ou suposto eu autônomo, ergue-se o Homem como idéia. A ela aspiraram os educadores gregos, bem como os poetas, artistas e filósofos. Ora, o Homem, considerado na sua idéia, significa a imagem de Homem genérico na sua validade universal e normativa." (JAEGER 1979:13)

De fato, parece ser precisamente isto que constitui o cerne do ideal educativo grego, desde os seus primórdios. É assim que o vemos nos poemas homéricos, onde se desenha claramente um ideal de Homem que todo e qualquer homem, para sê-lo, deve encarnar. É também isso mesmo que, mais clara e nitidamente que em qualquer outro pensador, encontramos em Sócrates. De fato, a inscrição do frontispício do templo de Delfos, que Sócrates tomou como lema da sua filosofia e do seu projeto educativo, o "conhece-te a ti mesmo", considerou-a ele a frase que constituía a pedra de toque do seu destino e da sua missão, bem como nela se resumia, de forma prototípica, todo o sentido da vida humana – não apenas o sentido da sua vida, mas o sentido da vida.

No modo socrático de ver, o "conhece-te a ti mesmo" não se pode interpretar como um conhecimento individual e subjetivo, como apelo a um conhecimento de si mesmo como homem individual, como conhecimento do "eu", do seu eu, de forma mais ou menos introspectiva. Pelo contrário, o "conhece-te a ti mesmo" só tem verdadeiro significado se entendido como procura do conhecimento do universal e do essencial, como busca do que é comum a todos os homens, como pesquisa do que nos faz, a todos e a cada um, ser homens; a divisa socrática reclama que, para lá do que diferencia os homens, se busque o que os une, para lá do indivíduo ou do eu, se encontre o Homem. A questão originária, a questão primeira e fundamental, é, pois, a questão sobre o Homem. O que é o Homem? O que é ser Homem? Esta é a principal de todas as questões, senão mesmo, e afinal a única questão. O que Sócrates exige e procura incansavelmente é o conhecimento, não deste ou daquele homem, mas do Homem. O que ele busca é a essência do Homem, a idéia de Homem, e se o homem é isso que a idéia define então a idéia converte-se em ideal, porque todo e qualquer homem, para sê-lo, deve ser isso.

Busca-se, portanto, o que há de humano no homem ou a humanidade do homem. Explicitamente formulado e conscientemente procurado, este é o Humanismo Socrático. Constitui, também, a primeira formulação do que, essencialmente, se entende por humanismo. "Todo o futuro humanismo deve estar essencialmente orientado para o fato fundamental de toda a educação grega, a saber: que a humanidade, o 'ser do homem' se encontra essencialmente vinculado às características do Homem como ser político". (JAEGER 1979:15-16)

É também para isto que Sócrates chama a atenção quando adverte que a procura do ser homem ou a resposta à questão 'o que é ser Homem?', só se pode encontrar se for uma procura comum, um esforço partilhado por todos os homens. Não esqueçamos, por outro lado, que ser homem, para os gregos, era indissociável do fato de o homem só ser plenamente homem enquanto habitante da Pólis.

Ora, toda a educação grega parece convergir na realização deste ideal: construir o homem como homem, ajudar o homem a descobrir a sua humanidade, permitir a cada homem Ser Homem. A Paidéia grega impõe-se como um humanismo. E não continua a ser este, hoje como ontem, o esforço gigantesco de toda a educação? A enorme influência do que os gregos entenderam por Paidéia não pode tornar-se mais patente.

O termo grego Paidéia evoca tanto o próprio conteúdo da Cultura como o esforço para constituir, na criança (Pais, Paidós) um patrimônio de valores intelectuais e éticos que a integram na comunidade humana. Finalmente, Paidéia implica tudo o que distingue o grego, o homem civilizado, do bruto e do bárbaro ou ainda o que permite ao indígena aceder, pela educação, a um novo estatuto cultural, social e político. A educação impõe-se como uma obrigação da qual a cidade não pode fugir e à qual não pode escapar. Ontem como hoje, a educação impõe-se como uma obrigação e um destino aos quais as sociedades e os poderes políticos não podem fugir e do qual não podem escapar.

Mas o termo Paidéia não tem uma tradução tão simples. Ele não significa, como vulgarmente se traduz, apenas educação. Significa muito mais que isso, aglutinando termos tais como cultura, instrução, formação etc. Aliás, entre os Gregos, como já vimos, desde o seu surgimento, a palavra Paidéia foi cobrindo um campo cada vez mais vasto de significados. O termo começa a ser utilizado no séc. IV aC, e, nessa altura, tão somente, começa por significar a criação dos meninos. Mas o seu significado depressa se alarga passando a designar não só o processo educativo, mas também o conteúdo e o produto desse processo.

"O conceito [Paidéia] que originariamente designava apenas o processo de educação como tal, alargou (…) a esfera do seu significado, exatamente como a palavra alemã Bildung (Formação) ou a equivalente latina Cultura, do processo da formação passaram a designar o ser formado e o próprio conteúdo da cultura (…). Torna-se assim claro e natural o fato dos gregos, a partir do séc. IV, em que este conceito achou a sua cristalização definitiva, terem dado o nome de Paidéia a todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição, tal como nós o designamos por Bildung ou, com a palavra latina, Cultura." (JAEGER 1979:328) Tal como ainda diz Jaeger: "Não se pode evitar o emprego de expressões modernas como civilização, tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas, porém, coincide realmente com o que os Gregos entendiam por Paidéia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global e, para abranger o campo total do conceito grego, teríamos de empregá-los todos de uma só vez". (JAEGER 1979:1)

Enfim,

… algumas reflexões nos oferecem a designação Politécnico, usada para denominar um conjunto de escolas e instituições onde se ministra um ensino chamado, precisamente, politécnico. A palavra é, toda ela, de origem grega: Poli = muito; technê = técnica. Na expressão, o poli pode ser interpretado em duplo sentido:

(1) no sentido de que, neste tipo de instituições, se ministra um ensino apenas técnico, e

(2) no sentido em que, nessas escolas, se ensinam e aprendem muitas e várias técnicas diversificadas.

De qualquer modo, os dois sentidos encontram-se, evidentemente, inter-relacionados. Nesta acepção, a do sentido etimológico e literal da palavra, nada nos parece mais afastado do ideal grego de Paidéia do que uma educação politécnica. O ideal de Paidéia era uma educação total do homem como Homem, uma educação humana e Humanista, não uma educação especializada e marcadamente técnica.

Algo global, porque se almejava a formação do homem como homem e como cidadão, formando-se o caráter e valorizando-se, deste modo, a educação moral e cívica e não apenas a educação intelectual. Por outro lado, Paidéia era entendida como cultura geral, formação geral, a única que convém ao homem como Homem e como cidadão livre. Assim concebida, nada nos parece mais alheio ao ideal educativo grego do que, precisamente, uma educação dita politécnica.

Technê, em grego, significa técnica, ofício, habilidade, arte, ciência aplicada. Usava-se para descrever qualquer habilidade no fazer, mais especificamente, uma espécie de competência profissional. Os artífices ou artistas eram aqueles que dominavam uma determinada técnica, que possuíam um saber-fazer, isto é, um conhecimento que lhes proporcionava como saber-fazer determinada coisa.

Não que os gregos desprezassem a técnica – mas distinguiam bem, diversas classes de saberes. A este propósito, Aristóteles é o filósofo paradigmático, definindo claramente os tipos de conhecimento distintos:

(1) o conhecimento empírico (empeiria);

(2) o conhecimento técnico (technê);

(3) o conhecimento prático (práxis), e

(4) o conhecimento teórico ou teorético (theoria).

Todos eles são, o saber (sophia):

(1) a empeiria é um saber feito de experiências;

(2) a technê um saber-como, um saber-fazer;

(3) a práxis um saber-agir ou atuar e, por conseqüência um saber prático ou ético-moral, e

(4) a theoria é o saber pelo saber, saber pelo desejo de saber, ou saber pelo amor ao próprio saber.

Por isso, de todos, a theoria é o saber mais autêntico, constituindo a verdadeira sophia ou o verdadeiro conhecimento (episteme), porquanto é um saber que se busca por si mesmo, pelo próprio amor de saber, e não tendo em vista qualquer fim alheio a si mesmo, como é o caso dos outros tipos de saber, cujo fim é alheio ao próprio saber, instituindo-se, portanto, não como fins em si mesmos, mas fins para outra coisa; são saberes que se procuram pela sua utilidade, são, pois, meios para outros fins. Por isso também é que a verdadeira sophia, a theoria, conhecimento verdadeiro, episteme é só a filosofia – philo-sophia.

Aristóteles distingue entre poiein, no sentido de 'produzir' (daí poietike episteme, ciência produtiva) e pratein (atuar), daí praktike episteme, ciência prática. Ora, o termo próprio que Aristóteles usou para a ciência produtiva ou aplicada é technê, e, para ele, a poietike technê por excelência é a poética, à qual dedicou todo um tratado. A técnica distingue-se, portanto, da prática, a primeira estando ligada ao fazer, no sentido de produzir (poiein) e a segunda ao atuar (pratein).

E tal como foi definida por Aristóteles a technê é uma característica mais dirigida à produção (poietike) do que à ação (praktike). Emerge da experiência (empeiria) de casos individuais e passa da experiência à technê quando as experiências individuais são generalizadas: o homem experimentado sabe como, mas não sabe o por quê. Assim, é um tipo de conhecimento e pode ser ensinado. Se a técnica é um saber, é um saber como se faz, como se produz, é um saber aplicado ou ciência aplicada, mas como se trata de um saber pode ser transmitido e ensinado. O sofista é, precisamente, alguém que possui uma técnica, um saber técnico: sabe como fazer belos discursos, sabe como manejar a palavra, sabe como convencer, sabe como argumentar. Dominando estes saberes ou estas técnicas, pode ensiná-los. Os sofistas aparecem, por isso, como técnicos, porque dominam um saber técnico especializado que transmitem. São, neste sentido, os primeiros politécnicos da história.

Mas o saber por excelência, o mais valorizado de todos é a theoria, o saber contemplativo e especulativo, que se busca a si mesmo, por si mesmo e em si mesmo. Ela constitui o tipo superior da atividade humana. Por isso, ela é o saber que mais convém ao homem como homem. O sentido da Paidéia grega enquanto formação do homem como homem, enquanto formação geral de todo e qualquer homem, parece, pois, opor-se a uma formação especializada e meramente técnica. Ou, se preferirmos, uma educação técnica específica não dispensa, como seu suporte e fundamento, uma formação geral do homem enquanto homem, isto é, uma verdadeira Paidéia. Uma formação humanista como alicerce de uma formação técnica: eis o que exige a Paidéia grega. Não podemos deixar de considerar a pertinência e atualidade desta posição.

BIBLIOGRAFIA

JAEGER, WERNER – PAIDEIA. A formação do Homem grego. São Paulo: Martins Fontes. Tradução de Artur M. Parreira, 1979.

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