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Metodologia clínica no Campo Psi

Explicar,  compreender  e  interpretar

Lidamos em psicopatologia clínica com a essência do sofrimento humano. Qualquer outra enfermidade da clínica médica também pode trazê-la, por acabar, justamente, arrastando consigo os mesmos sinais e sintomas com os quais trabalhamos em nossa área.

A aplicação sistemática da filosofia, do ponto de vista epistemológico, aos fundamentos da psicopatologia tem início na Universidade de Heidelberg – Alemanha, com o jovem psiquiatra e filósofo Karl Jaspers. Em 1911 ele é aconselhado a escrever uma psicopatologia sob a orientação do método fenomenológico, o qual já vinha preconizando entre seus colegas. Para ele, "compete à fenomenologia apresentar de maneira viva, analisar em suas relações de parentesco, delimitar, distinguir da forma mais precisa possível e designar com termos fixos os estados psíquicos que os pacientes realmente vivenciam". Ele considera que "a fenomenologia é procedimento empírico, que só se mantém pelo fato da comunicação da parte dos pacientes". "É evidente que, nesse procedimento psicológico, a situação é diversa da que ocorre em relação à descrição científico-natural". "O objeto não é, ele próprio, existente para os nossos sentidos; a experiência não é mais do que representação".  

Sua obra Allgemeine Psychopathologie (Psicopatologia Geral) vem à luz em 1913, tornando-se um monumento que viria transformar os destinos da psicoclínica. Mas, não somente a fenomenologia, como ele acentua: "Na fenomenologia observamos qualidades particulares, estados particulares vistos em repouso, compreendemos estaticamente, enquanto aqui [na psicopatologia] apreendemos a inquietação do psíquico, o movimento, o contexto, uma diferenciação, compreendemos geneticamente [psicopatologia compreensiva]" (Jaspers, 1973).

Jaspers empregou a fenomenologia no sentido de uma psicologia descritiva dos fenômenos da consciência, concentrando a sua atenção na estrutura psíquica fundamental da vivência – neologismo castelhano, proposto por Ortega y Gasset (1982), com o fim de traduzir do alemão Erlebnis, sem correspondente em idiomas neolatinos, que significa "experiência vivida subjetivamente", isto é, experiência interna, e não, experiência de vida (externa) em acepção vulgar. Como as vivências do paciente são inacessíveis à observação imediata, o examinador procura estudar diretamente as suas próprias vivências, e compará-las com aquelas captadas do examinando. A esta metodologia Jaspers denomina penetração empática, à busca da compreensão do significado daquelas vivências colhidas. Isto é propedêutica semiológica, primeiro ato da nossa investigação. Somente ultrapassada esta fase é que se poderá em um segundo ato, instituir o diagnóstico e a conduta terapêutica.

Em Carmelo Monedero (1973), encontramos "três métodos de investigação fundamentais em Psicopatologia: a interpretação, a explicação e a descrição fenomenológica". Explicar, compreender e interpretar, precisamente nesta ordem de aplicação clínica, estes três verbos têm, cada um, seu significado popular – de senso comum – bastante assemelhados, podendo ser usados até como sinônimos. Entretanto, do ponto de vista técnico, em nosso jargão, adquirem conotação própria, isto é, uma semântica escatológica de inestimável valor para uma boa discriminação dos fenômenos observados em patopsicologia. É importante que todos adotemos uma mesma terminologia para não transformarmos o estudo da mente humana numa Babel indecifrável. Preferindo não apenas descrever, mas, principalmente, compreender, segundo Jaspers, assim sistematizamos a abordagem da psique do outro:

1º. Método explicativo – É também chamado de método científico-natural. Tem de ser aplicado em primeiro lugar; aqui se pretende correlacionar anomalias micro ou macroanatômicas e funcionais comprovadas do encéfalo, com quadros mentais específicos. Esse método relaciona causa e efeito, de modo necessário, segundo o modelo da física clássica newtoniana. Ou seja, toda vez que surgir uma causa, segue-se a ela, necessariamente, um mesmo efeito. Aqui se enquadram os organicistas que são materialistas radicais. Há uma questão problemática neste método: o estabelecimento preciso de uma causa anatômica cerebral com um efeito necessário mental. Para que se afirme a existência de uma doença mental, de modo rigoroso, seria preciso estabelecer conexões causais entre cérebro e mente, o que ainda está longe de ser obtido pelos estudiosos. Disso deriva que o diagnóstico etiológico – a causa da doença, senso estrito – não é possível de ser feito nas questões mentais. Mesmo assim, é de uso corrente a analogia que se faz no campo psi com a medicina geral. Fala-se de uma tal doença mental da mesma forma que, por exemplo, alguém tendo uma infecção nas meninges do SNC, está com uma doença chamada meningite. Ora, existe um hiato intransponível entre a Patologia Orgânica e os Transtornos Mentais, entre a doença e o doente, muito embora, elas tenham entre si correspondências inegáveis, mas que são ainda em grande parte desconhecidas por nós. As abordagens psicossomáticas, ou, no sentido vetorial inverso, sômato-psíquicas, estão enquadradas neste movimento de ação e reação.

2º. Método compreensivo – É quando procuramos assimilar a subjetividade do outro por meio de nossa intuição clínica, desenvolvida a partir da experiência diária como profissionais-de-ajuda que somos, e de nossa capacidade de empatia, isto é, de sentir com o outro, no lugar dele. Este método também é chamado de compreensivo-fenomenológico, onde buscamos nos despir de pré-julgamentos, pré-juízos ou teorias prévias sistematizadas que costumam se interpor entre nós e o examinando, turvando-nos a visão. Assim feito, estaremos sempre atentos à realidade singular de quem nos procura, e ao significado que ele dá às suas queixas, que são por nós apreendidas, e não apenas tomadas com uma simples descrição clínica de quadros já conhecidos.

A história de nosso cliente não está escrita em nenhum dos tratados clínicos. Temos de escrevê-la em um livro com as páginas ainda em branco, e construirmos uma teoria específica para cada um deles. Qualquer cliente é sempre inédito, inaugural e pioneiro no seu aqui e agora. Este é o respeito que devemos oferecer na escuta de suas queixas. 

3º. Método interpretativo – É quando, numa última tentativa de abordagem, utilizamos uma teoria prévia para o entendimento clínico do Outro. É o método analítico-interpretativo. A interpretação significa: "explicar" segundo um modelo teórico pré-existente. O modelo, geralmente aceito, é o da  Psicologia Profunda, que admite a existência de um Inconsciente Dinâmico pré-determinando nossas emoções, pensamentos e condutas. A Psicopatologia Psicanalítica é fruto desse método. [Esse Método Interpretativo não é a Hermenêutica criada por Heidegger]. Enfatizamos que o método interpretativo somente deve ser usado depois que os demais meios possíveis de se captar a subjetividade do outro tenham sido totalmente esgotados.

O ideal, em qualquer área clínica, seria podermos nos valer sempre, e tão somente, do 1º método: o explicativo. Assim, se o indivíduo está com uma apendicite aguda, é simples: vai para a cirurgia e ponto final. Mas, essa é a visão simplória da causalidade clássica, e que não funciona no campo psicoclínico. Logo chegamos ao 2º método, procurando através da compreensão humana, ajudarmos a solucionar um problema existencial exposto. O 3º método vem numa espécie de apelação ou fé quase-cega, usando-se como ferramenta de trabalho a interpretação analítica.

Vejamos um exemplo: Chega ao nosso consultório um cliente cansado e ofegante, com dificuldade para falar, pedindo uma cadeira para sentar-se e um copo d'água. Vamos suspeitar, seguindo o bom senso nos métodos acima expostos, que o elevador do prédio não está funcionando, e que o pobre homem veio pela escada, e o andar é alto. Assim, explicamos cientificamente o quadro desse cliente: ele está fora de forma física, acima do peso, foi exigido muito de sua musculatura, que começou a doer, foi necessário um aumento da irrigação sangüínea levando oxigênio e removendo gás carbônico e outros catabólitos, como, o ácido láctico dos músculos. Seu coração teve de dobrar o trabalho para bombear o sangue, levá-lo aos pulmões e trazê-lo de volta aos músculos etc. Isto seria uma explicação natural para o estado fisiológico apresentado pelo cliente naquele momento.  

No entanto, aquele homem subiu pelo elevador normalmente, sem nenhum desgaste físico. Perguntamos: O senhor está assim desde quando? E ele responde que tem andado sempre deste jeito nos últimos tempos: cansado, fraco, com falta de ar, com as pernas inchadas etc. etc. Mais uma vez podemos tentar explicar o quadro: poderá ser uma cardiopatia, uma pneumopatia etc. etc. E teremos de buscar dados concretos através de exames objetivos que comprovem, ou não, nossas hipóteses diagnósticas.

Mas pode ser que o cliente tenha subido pelo elevador, e que este tenha parado abruptamente entre dois andares por falta de luz, deixando-o minutos, que pareceram horas, trancado naquele cubículo. Ora, facilmente compreendemos o susto levado. No escuro, fechado, abafado, num prédio estranho, além do tempo que está sendo perdido em função da hora marcada para a consulta. Não precisamos ir além em nosso raciocínio clínico. Qualquer um de nós em seu lugar, muito provavelmente, sentiria as mesmas coisas, e em função disso, teria sua fisiologia orgânica e seu estado mental semelhantes aos do cliente naquele momento. Num simples exercício de se por "no lugar de" compreendemos o que se passa. E se em vez de susto, fosse uma grande tristeza pela perda de alguém próximo muito querido? Ou uma insônia rebelde de alguém endividado, prestes a falir? Ou da ansiedade de um vestibulando às vésperas do exame?

Entretanto, o elevador está funcionando normalmente e, mesmo assim, o paciente vem pela escada! Claro que ele irá chegar cansado, com falta de ar, pedindo água etc., etc. Não dá para explicar ou compreender a atitude do cliente. Aqui a física clássica não ajuda, e também não dá para nos colocarmos em seu lugar – a não ser que tenhamos o mesmo distúrbio. Temos de apelar. Qual o impedimento ao uso do elevador? Mesmo sendo o cliente um sujeito lúcido e inteligente, bom profissional e bom homem, e mais, mesmo tendo plena consciência crítica do absurdo da situação, não houve outra opção. Trata-se de um intenso medo irracional o qual, certamente, juntando-se a outros dados do cliente, nos levará a alguma suspeita de uma determinação psíquica extraconsciente envolvida no caso exposto. Já estamos, assim, em pleno uso de uma teoria pré-estabelecida – o inconsciente dinâmico – e começamos a interpretar aquele quadro clínico.

Qualquer um de nós, em determinadas circunstâncias, pode se assustar, com ou sem elevador; pode ter medos irracionais; pode, enfim, apresentar comportamentos e sentimentos difíceis de se explicar, compreender ou interpretar, o que não significa necessariamente que estejamos, de fato, com algum transtorno mental ou físico. Quando, então, deve começar a ação do psicoclínico? Irá depender da singularidade que se impõe em cada caso, isto é, da (1) intensidade do sintoma, e (2) da freqüência com que aparece este determinado sintoma. É necessário ter uma grande habilidade por parte do profissional para perceber o grau de sofrimento que o indivíduo está apresentando, antes de lançar alguma hipótese diagnóstica ou sugerir alguma terapêutica.

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