RedePsi - Psicologia

Artigos

Neuroteologia

A idéia central desse artigo é a de estabelecer uma possível aproximação entre o fenômeno da experiência mística e a fisiologia cerebral. Cada vez mais, torna-se necessário estabelecer um hífen entre as disciplinas científicas e as do universo do humanismo, o que inclui, também, a religião.

DESCRITORES: 1. Neurociência; 2. Teologia; 3. Neurofilosofia; 4. Cérebro; 5. Mente.

ABSTRACT

The central idea of this article is to establish a possible approach enters the phenomenon of the mystic experience and the cerebral physiology. Each time more, one becomes necessary to establish a hyphen between the scientific them discipline, and of the humanism universe, what it includes, also, the religion.

KEYWORDS: 1. Neuroscience; 2. Theology; 3. Neurophilosophy; 4. Brain; 5. Mind.

1. INTRODUÇÃO

O conhecimento ao qual aportam as ciências empíricas, obtido através do método científico [observação, experimentação (reprodutível) e hipótese] é o que mais nos aproxima da chamada "verdade científica", ainda que seja somente por permitir compartilhá-la de forma mais consistente por quase todo o mundo. Com isso não quero dizer, nem insinuar, que o conhecimento obtido por humanidades não seja conhecimento "verdadeiro", ou que não se aproxime também da verdade. Mas, quero crer que é da conjunção entre conhecimento científico e humanístico que se pode chegar, de forma mais sólida e contrastada, a uma concepção do que  acontece no mundo e conosco mesmos.

Mas, seria possível lançar uma ponte entre ciências e humanidades no que se refere à religião e, mais especificamente, ao fenômeno místico? É possível falar de cérebro (que são células e moléculas), e relacioná-lo com aquilo que são experiências pessoais, mundo subjetivo, palavras que veiculam emoções, sentimentos e pensamentos?

No que especificamente se refere ao tema deste artigo, convém perguntarmo-nos o que se quer dizer com fenômeno místico. A palavra "mística" refere, em termos gerais e imprecisos, à experiência interior, imediata: tem lugar em um nível de consciência, que supera aquele que rege a experiência comum, e focaliza uma união – qualquer que seja a forma em que a vivenciemos – do mais profundo do indivíduo com o Todo, o Universo, o Absoluto, o Divino, Deus, o Espiritual.

Penso que esta descrição nos aproxima de forma mais clara ao fenômeno em questão. Contudo, como diz Wittgenstein1, quem mais nos aproxima ao que exporemos da perspectiva do cérebro, a mística é no âmbito do real claramente diferente daquela que é acessível ao conhecimento ordinário, objetivo e científico. Sem dúvida que de ambas as perspectivas, da religiosa à "neutra", como puro fenômeno humano, devemos admitir que as tratam como um fenômeno que excede o campo do percebido na vida ordinária.

William James2 (1902), em seu livro As variedades da experiência religiosa, encontram-se pontos concretos, ou critérios, que permitem aproximar o fenômeno místico da psicologia. James assinala ao longo de seu livro, de modo bem explícito ou mais geral, os seguintes critérios:

1) inefabilidade, a dificuldade de se expressar com palavras o que o sujeito experimenta;

2) noético, revela algo novo, diferente, nunca experimentado antes; obtém-se uma experiência mais profunda que a puramente sensorial;

3) transitório, já que este fenômeno dura poucos segundos ou minutos, raramente mais de uma hora;

4) estado passivo, que vem imposto ao sujeito de dentro, e é espontâneo; o fenômeno místico ademais remete a uma força que parece sobre-humana, profunda, que se acompanha de…

5) arroubamento e felicidade, e junto a isso…

6) um sentimento de universalidade e união com todas as coisas e seres vivos sem barreiras nem limites, isto é, leva à perda da noção clara do que é o espaço (a diferença entre meu corpo e as demais coisas e seres) e o tempo (sucessão objetiva de acontecimentos fora de mim mesmo, de meu próprio tempo subjetivo).

A pergunta que agora se coloca é esta: como podemos ancorar esses aspectos psicológicos do fenômeno místico ao funcionamento do cérebro? Não é possível aqui, pela brevidade deste artigo, obter um conhecimento suficiente acerca de como cremos que o homem – o cérebro – percebe a realidade de si mesmo e do mundo que o rodeia, e relacionar o funcionamento cerebral com os critérios de James.

2. ALGO SOBRE O CÉREBRO

Para a Teoria Evolucionária de Charles Darwin, o cérebro humano não apareceu de repente sobre a Terra. É o resultado final de mudanças ao acaso e reajustes produzidos ao longo do processo evolutivo. Um processo que durou mais de 500 milhões de anos. Em conseqüência disso, o homem tem um cérebro tão grande, que excede em muito às necessidades para governar seu corpo e fazê-lo sobreviver no mundo que o rodeia. Mistérios da evolução fizeram que em somente dois ou três milhões de anos o ser humano tivesse aumentado o peso de seu cérebro em quase um quilograma, vale dizer, dos 450 gramas de nossos mais primitivos ancestrais, os Australopitecos, até os 1.450 gramas do homem atual. Não se sabe o que aconteceu na savana africana, testemunha silenciosa desse processo, para que tal enorme mudança ocorresse nesse curto espaço de tempo comparado aos 500 milhões de anos de evolução relativamente conservadora3.

Com esse cérebro enorme, sua complexidade, e passadas as vicissitudes que deram lugar a seu aparecimento – sem dúvida como resultado de uma pressão seletiva guiada nessa direção para manter a sua sobrevivência – o homem  começou a usá-lo como uma máquina capaz de predizer e elaborar idéias, mais além dos estritos determinantes de comer, beber e reproduzir-se. Com a aquisição da linguagem, que segundo datas paleontológicas já começara a cinzelar-se no cérebro do Homo habilis há uns dois milhões de anos, o homem iniciou a caminhada pensante até hoje. Os esboços de consciência de si mesmo e dos demais, o significado da existência da morte e o olhar de estranheza para os fatos do mundo que não se compreendem, devem ter propiciado ao homem o olhar que vai além do mundo daqueles tempos (a Weltanschauung primitiva)4.

O cérebro humano é constituído por uns 100 bilhões de células nobres, os neurônios. E junto a eles, cerca de um bilhão de outras células neurais, a glia. Sabe-se hoje que a glia não é somente a sustentação dos neurônios para seu alimento e proteção, mas que também participa da transmissão de sinais químicos, formando circuitos que codificam funções específicas, sejam mentais, motoras ou sensitivo-sensoriais5.

Os neurobiólogos pensamos que o ser humano é uma unidade na multiplicidade (Unitas multiplex). Abandonando os dualismos – embora eu não o abandone -, e fazendo uma síntese muito resumida, essa unidade se expressa sinalizando que o cérebro não causa, nem produz a mente, porque em seu funcionamento processual é, propriamente dito, a mente, sem, porém, reduzi-la a ele. A mente, os processos mentais, emerge da atividade de circuitos específicos do cérebro evocados em pensamentos (subjetivos), palavras ou conduta. Esses circuitos estão escritos no cérebro em códigos de tempo. As neurociências, neste sentido, estão fomentando uma revolução em nossa concepção clássica do homem, pois chega a reconsiderar a própria natureza humana, o que inclui, claro está, a psicologia, a filosofia, a experiência religiosa e a relação com Deus.

Por que relacionar as neurociências com a ação divina? A maioria dos teólogos cristãos da era moderna seguiu René Descartes como os precedentes teólogos o fizeram com Platão. Assim, assumiram uma visão dualista da natureza humana (seres humanos feitos de alma [ou mente] e corpo). Até então, portanto, a ação de Deus na esfera material humana podia interagir livre e diretamente com as imateriais almas (esferas do espírito). Mas dado que as neurociências atuais cada vez trazem mais peso aos argumentos da unidade do ser humano – um puro organismo físico – lançou um sério desafio aos comitês teológicos que concluíram que se Deus tem algo a fazer com os seres humanos, deve ser feito através da interação com seus corpos, e mais particularmente ainda, com seus cérebros.

3. A EXPERIÊNCIA MÍSTICA E AS NEUROCIÊNCIAS

A questão da ação divina no mundo humano depende, portanto, de  resposta ao problema da ação divina no mundo natural, pois os humanos, considerados em termos de composição, são em toda sua dimensão parte da ordem natural. Dessa maneira, a relevância assumida pelas neurociências para a teologia consistiu basicamente em considerar o impacto dessas ciências, em um debate em marcha, que se reflete na natureza mesma da pessoa humana6.

Em última instância, toda atividade humana é ditada por leis que governam o funcionamento do cérebro. E é somente através do conhecimento dessa legislação funcional que se poderá mudar o mundo futuro a medidas mais "humanas", hoje ainda não previsíveis. Essas mudanças deverão afetar as raízes das concepções éticas, religiosas e sociais, e, conseqüentemente, às normas que governam os seres humanos, o que incluirá a moralidade, a jurisprudência e a política7.

A neurociência chega, contudo, mais longe já que considera a realidade que nos circunda, e as próprias concepções humanas, que são elaboradas e criadas, ao menos em parte, pelo funcionamento do próprio cérebro. Como assinala Blakemore, os neurônios apresentam elementos ao cérebro baseados nas características específicas que detectam no mundo exterior. Elementos com os quais o cérebro constrói sua hipótese da percepção8.

4. SISTEMA  LÍMBICO

Uma parte importante do cérebro, situada debaixo desse imenso órgão  enrugado e pulsante na superfície – o córtex cerebral – dedica-se a elaborar essa humanidade no que se refere à emoção e sentimentos. Trata-se de estruturas neurais que em conjunto formam o "sistema límbico"9. As emoções e as motivações estão ligadas a todas as condutas do homem e dos animais. E essa união se expressa sempre na evocação de recompensa ou castigo (prazer e dor). Hoje, com os mais recentes estudos de neuropsicologia, começa-se a conhecer melhor o fato de que qualquer conduta do ser humano, em especial a ligada à sobrevivência, está ligada aos mecanismos codificados nesse sistema límbico para o prazer e o castigo. Não há conduta alguma que não se realize para alcançar algo benéfico ou evitar algo prejudicial. O primeiro significa a obtenção de recompensas, ou prazer; o segundo se refere à evitação de castigos, isto é, da dor.

Toda informação sensorial que entra (aferência) no cérebro, seja visão, audição, tato, gosto ou olfato, ganha significado para o indivíduo somente quando chega ao sistema límbico. É na sua circuitaria onde o visto ou ouvido é processado e se colore emocionalmente. A informação sensorial que chega a esta área do cérebro impregna-se do bom ou do mau, em função da experiência que o indivíduo teve ao longo de toda a vida. E é com esta informação que se orquestra uma resposta (eferência) de conduta coerente.

5. AS AMÍGDALAS CEREBRAIS

Nesse sistema límbico cerebral há uma estrutura que é a porta de entrada dessa informação e que desempenha papel fundamental. É a 'amígdala', uma área, nos dois hemisférios, onde se realizam as associações entre os chamados reforços primários e secundários. Os primários que por natureza têm propriedades de reforço – uma boa comida caso se esteja faminto, e os secundários que por si mesmos não são reforçadores – uma luz ou um som – mas que caso se associe com o reforço primário (alimento), adquirem propriedades de reforço com seu correspondente significado (associação por aprendizado).

As lesões desta estrutura têm conseqüências múltiplas e graves para o indivíduo. Por exemplo, impedem os primatas de ter uma resposta emocional normal ante estímulos que produzem respostas de prazer (alimento) ou agressivas (visão de uma serpente) tornando-se, portanto, animais apáticos.

Além disso, é interessante assinalar que as lesões desta estrutura nos seres humanos impedem não o reconhecimento, por exemplo, de uma face humana, mas sim a mensagem emocional da mesma. Assim, um paciente com lesão de ambas as amígdalas pode reconhecer a que amigo ou familiar pertence a face de uma fotografia, mas é incapaz de detectar se tal fisionomia reflete uma expressão de alegria ou medo. Esses pacientes tampouco são capazes de reconhecer a entonação emocional quando lhes falamos. Isso dito sugere que a amígdala é uma área importante na avaliação emocional da informação sensorial.

Por outro lado, o córtex órbito-frontal desempenha um papel complementar onde também se realizam associações do tipo estímulo-reforço. Assim, tanto a amígdala como o córtex órbito-frontal, como o hipocampo e o resto das estruturas que codificam a emoção e os sentimentos, como o septum, o hipotálamo e o giro do cíngulo e suas conexões, formatam essa parte do cérebro que é o sistema límbico.

6. COMPORTAMENTO E SISTEMA LÍMBICO

É interessante notar que quando se implanta em áreas do sistema límbico de um animal um eletrodo e através dele se faz passar um estímulo elétrico, provoca-se uma resposta emocional. Particularmente as respostas de reforço ou prazer. Por exemplo, estímulos elétricos em quase todas as áreas do sistema límbico do rato dão lugar a uma conduta de reforço operacional positivo, o animal aprende espontaneamente a apertar uma alavanca com o objetivo de estimular eletricamente seu próprio cérebro. Isso indica claramente que o estímulo elétrico é de prazer.

No ser humano também se demonstrou este fenômeno. Em concreto, o estímulo elétrico de áreas cerebrais límbicas como o septum, o córtex pré-frontal ou o giro do cíngulo, deu lugar a sensações prazerosas de tipo sexual. Em particular, a resposta à estimulação do septum descreveu-se como sensações semelhantes às do orgasmo. Estímulos da amígdala mostraram-se ambivalentes segundo a situação do paciente. Assim, em pacientes com epilepsia psicomotora o estímulo foi descrito como prazenteiro, enquanto que em pacientes não-epiléticos a estimulação dessa mesma estrutura foi altamente desagradável e evocadora de sentimentos de castigo, culpa e reações depressivas.

A amígdala e o hipocampo são duas estruturas cujos neurônios possuem um limiar muito baixo de excitação. Um estímulo elétrico destas estruturas, de baixa intensidade relativa, produz uma descarga neuronal sincrônica que se conhece como pós-descarga elétrica. É de fato um tipo de epilepsia artificialmente provocada no cérebro. Quando em um macaco Rhesus (Macaca mulata) se provoca este tipo de pós-descargas observa-se uma conduta peculiar.

Um macaco Rhesus é, por natureza, um animal pouco sociável e agressivo. Não é possível acariciá-los a menos que seus movimentos estejam restringidos. Assim, durante o desenvolvimento destas pós-descargas, que não duram mais que uns 20-30 segundos (os de maior duração 1 a 2 minutos), o animal desenvolve uma conduta completamente oposta à sua natural e espontânea. O macaco olha de uma maneira relaxada, quase ausente, e pode ser acariciado na face ou nas mãos. O animal não está paralisado e conserva o tônus muscular, posto que se durante a descarga lhe retiremos do seu ponto de apoio ao equilíbrio, responde com imediata oposição a esta manipulação. Tão logo tenha passado este período – confirmado pelo registro poligráfico que vai mostrando o desenvolvimento das pós-descargas – retoma subitamente à sua conduta habitual. Estas pós-descargas, habitualmente e em função da intensidade da estimulação, podem estender-se ao resto das estruturas do sistema límbico.

6. CONDUTA DOS SERES HUMANOS NA ESTIMULAÇÃO CEREBRAL

Nos seres humanos descreveu-se aquilo que se conhece como epilepsias focais de tipo extático (êxtase), ou psíquicas, cujo foco se encontra no sistema límbico e, portanto de características eletrofisiológicas parecidas às que acabo de descrever para os primatas. Durante a descarga neuronal os pacientes experimentam fortes sensações de emotividade, que descrevem como sentimentos que "incendeiam" suas vidas, com arroubamento e felicidade. Há casos, porém nos quais os sentimentos descritos são de desespero profundo, acompanhados de desassossego ou terror extremos.

Também se descrevem sensopercepções como de estar fora do corpo ou, do que viram, já haver visto tudo antes (déjà vu). Alguns pacientes descrevem ter a sensopercepção da presença divina e de estar em comunicação direta com Deus: "Por fim entendi o todo". "Este era o momento que tenho esperado por toda minha vida". "De repente tudo tem sentido". "Penetrei na autêntica natureza do cosmos". Esses estados, como os descritos nos primatas, podem durar segundos ou minutos de cada vez. É bom lembrar que estes fenômenos se dão somente na esfera da sensopercepção, não representando uma experiência real de contato com os objetos referidos. Seria a alucinose, ou alucinação lúcida, que acontece em certos quadros neurológicos.

As epilepsias chamadas do lobo temporal produzem nos pacientes algo deste mesmo tipo de descrição e terminam criando o que se conhece como personalidade do lobo temporal. São pacientes de contato viscoso, que experimentam conversões religiosas súbitas, hiperreligiosidade, hipergrafia, prolixidade (discurso congestionado por falsas minúcias) e perseverança (repetição) no que dizem. Suas conversas quase sempre giram em torno de religião ou de filosofia.

Ramachandran10 descreve conversações com seus enfermos: "Tive meu primeiro ataque quando era menino. Lembro que vi uma luz muito brilhante antes de cair ao solo e me perguntei de onde vinha". Ao fim de uns anos durante os quais sofreu vários ataques mais, o mesmo paciente dizia: "Com o tempo vi tudo claramente, como a água, doutor, não restava nenhuma dúvida. Tinha certeza de meu conta­to com a divindade lá onde se perdiam as fronteiras. Somente havia Unidade com o Criador". O médico lhe pediu que explicasse aquilo de um modo mais concreto. Ele respondeu: "Não é fácil, doutor. Como explicar o orgasmo sexual a um filho que ainda não chegou à puberdade? Pois, é igual. Não há palavras. Não tem sentido".  É bom lembrar que este é um caso de enfermidade.

Neste tipo de epilepsia (síndrome de Gastaut-Geschwind) os pacientes descrevem essas intensas emoções e sentimentos que lhes embargam, e que são, em sua essência, sentimentos não descritíveis, e noéticos, já que não encontram palavras para descrevê-los. Também se conhece este tipo como epilepsia de Dostoiévski, escritor que também tinha crise de êxtase como aura de suas convulsões generalizadas.

Dostoiévski11 em um de seus romances, O idiota, através de um personagem epiléptico, descreve que aqueles instantes, para definir brevemente, se caracterizavam por um fulgurar da consciência, e uma suprema exaltação da emotividade subjetiva. "Por esse único instante poderia dar-se toda uma vida. Um minuto deste tempo é suficiente para se reconhecer uma imensa felicidade".

Que significado tem isso tudo? Todas estas emoções e sentimentos são experimentados pelos pacientes como resultado de uma doença, da descarga patológica de uns quantos neurônios em uma área concreta do cérebro? Somente os enfermos experimentam esses fenômenos de êxtase? Creio que não, indivíduos absolutamente sadios apresentam estes fenômenos, espontaneamente ou através de técnicas próprias, onde suas experiências de, por exemplo, sair do corpo físico, entrar em outras dimensões, estar em contato com seres que vivem nestas outras dimensões etc. são experimentalmente comprovados.

7. PESQUISA COM HUMANOS VOLUNTÁRIOS SADIOS

No início dos anos oitenta um psicólogo da Universidade Lauterian do Canadá, Michel Persinger12, mostrou que pessoas normais podem ter experiências parecidas às descritas como místicas ou extáticas quando se estimulam artificialmente seus lobos temporais. Persinger desenhou um capacete onde colocou eletroimãs orientados convenientemente para produzir campos magnéticos convergentes que pudessem ativar diferentes áreas do cérebro (estalos de atividade, temporal lobe transients) através de estímulos pontuais e de curta duração.

Com estes capacetes e com estímulos dos lobos temporais, as pessoas experimentaram sensopercepções de sair de seus corpos, ou de luzes brancas, ou de sensações ou sentimentos indescritíveis, ou de Deus que lhes fala. Muitas delas, ante o novo destas sensações e sentimentos que experimentaram, mostraram sua incapacidade para descrever com palavras o que sentiram, atribuindo a algo sobrenatural ou espiritual. Persinger assinala que estímulos do lobo temporal direito propiciam mais comumente sensopercepções que atribuem a imposições estranhas, alheias, como que impostas por alienígenas, o que contrasta grandemente com o estímulo do lobo temporal esquerdo, que atribuíam a um anjo ou a Deus. Quando os estímulos magnéticos convergiram mais seletivamente sobre o hipocampo, as sensações descritas foram de relaxamento ou sensação geral de bem-estar.

Teve grande repercussão na mídia o caso do experimento com estímulos magnéticos realizado em Richard Dawkins, professor de Oxford, célebre autor de livros como O gene egoísta, O relojoeiro cego, e criador da palavra e seu conceito, o meme. O experimento tinha, sem dúvida, uma carga importante de curiosidade já que Dawkins é conhecido no meio científico internacional como um ateu confesso. O experimento com o famoso capacete magnético realizou-se em um programa da BBC de Londres chamado Horizontes Científicos. O experimento foi um fracasso, ou, digamos, não se obteve nada do esperado. No parecer do próprio Dawkins, esperava ele que, se era certo que o cérebro normal alojava circuitos evocadores de intensas emoções e sentimentos, capazes de elevar o ser humano mais além desta cotidianidade mundana: nunca esperou evocar nada parecido à idéia de Deus ou ter sentimentos religiosos, nos quais ele não acredita, e ademais, estava absolutamente contra em sentir algo parecido), mas que teria, ao menos, uma experiência interessante e similar à experimentada pelos místicos. Dawkins somente experimentou uma grande frustração e apenas sentiu estranhas sensações e formigamentos.

Em reforço a tudo isso está uma série de trabalhos médicos realizados nos anos sessenta pelo cirurgião canadense, Walter Penfield13 (de origem norte-americana), mostrando que estímulos elétricos do lobo temporal no cérebro de uma paciente consciente (estes estímulos eram realizados no 'quirófano' em um ato exploratório prévio à intervenção cirúrgica delimitando com precisão a área do cérebro a ser retirada em função de tumores cerebrais ou focos epiléticos) produziam sensopercepções ou fenômenos similares aos que descrevemos com Persinger, desde evocação de suas lembranças até fenômenos de levitação. Uma das pacientes de Penfield, durante o estímulo elétrico no hipocampo e do córtex temporal, dizia: "Ouvi uma mãe chamando seu filho. Parece-me que algo aconteceu há anos". Após este primeiro estímulo, um segundo estímulo desta mesma área fez a paciente dizer: "Sim, são as mesmas vozes, uma mulher chamando". E em outro momento da estimulação comunicou: "Ouço vozes, é noite e há um circo, algo de festivo em algum lugar".

Recentemente estes achados, obtidos em ser humano consciente no quirófano, foram confirmados estimulando-se outras áreas do córtex parieto-temporal (giro angular, Área 39 de Brodman). Neles se obtiveram, descritos peIos pacientes, sensopercepções de sair do próprio corpo. Por exemplo, uma mulher de 43 anos, que ia ser operada de um foco epilético, disse, durante estes estímulos: "Posso ver-me, aqui de cima, deitada na cama ainda quando só possa ver minhas pernas e a parte inferior do corpo". Ante esta resposta aumentou-se a intensidade da estimulação elétrica desse mesmo ponto do cérebro e a paciente descreveu a sensação de corpo muito leve, corpo flutuando há uns dois metros acima da cama, perto do teto da sala. O próprio Penfield descreveu aspectos semelhantes quando estimulou eletricamente estas mesmas áreas do cérebro de seus muitos pacientes, sensações de como se não estivesse mais aqui, como se a metade de seu corpo estivesse aqui e a outra metade não, verem-se flutuando no ar.

8. COMO SE POSICIONAR ANTE A NEUROTEOLOGIA

Enfim, com esse material colhido e exposto, poderia se fazer alguma aproximação das descrições feitas pelos místicos, em qualquer contexto religioso? A este respeito é interessante o que escreve John Horgan14 sobre a freqüência com que nós podemos ter algum fenômeno da assim chamada experiência mística varia enormemente – o que não deve surpreender-nos dada a variabilidade de definições -. Uma pesquisa realizada nos anos setenta encontrou que 33% das pessoas adultas nos USA tiveram ao menos uma experiência em sua vida em que sentiram uma força espiritual poderosa que parecia puxar-lhes para fora de si mesmas. Em outra pesquisa entre ingleses encontrou-se uma porcentagem similar de pessoas que foram conscientes de, ou influenciados por, uma força externa a elas mesmas. Sem dúvida que este tipo de experiências pode ser provocado estados alterados de consciência de forma deliberada por drogas, meditação, rezas ou outras práticas espirituais ou religiosas, mas também pode ser produzida como reação pontual à contemplação de um quadro de beleza natural, música, no momento do nascimento de um filho ou como resultado de uma situação de estresse máximo ante situações reais de perigo à própria vida, intenso sofrimento ou enfermidades diversas.

Uma vez mais, isso tudo nos Ieva à idéia de que o cérebro normal, o cérebro de cada ser humano, aloja os substratos capazes de nos oferecer essas experiências chamadas místicas. Ainda, pensa-se que essas experiências podem ser alcançadas por meio de concentração, meditação ou reza após longos anos de prática. Neste contexto foram propostos dois caminhos pelos que, com uma apropriada metodologia e disciplina, o ser humano possa chegar a experimentar estes fenômenos.

Um seria o caminho da contemplação. Com isso se alude ao processo pelo qual através da concentração em uma idéia ou objeto determinado os processos normais do pensamento, automáticos, ficariam anulados. Isto é, produzir-se-ia o bloqueio do processo discursivo normal que cada um de nós desenvolve enquanto estamos despertos. O outro, complementar, seria o caminho da renúncia, ou seja, a renúncia ativaria todo tipo de prazeres, de distrações e até de pensamentos.

Nenhum destes dois caminhos é, em absoluto, novo. São os caminhos conhecidos muito antes de Cristo para alcançar estados de perfeição através de qualquer religião, com ou sem a idéia de Deus, ou, sem religião, mas com a idéia da Espiritualidade. Lembremos aquela passagem do Bem-Aventurado Krishna, escrita no Mahabarata, há mais de 5.000 anos, que diz de quem em meio do prazer não sente desejo; quem abandonou todo impulso, temor ou cólera; quem não odeia nem se entristece; este Ser já está possuído pela Sabedoria.

E esses caminhos estão se introduzindo no mundo ocidental pelas mãos de muitos meditadores orientais. Em qualquer caso, eles parecem conduzir ao que se conhece como um processo de desautomatização dos processos mentais e com isso a deaferentização ou bloqueio das entradas sensoriais. Em Rubia15, lemos que se as estruturas cognitivas normais requerem para seu funcionamento de estímulos externos, presume-se que o isolamento sensorial (a chamada deprivação ou privação sensorial) seja capaz de interromper o funcionamento da mente lógico-analítica para dar lugar a um outro tipo de consciência característica dos estados místicos.

No ser humano adulto nossa dependência do mundo sensorial é imprescindível. Nossa saúde mental, o interpretar o mundo das coisas e dos demais corretamente, está condicionada a um constante contato com a realidade perceptiva do mundo e dos outros. Somos seres escravos da realidade sensorial circundante de nosso próprio mundo, que captamos pelo nosso cérebro. São ilustrativos a este respeito, os experimentos realizados com estudantes voluntários. Eles foram isolados em cubículos difusamente iluminados, usando óculos translúcidos para diminuir a sensação óptica e luvas de papelão para limitar a percepção tátil. Comprovou-se, depois de várias horas de isolamento, que muitos deles começaram a ver imagens tais como "um rochedo à sombra de uma árvore", "uma procissão de esquilos", "animais pré-históricos que caminhavam por uma selva". A princípio os experimentandos surpreenderam-se e se divertiram com estas imagens, mas depois de algum tempo suas alucinações começaram a causar mal-estar. Os estudantes tinham pouco ou nenhum controle sobre estes fenômenos, que incluíam percepções, como, "gente que falava", "uma caixa de música tocando", ou "um coro que cantava com som estereofônico". Alguns deles disseram experimentar sensações de movimento ou táteis, ou sentimentos de "alienação, ou a impressão de que outro corpo estava deitado ao seu lado na cama".

Estudos recentes utilizando técnicas de neuroimagem funcional, como o fSPECT (Tomografia Computadorizada por Emissão de Fóton Único – Single Photon Emission Computed Tomography), fPET (Tomografia por Emissão de Pósitrons), e fRMI (Imagem por Ressonância Magnética) – o "f" significa funcional – revelaram que no cérebro de pessoas sem patologia aparente (pessoas normais), mas que ficaram muitos anos meditando ou rezando, no ponto máximo de meditação aparece uma alta atividade no córtex pré-frontal (processos atencionais) com uma ausência de atividade dos lobos parietais (áreas de orientação – espaço/tempo – do próprio corpo). É neste momento máximo de meditação que estas pessoas relatam, a posteriori, a experiência de que o tempo e o espaço desaparecem, alcança-se o Infinito com a dissolução do Ego no Universo. Newberg assinala que estes achados não são equivocados e nem idéias e desejo de encontrar algo. Estes achados refletem eventos reais, biológicos, que ocorrem no cérebro16.

9. CONCLUSÃO, AINDA QUE PROVISÓRIA

Penso que, a única conclusão que me parece possível hoje do que acabo de relatar, é colocar de manifesto que as experiências dos místicos, na prática da meditação ou de outro ritual qualquer, após muitos anos de aprendizagem, são processos que ocorrem no cérebro, e que podem ser ativados por processos fisiológicos. Ramachandran17 diz que a única conclusão que podemos tirar, a partir dos dados experimentais, é a de que no cérebro humano existem circuitos neurais que são correlatos à experiência religiosa e que em alguns epiléticos estes circuitos se tornam hiperativos espontaneamente.

OBSERVAÇÕES: 1ª. Apesar da Neurociência ser parte integrante de minha formação acadêmica, não me vejo nem ética e nem tecnicamente, como um rebelde por nadar contra a maré. Sou dualista, ao contrário da quase totalidade dos colegas desta área, que são monistas materialistas.

                              2ª. Já disse em outro lugar da RedePsi, que creio que certas regiões cerebrais, sobretudo as mais recentes na Evolução, integrantes do Sistema Límbico e o Lobo Pré-Frontal, manifestem fenômenos endofenotípicos, vale dizer, sua circuitaria aloja a transição, por facilitação neurofisilógica, do registro do gene (herança biológica) com o meme (herança cultural). Seria uma área de superposição entre ambos os registros. No cérebro a parte que lhe cabe em termos de sensação/percepção (gene), no extra-cérebral o estímulo real, objetivo e comprovado das coisas da dimensão da Espiritualidade (meme).

10. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987.

2. JAMES, W. As variedades da experiência religiosa. São Paulo: Cultrix, 1991.

3. LEWIN, R. Evolução humana. São Paulo: Atheneu, 1999.

4. TRIPICCHIO, A. Relação cérebro/linguagem humana: Uma co-evolução. Tese de Doutorado.

    UFSCar-SP, 2004.

5. LENT, R. Cem bilhões de neurônios. São Paulo: Atheneu, 2001.

6. BUNGE, M. El problema mente-cerebro. Madri: Tecnos, 2ª.ed., 1988.

7. GAZZANIGA, M.S. O cérebro social. Lisboa: Inst. Piaget, 1995.

8. BLAKEMORE, C. Mechanics of the mind. Cambridge: CUP, 1977.

9. MARINO JR., R. Fisiologia das emoções. São Paulo: Sarvier, 1975.

10. RAMACHANDRAN, V.S. & BLAKESLEE, S. Fantasmas en el cerebro. Madri: Debate, 1999.

11

11. DOSTOIÉVSKI, F. El Idiota. Barcelona: Juventud, 2002, cap. V, II parte.

12.  PERSINGER, M.ANeuropsychological bases of god beliefs. Portsmouth, NH:

      Greenwood Ed., 1987.

13.PENFIELD, W. O mistério da mente. São Paulo: Atheneu, 1983.

14. HORGAN, J. O fim da ciência. São Paulo: Cia. Das Letras, 1998.

15. RUBIA, F. La conexión divina. Barcelona: Kairós, 2002.

16. D'AQUILI, E. & NEWBERG., A. The mystical mind. Minneapolis: Fortress Press, 1999. Em:

      NEWBERG, A., D'AQUILI, E. & RAUSE, V. Why God won't go away. Brain Science and the

      biology of belief. Nova Iorque: Ballantine Books, 2001.

17. RAMACHANDRAN, V.S. & BLAKESLEE, S. 1999, op.cit.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter