Quando abriu os olhos já era tarde. O rádio relógio marcava 10h02min. Estava atrasado…mas isso não importava mais. Estava desempregado.
Quando abriu os olhos já era tarde. O rádio relógio marcava 10h02min. Estava atrasado…mas isso não importava mais. Estava desempregado. Recém desempregado, aquele era seu primeiro dia sem ter que ir ao clube. O primeiro dia sem ter que chegar antes para dar o exemplo aos jogadores. O primeiro dia sem ter que dar satisfações à imprensa. Na verdade sentia um misto de alivio e incerteza. Mesmo com tantos anos de futebol parecia não ter se acostumado àquela instabilidade da vida de treinador. Não era a primeira vez que fora mandado embora, nem seria a última. E, para falar bem a verdade, queria que isso tivesse acontecido há alguns dias ou semanas, pois ele mesmo não estava mais motivado para aquele trabalho, pelo menos não naquele clube. Era muita pressão: torcida agressiva, diretoria indecisa e incompetente, patrocinador arrependido, imprensa numerosa e enxerida, jogadores desunidos, desconfiados e dissimulados.
Fazia tempo que não ficava em casa em uma segunda feira pela manhã. A mulher havia saído. Os filhos já grandes tomaram seus rumos. A empregada morria de medo dele: pôs o café na mesa e tratou de se ocupar para na ter de encará-lo. Enquanto tomava seu solitário, calmo e tardio café da manhã algumas imagens vinham-lhe à cabeça. Entre um copo e outro de suco de laranja tinha de encarar as lembranças de submissos jogadores das categorias de base, os quais ele tentou promover, porém não com o sucesso esperado. Vai ver não eram tão bons assim…
O pão na torradeira passou do ponto e queimou-lhe a mão, ao mesmo tempo em que pensou no rosto de um atleta veterano que lhe sorriu amarelo quando foi para o banco de reservas. O grito que deu foi quase tão intenso quanto os que costumava dar a beira do gramado. Do outro lado da casa a empregada ouviu e achou por bem demorar um pouco mais em seus afazeres por ali mesmo.
Enquanto mastigava o pão torrado pensava nos motivos pelos quais seu trabalho não rendeu os resultados esperados. Chegou ao clube como salvador da pátria e ate que foi bem no começo. Tirou o grupo das ultimas posições e colocou-o no bloco intermediário da classificação. Não era bom, mas se comparado ao que encontrou quando chegou…
Na competição seguinte começou bem, muito bem. Depois o grupo começou a oscilar muito e, por fim, terminou novamente no bloco intermediário. “Maldita diretoria!” – pensou. Lembrou-se das promessas de reforços feita pelo presidente do clube. Alguns chegaram, outros não. Ruim foi que muitos foram embora e com isto ele não contava. “Desertores! Covardes!”
“Como é ruim trabalhar com gente incompetente. Assim acabo me queimando. O próximo clube tem que ser sério. Tem que estar tudo pronto quando eu chegar.” Pensava enquanto tomava sua larga xícara de café. Naquela mesma manhã pretendia falar com seu agente para saber se havia novidades da Europa. Lá sim ele seria reconhecido como o grande treinador que achava ser. Lá sim, haveria estrutura adequada, gente competente, tudo a sua altura!
Acontece que o agente não telefonou naquela manha, nem retornou as suas diversas ligações. Nos dias que se passaram recebeu alguns recados, mas nada definitivo. No final da semana conseguiu falar com o agente pessoalmente porem não recebeu as noticias que queria: um contrato com algum time de ponta da Espanha, Inglaterra ou Itália. Pelo contrario: o agente havia sido sondado apenas por diretores e presidentes de equipes de segunda divisão do Brasil. “Segunda divisão é a !~…•N!!!” – disse o treinador claramente. “Imagina se eu sou profissional desse nível?!?!?! Continue procurando.”
O tempo foi passando, passando e…nada! Preocupado, o treinador orientou seu agente a procurar clubes na Europa que não fossem tão expressivos. Seria uma porta de entrada. Após algumas semanas apareceu uma oportunidade: um clube da primeira divisão…só que na China! Não era bem o que ele queria mas a estrutura e a cultura deveriam estar a sua altura. E assim foi. Em sua primeira semana no novo clube o barco começou a fazer água. Havia muita estrutura sim. Um bom estádio, centro de treinamento de primeira, diretoria profissional e competente, porém…a língua era extremamente difícil para ele; o nível técnico dos jogadores era sofrível e a cultura… totalmente diferente do que conhecia.
Em uma das primeiras noites no novo país teve um sonho estranho: estava no Brasil, no clube do qual fora despedido. Estava amarrado a uma trave e amordaçado. No campo o treinamento corria solto. Ele conseguia ver os jogadores do antigo clube, os jornalistas, a diretoria e os torcedores. Parecia que ele não era visto até que um dos goleiros veio para perto da trave junto com o preparador para pegar uma garrafa de água. A todo custo ele tentou se soltar e conseguiu grunhir alguma coisa. O goleiro e o preparador olharam para ele e o goleiro disse: “Melhor ficar calado. Se não vai ajudar pelo menos não atrapalhe. Olha como melhorou desde que você saiu.” E se afastaram deixando-o a observar o treinamento. Era verdade: os jogadores estavam se aplicando no treino, a diretoria observava satisfeita, os jornalistas rascunhavam e gravavam matérias elogiando o comportamento dos atletas e os torcedores apoiavam até mesmo os alongamentos. Sua cabeça girava e ele em desespero, sem poder falar nada só pensava: “Será que era eu o problema? Será que estão melhor sem mim? Será que eu poderia ter feito diferente?….” Abriu os olhos e percebeu-se banhado de suor, com o coração a mil. Rapidamente conseguiu se situar: estava na China, em uma situação completamente nova e difícil. Uma forte sensação de engano (de auto-engano) tomava conta dele. Seria aquele o começo do fim? Quando abriu os olhos já era tarde…