A pesquisa moderna de estados holotrópicos (um grande subgrupo especial de estados não-ordinários de consciência) tais como psicoterapia experiencial, trabalho clínico e de laboratório com substâncias psicodélicas, antropologia de campo, tanatologia, e terapia com indivíduos passando por crises psicoespirituais (“emergências espirituais”) gerou uma pletora de observações extraordinárias que abalaram algumas das premissas mais fundamentais da psiquiatria, psicologia e psicoterapia modernas.
Introdução
1) Ao contrário do que diz a ciência acadêmica, o software da psique humana não se limita à biografia pós-natal e ao inconsciente individual freudiano. A psique individual humana, incluídas outras dimensões importantes – o domínio perinatal, intimamente relacionada com o trauma do nascimento, e o reino transpessoal, a fonte de experiências que transcendem o corpo-ego – e é essencialmente equivalente a toda a existência.
2) Os distúrbios emocionais e psicossomáticos de origem psicogenética não podem ser explicados de forma adequada por eventos traumáticos pós-natais; eles têm raízes perinatais e transpessoais significativas. Por esse motivo, a psicoterapia, para ser eficaz, precisa incluir esses domínios transbiográficos que vão mais além da biografia e não pode se restringir ao trabalho com o material da vida pós-natal.
3) Além da manipulação do material biográfico que é usado atualmente pelas várias escolas de psicoterapia ocidental, os estados holotrópicos oferecem mecanismos de cura experiencial poderosos, que se tornam disponíveis nos níveis perinatais e transpessoais da psique, tais como reviver o nascimento biológico e a experiência da morte e renascimento psicoespiritual, experiências de vidas passadas, seqüências arquetípicas, episódios de unidade cósmica e outros mais.
4) Os estados holotrópicos, sejam espontâneos ou induzidos, mobilizam forças de cura intrínsecas ao organismo. Quando compreendidos e apoiados de forma adequada, eles podem resultar em curas emocionais e psicossomáticas, transformações positivas da personalidade e evolução da consciência. Oferecem possibilidades terapêuticas que são radicalmente diferentes e superiores aos esforços convencionais para entender racionalmente a dinâmica dos distúrbios emocionais e tratá-Ios por meio de intervenções verbais psicoterapêuticas que refletem as crenças das várias escolas de psicoterapia.
5) A espiritualidade em sua forma genuína é uma dimensão legítima e importante da existência e é incorreto rejeitá-Ia como produto da ignorância, da superstição, do pensamento mágico primitivo ou da patologia. Experiências místicas não devem ser consideradas indicações de doença mental, e sim manifestações normais e altamente desejáveis da psique humana que possui um potencial extraordinário para curas e transformações.
6) Muitas experiências em estados não-ordinários da consciência contestam seriamente não só as atuais teorias psiquiátricas e psicológicas, como também as premissas filosóficas básicas da ciência materialista ocidental referente à natureza da realidade e à relação entre matéria e consciência. À luz de novas descobertas, a consciência não é um produto dos processos neurofisiológicos do cérebro, mas sim um aspecto fundamental da existência que é mediada, mas não produzida, pelo cérebro.
1. Experiências holotrópicas e seu potencial heurístico e de cura
A fonte das observações examinadas neste artigo tem sido um estudo sistemático de longo prazo, daquilo que a psiquiatria acadêmica chama de "estados alterados de consciência" ou "estados não-ordinários da consciência." Os focos primordiais dessa pesquisa foram experiências que representam uma fonte útil de dados sobre a psique humana, e aquelas que têm um potencial de cura, transformador e evolucionário. Para esse objetivo, o termo "estados não-ordinários da consciência" é demasiado geral; inclui uma série muito ampla de condições que não são interessantes ou relevantes para nosso ponto de vista.
A consciência pode ser profundamente modificada por uma variedade de processos patológicos – por traumas cerebrais, por intoxicações com produtos químicos venenosos, por infecções, ou por processos degenerativos e circulatórios no cérebro. Tais condições podem provocar mudanças mentais profundas que seriam incluídas na ampla categoria de "estados não-ordinários da consciência". No entanto, eles causam "delírios triviais" ou "psicoses orgânicas", estados associados com desorientação geral, deterioração do intelecto e amnésia subseqüente. Essas condições são muito importantes do ponto de vista clínico, mas não são de grande interesse para os pesquisadores da consciência.
Este capítulo sumariza as observações que dão ênfase a um subgrupo amplo e importante de estados não-ordinários da consciência para os quais a psiquiatria contemporânea não tem um termo específico. Cheguei à conclusão que, devido a suas características peculiares, eles merecem ser diferenciados dos demais e colocados em uma categoria especial. Por esse motivo, eu lhes dei o nome de holotrópicos. Essa palavra composta significa literalmente "orientado para a totalidade" ou "indo na direção da totalidade" (do grego holos = todo, e trepein = indo para, ou na direção de algo). O significado geral do termo e a justificativa para seu uso ficarão mais claros mais adiante neste trabalho. Este nome sugere que, em nosso estado de consciência cotidiano, estamos fragmentados e nos identificamos apenas com uma pequena fração daquilo que realmente somos.
Nos estados holotrópicos, a consciência é modificada qualitativamente de uma maneira muito profunda e fundamental, mas não sofre uma deterioração grosseira como no caso de psicoses orgânicas ou de delírios triviais. Vivenciamos a invasão de outras dimensões da existência que podem ser muito intensas e mesmo engolfantes. No entanto, ao mesmo tempo, em geral permanecemos totalmente orientados, e não perdemos totalmente o contato com a realidade cotidiana. Os estados holotrópicos caracterizam-se por uma transformação específica da consciência associada com mudanças perceptuais dramáticas em todas as áreas sensoriais, emoções intensas e muitas vezes incomuns e alterações profundas nos processos do pensamento. Eles são também comumente acompanhados por uma variedade de intensas manifestações psicossomáticas e formas não convencionais de comportamento.
O conteúdo dos estados holotrópicos é muitas vezes espiritual ou místico. Podemos vivenciar seqüências de morte psicológica e renascimento e um amplo espectro de fenômenos transpessoais, tais como sentimentos de união e identificação com outras pessoas, com a natureza, com o universo e com Deus. Podemos descobrir o que parecem ser memórias de outras encarnações, encontrar figuras arquetípicas poderosas, comunicar-nos com seres desencarnados e visitar inúmeras paisagens mitológicas. Nossa consciência pode se separar de nosso corpo e ainda assim manter a capacidade de perceber o ambiente imediato e lugares remotos.
Os psiquiatras ocidentais estão cientes da existência de experiências holotrópicas, mas, devido a sua estrutura conceitual estreita, limitada à biografia pós-natal e ao inconsciente individual freudiano, não têm qualquer explicação adequada para eles. Consideram-nos como produtos patológicos do cérebro, sintomáticos de uma doença mental séria, a psicose. Essa conclusão não é corroborada por evidência clínica e, no mínimo, é altamente problemática. Referir-se a essas condições como "psicoses endógenas" pode parecer extraordinário para uma pessoa leiga, mas é pouco mais do que uma admissão da ignorância dos profissionais com relação à etiologia dessas condições.
É difícil imaginar o que e como um processo patológico afetando o cérebro possa produzir o rico e intrigado espectro de experiências holotrópicas, envolvendo fenômenos como seqüências devastadoras de morte e renascimento psicoespiritual, encontros com seres arquetípicos, visitas a reinos mitológicos, cenas da vida passada de outras culturas, ou visões de discos voadores e experiências de seqüestro por alienígenas. Além disso, um estudo cuidadoso da natureza dessas experiências e a informação que elas transmitem diretamente contradizem tal interpretação. Um dos objetivos deste trabalho é explorar o estado ontológico das experiências holotrópicas e demonstrar que elas são fenômenos sui generis – manifestações normais da psique humana que têm um grande potencial heurístico e de cura.
Culturas antigas e aborígines gastaram muito tempo e energia desenvolvendo técnicas poderosas de alteração da mente que podem induzir estados holotrópicos. Essas "tecnologias do sagrado" combinam de várias maneiras o canto, respiração, tambores, danças rítmicas, jejum, isolamento social e sensorial, dor física extrema e outros elementos (Eliade, 1964; Campbell, 1984). Com esse objetivo, muitas culturas usavam materiais botânicos contendo alcalóides psicodélicos (Stafford, 1977; Schultes & Hofmann, 1979).
Os mais famosos exemplos dessas plantas são várias variedades de cânhamo, cogumelos "mágicos", o cacto mexicano conhecido como peiote, o rapé sul-americano e caribenho, o arbusto africano eboga e o cipó da floresta amazônica, Banisteriopsis caapi, a fonte do iagê ou ayahuasca. Entre os materiais psicodélicos de origem animal estão as secreções da pele de algumas rãs e a carne do peixe Kyphosus fuscus, do Oceano Pacífico.
Outros importantes desencadeadores de experiências holotrópicas são as várias formas de práticas espirituais sistemáticas que envolvem meditação, concentração, respiração e exercícios de movimento corporal, que são usados nos vários sistemas do ioga, Vipassana ou Zen Budismo, a Vajrayana tibetana, o Taoísmo, o misticismo cristão, o Sufismo e a Cabala. Outras técnicas eram usadas nos mistérios antigos da morte e renascimento, tais como as iniciações dos templos egípcios de Ísis e Osíris e a bacchanalia grega, os ritos de Attis e Adonis e os mistérios de Elêusis. Os detalhes dos procedimentos envolvidos que esses ritos secretos continuam em sua maior parte desconhecidos, embora seja provável que as preparações psicodélicas tenham desempenhado um papel importante neles (Wasson & cols., 1978).
Entre meios modernos de induzir estados holotrópicos de consciência estão os princípios ativos puros isolados das plantas psicodélicas (mescalina, psilocibina, e derivados da triptamina, harmalina, ibogaina, cânabis e outros). Substâncias sintetizadas no laboratório [LSD, anfetamina e ketamina (Shulgin & Shulgin, 1991)] e formas experienciais poderosas de psicoterapia, tais como a hipnose, abordagens neo-reichianas, terapia primal e o renascimento. Minha esposa Cristina e eu desenvolvemos um trabalho de respiração holotrópica, um método poderoso que pode desencadear estados holotrópicos profundos por meios muito simples – respiração consciente, música evocativa e trabalho corporal focado (Grof, 1988).
Existem também técnicas de laboratório muito eficazes para alterar a consciência. Uma delas é o isolamento sensorial, que envolve redução significativa de estímulos sensoriais importantes. Em sua forma extrema, o indivíduo é privado de qualquer estímulo sensorial submergindo-a em um tanque escuro à prova de som, cheio de água na temperatura corporal (Lilly, 1977). Outro método bem conhecido para alterar a consciência é o biofeedback, onde o indivíduo é guiado por sinais eletrônicos de feedback até que entre em estados não-ordinários de consciência caracterizados pela preponderância de certas freqüências específicas de ondas cerebrais (Green & Green, 1978). Poderíamos também mencionar aqui as técnicas de privação do sono e de sonhos e o sonho lúcido (La Berge, 1985).
É importante enfatizar que episódios de estados holotrópicos de duração variada podem também ocorrer espontaneamente, sem qualquer causa específica identificável e muitas vezes contra a vontade das pessoas envolvidas. Como a psiquiatria moderna não diferencia entre os estados místicos e espirituais e as doenças mentais, pessoas vivenciando esses estados são muitas vezes consideradas psicóticas e são hospitalizadas e submetidas a tratamentos psicofarmacológicos supressivos. Minha esposa e eu consideramos esses estados como crises psicoespirituais ou "emergências espirituais". Acreditamos que se eles forem apoiados adequadamente e tratados, podem ter como resultado curas emocionais e psicossomáticas, transformação positiva da personalidade e evolução da consciência (Grof & Grof, 1989; 1990).
Culturas antigas e pré-industriais valorizavam os estados holotrópicos imensamente, praticavam-nos regularmente em contextos socialmente sancionados, e gastavam muito tempo e energia desenvolvendo técnicas seguras e eficazes para induzi-Ios. Esses estados têm sido o veículo principal para sua vida ritual e espiritual, como um meio de comunicação direta com os domínios arquetípicos de divindades e demônios, forças da natureza, o reino animal e o cosmos. Usos adicionais incluíam o diagnóstico e a cura de doenças, o desenvolvimento da intuição e da percepção extra-sensorial (PES), e a obtenção de inspiração artística, bem como objetivos práticos, tais como a localização da caça e de objetos ou pessoas perdidas. Segundo o antropólogo Victor Turner, partilhar esses estados em grupos também contribui para a união tribal e tende a criar uma sensação de conexão profunda (communitas).
A psiquiatria e a psicologia ocidentais não consideram os estados holotrópicos (à exceção de sonhos que não são recorrentes ou assustadores) como fontes potenciais de informações valiosas sobre a psique humana e sobre a cura, e sim, basicamente, como fenômenos patológicos. Os clínicos tradicionais tendem a usar indiscriminadamente os rótulos patológicos e a medicação supressiva sempre que esses estados ocorrem espontaneamente. Michael Harner, um antropólogo com excelente reputação acadêmica, que se submeteu a uma iniciação xamânica durante seu trabalho de campo na selva amazônica e pratica o xamanismo, sugere que a psiquiatria ocidental é seriamente preconceituosa em pelo menos dois modos significativos (Harner, 1980).
Ela é etnocêntrica, o que significa que considera que a sua própria visão da psique humana e da realidade é a única correta e superior a todas aquelas compartilhadas por outros grupos culturais. Dessa perspectiva, as experiências e comportamentos para os quais não existe nenhuma explicação psicanalítica ou behaviorista, são atribuídas à doença mental. Segundo Harner, a psiquiatria ocidental também é cognicêntrica (uma palavra mais exata poderia ser "pragmacêntrica"), querendo dizer com isso que ela só leva em consideração experiências e observações no estado ordinário da consciência. A falta de interesse e o menosprezo que a psiquiatria tem pelos estados holotrópicos teve como resultado uma abordagem culturalmente insensível, e uma tendência a considerar como patologia todas as atividades que não podem ser compreendidas no estreito contexto do paradigma materialista monístico. Isso inclui a vida espiritual e ritual das culturas antigas e pré-industriais e toda a história espiritual da humanidade.
Se estudarmos sistematicamente as experiências e observações associadas com os estados holotrópicos, veremos que isso levará a uma revisão radical de nossas idéias básicas sobre a consciência e sobre a psique humana e a uma abordagem totalmente nova à psiquiatria, à psicologia e à psicoterapia. As mudanças que teríamos de fazer em nosso pensamento se dividem em várias grandes categorias: 1) Nova compreensão e nova cartografia da psique humana; 2) A natureza e arquitetura dos distúrbios emocionais e psicossomáticos; 3) Mecanismos terapêuticos e o processo de cura; 4) A estratégia da psicoterapia e auto-exploração; 5) O papel da espiritualidade na vida humana; 6) A natureza da realidade.
2. Nova compreensão e cartografia da psique humana
A psiquiatria e a psicologia acadêmicas tradicionais usam um modelo da psique que é restrita à biografia pós-natal e ao inconsciente individual freudiano. Para explicar todos os fenômenos que ocorrem em estados holotrópicos, nosso entendimento das dimensões da psique humana tem de ser ampliado drasticamente. Eu mesmo sugeri uma cartografia ou modelo da psique que contém, além do nível biográfico comum, dois domínios transbiográficos: o domínio perinatal, relacionado com o trauma do nascimento biológico; e o domínio transpessoal, que explica fenômenos tais como a identificação experiencial com outras pessoas, animais e plantas, visões de seres e reinos arquetípicos e mitológicos, experiências ancestrais, raciais e cármicas e identificação com a mente universal ou o vazio (Grof, 1975). Essas são experiências que foram descritas através dos tempos na literatura religiosa, mística e ocultista.
3. Biografia pós-natal e o inconsciente individual
O nível biográfico da psique não exige muita discussão, já que é bem conhecido através da literatura profissional oficial. Aliás, é aquilo de que tratam a psiquiatria, a psicologia e a psicoterapia tradicionais. No entanto, existem algumas diferenças importantes entre explorar esse domínio através da psicoterapia verbal e através de abordagens que usam estados holotrópicos. Primeiramente, em terapias experienciais intensas, nós não só lembramos de eventos significativos emocionalmente, ou os reconstruímos indiretamente a partir dos sonhos, de lapsos lingüísticos ou de distorções de transferência. Vivenciamos as emoções originais, as sensações físicas e até as percepções sensoriais em uma regressão etária total. Isso significa que, quando revivemos um trauma importante da primeira infância ou da infância em geral, nós realmente temos a imagem corporal, a percepção ingênua do mundo, as sensações e as emoções que correspondem à idade que tínhamos à época.
A segunda diferença entre o trabalho com material biográfico em estados holotrópicos, quando comparado com psicoterapias verbais é que no primeiro, além de enfrentar os traumas psíquicos de sempre, as pessoas muitas vezes têm de reviver e integrar traumas que eram primordialmente de natureza física. Muitas pessoas têm de processar experiências de quase-afogamento, operações, acidentes e doenças infantis, principalmente aquelas associadas com sufocação, tais como a difteria, a coqueluche, ou a aspiração de um objeto estranho.
Esse material emerge bastante espontaneamente e sem qualquer programação. À medida que ele vem à tona, as pessoas compreendem que esses traumas físicos realmente desempenharam um papel significativo na psicogênese de seus problemas emocionais e psicossomáticos, tais como a asma, a enxaqueca, e uma variedade de dores psicossomáticas, fobias, tendências sadomasoquistas ou depressão e tendências ao suicídio. Reviver essas memórias traumáticas, e sua integração, podem então ter conseqüências terapêuticas de longo alcance. Isso contrasta nitidamente com as atitudes da psiquiatria e psicologia acadêmicas que não reconhecem que injúrias físicas podem ter uma influência direta na formação de traumas psíquicos.
Outra informação nova sobre o nível de relembranças biográficas da psique que surgiu com minha pesquisa psicodélica e holotrópica foi a descoberta de que as memórias emocionalmente relevantes não são armazenadas no inconsciente como um mosaico de impressões isoladas, mas na forma de constelações complexas e dinâmicas. Eu cunhei para essas constelações o nome sistemas coex que é uma abreviação de "sistemas de experiência condensada". Um sistema coex consiste de memórias impregnadas de emoções de períodos diferentes de nossa vida que se parecem umas com as outras em termos da qualidade da emoção ou da sensação física que compartilham. Cada coex tem um tema básico que permeia todas suas camadas e representa seu denominador comum. As camadas individuais contêm, então, as variações desse tema básico que ocorreram nos vários períodos da vida da pessoa.
A natureza do tema central varia consideravelmente de um coex para outro. As camadas de um sistema específico podem, por exemplo, conter todas as memórias mais importantes de experiências humilhantes, degradantes ou vergonhosas que prejudicaram nossa auto-estima. Em outro sistema coex o denominador comum pode ser a ansiedade, vivenciada em várias situações chocantes ou aterradoras ou sentimentos de sufocação e claustrofobia evocados por circunstâncias opressivas e de confinamento. A rejeição ou a privação emocional que danifica nossa capacidade de confiar nos homens, nas mulheres ou nas pessoas em geral, é outro motivo comum. Situações que geraram em nós sentimentos profundos de culpa e uma sensação de fracasso, eventos que nos deixaram a convicção de que o sexo é perigoso ou asqueroso, e encontros com agressão e violência indiscriminada podem ser acrescentados à lista acima como exemplos característicos. Particularmente importantes são os sistemas coex que contêm memórias de encontros com situações perigosas para a vida, para a saúde ou para a integridade do corpo.
Quando descrevi pela primeira vez os sistemas coex nas primeiras fases da minha pesquisa psicodélica, pensei que eles governassem a dinâmica do nível biográfico do inconsciente. À medida que minha experiência com estados holotrópicos tomou-se mais rica e mais extensa, compreendi que as raízes dos sistemas coex são muito mais profundas. Cada uma das constelações coex parece superimpor um aspecto específico do trauma do nascimento, ancorando-se nele. Além disso, um sistema coex típico vai ainda mais longe e tem suas raízes mais profundas nas várias formas de fenômenos transpessoais, tais como experiências de vidas passadas, arquétipos junguianos, identificação consciente com vários animais, e outras. Atualmente eu considero os sistemas coex como princípios gerais organizadores da psique humana. O conceito de sistemas coex parece, até certo ponto, com as idéias junguianas sobre complexos psicológicos (Jung, 1960) e com os sistemas dinâmicos trans- fenomenais de Hanskare Leuner (Leuner, 1962) mas têm muitas características que os diferenciam de ambos conceitos.
Os sistemas coex desempenham um papel importante na nossa vida psicológica. Podem influenciar a maneira como percebemos a nós mesmos, outras pessoas, e o mundo e como nos sentimos a respeito deles. Eles são as forças dinâmicas por trás de nossos sintomas emocionais e psicossomáticos, dificuldades de relacionamento com outras pessoas e comportamento irracional. Existe uma interação dinâmica entre os sistemas coex e o mundo externo. Eventos externos em nossa vida podem especificamente ativar sistemas coex correspondentes e, ao contrário, sistemas coex ativos podem nos fazer perceber e nos comportarmos de tal maneira que recriamos seus temas centrais em nossa vida presente (Grof, 1975).
Antes de continuar nossa discussão da nova cartografia ampliada da psique humana, é importante mencionar brevemente uma característica muito importante e extraordinária dos estados holotrópicos que desempenharam um papel muito significativo no mapeamento dos territórios experienciais da psique e que também é inestimável para o processo de psicoterapia. Os estados holotrópicos tendem a "ligar" algo assim como um "radar interno" que automaticamente traz à consciência os conteúdos do inconsciente que têm a carga emocional mais forte e que são mais relevantes psicodinamicamente naquele momento. Isso representa uma grande vantagem em comparação à psicoterapia verbal, onde o cliente apresenta uma série ampla de informação de vários tipos, e o terapeuta tem de decidir o que é importante, o que é irrelevante e o que o paciente está bloqueando.
Como não há qualquer concordância geral sobre as questões teóricas básicas entre as várias escolas, tais avaliações serão sempre idiossincráticas, refletindo as perspectivas da escola do terapeuta e suas visões pessoais. Os estados holotrópicos evitam que o terapeuta tenha de tomar essas decisões tão difíceis, e elimina muitas das tendências pessoais e profissionais das abordagens verbais. Essa seleção automática de material relevante por parte da psique do paciente também espontaneamente guia o processo de auto-exploração mais além do nível biográfico e o orienta para os níveis perinatal e transpessoal da psique. Esses são domínios transbiográficos que não são reconhecidos nem aceitos pela psiquiatria e psicologia acadêmicas.
4. O nível perinatal da psique
Quando nosso processo de profunda auto-exploração experiencial vai além do nível das memórias dos primeiros anos e da infância e alcança o próprio nascimento, começamos a nos deparar com emoções e sensações físicas de intensidade extrema, que muitas vezes ultrapassam qualquer coisa que anteriormente considerávamos humanamente possível. A essa altura, as experiências tornam-se uma combinação estranha dos temas de nascimento e morte. Elas envolvem uma sensação de aprisionamento que ameaça a própria vida e uma luta desesperada e decidida para nos libertarmos e sobreviver. Esse relacionamento íntimo entre o nascimento e a morte no nível perinatal reflete o fato de que o nascimento é um evento que pode ser um risco de vida. A criança e a mãe podem realmente perder suas vidas durante o processo e crianças podem nascer arroxeadas por asfixia, ou até mesmo mortas e precisando ser ressuscitadas.
A revivência de vários aspectos do nascimento biológico pode ser muito autêntica e convincente e muitas vezes repetimos o processo em detalhe fotográfico. Isso pode ocorrer mesmo em pessoas que não têm qualquer conhecimento intelectual de seu nascimento e a quem faltam informações sobre obstetrícia, mesmo as mais elementares. Podemos, por exemplo, descobrir através da experiência direta que nascemos de nádegas, que foi usado um fórceps durante o parto ou que nascemos com o cordão umbilical enrolado no pescoço. Podemos sentir a ansiedade, a fúria biológica, a dor física e a sufocação associadas com esse evento atemorizador e até reconhecer, com precisão, o tipo de anestesia usada quando nascemos. Isso é, muitas vezes, acompanhado por várias posturas e movimentos da cabeça e do corpo que recriam corretamente a mecânica de um tipo específico de parto. Todos esses detalhes podem ser confirmados se existem registros precisos do nascimento ou testemunhas pessoais fidedignas.
A forte representação do nascimento e da morte em nossa psique e a íntima associação entre eles pode surpreender psicólogos e psiquiatras tradicionais, mas na verdade isso é lógico e facilmente compreensível. O parto termina bruscamente com a existência intra-uterina do feto. Ele ou ela "morrem" como organismo aquático e nasce como uma forma de vida que respira o ar, e é fisiológica e até mesmo anatomicamente diferente. E a própria passagem pelo canal do nascimento é uma situação difícil e que pode ameaçar a vida.
O que não é tão fácil de compreender é por que a dinâmica perinatal também regularmente inclui um componente sexual. Quando estamos revivendo os estágios finais do parto no papel do feto, isso é tipicamente associado com uma excitação sexual extraordinariamente forte. O mesmo ocorre com as mulheres durante o parto, que podem vivenciar uma combinação de medo da morte e de excitação sexual intensa. Essa conexão parece estranha e surpreendente, sobretudo no caso do feto, e certamente merece umas palavras de explicação.
Parece existir um mecanismo no organismo humano que transforma sofrimento extremo, especialmente quando é associado com sufocação em uma forma peculiar de excitação sexual. Essa conexão experiencial pode ser observada em uma variedade de situações além do nascimento. Pessoas que tentaram se enforcar e foram salvas no último momento tipicamente descrevem que, no auge da asfixia, sentiram uma excitação sexual quase insuportável. Sabe-se que homens que são executados por enforcamento normalmente têm uma ereção e ejaculam.
A literatura sobre tortura e lavagem cerebral descreve que sofrimento físico desumano muitas vezes provoca êxtase sexual. Nas seitas de flagelantes, que regularmente se submetem à tortura auto-infligida, e nos mártires religiosos que foram submetidos a tormentos inimagináveis, a dor física extrema, em um determinado momento, se transforma em excitação sexual e eventualmente provoca arroubos extáticos e experiências transcendentais. Em uma forma menos extrema, esse mecanismo opera em várias práticas sadomasoquistas que incluem estrangulamento e sufocação.
O espectro experiencial do domínio perinatal do inconsciente não se limita a emoções e sensações físicas que podem ser originárias de processos biológicos, envolvidos no parto. Também envolve um rico imaginário simbólico que é extraído dos domínios transpessoais. O domínio perinatal é uma interface importante entre os níveis biográficos e transpessoais da psique. Representa uma passagem para os aspectos históricos e arquetípicos do inconsciente coletivo no sentido junguiano. Como o simbolismo específico dessas experiências têm sua origem no inconsciente coletivo, e não nos bancos de memórias individuais, ele pode se originar de qualquer contexto geográfico e histórico, assim como de qualquer tradição espiritual do mundo, de forma bastante independente de nosso contexto racial, cultural, educacional ou religioso.
A identificação com o bebê enfrentando a penosa experiência da passagem através do canal do nascimento parece dar acesso a experiências de pessoas de outras épocas e culturas, de vários animais e até de figuras mitológicas. É como se, ao conectar com a experiência do feto lutando para nascer, atingíssemos uma conexão íntima, quase mística, com a consciência da espécie humana e com outros seres sencientes que estão, ou já estiveram, em um apuro semelhante.
A confrontação experiencial com o nascimento e a morte parece ter como resultado, automaticamente, uma abertura espiritual e a descoberta de dimensões místicas da psique e da existência. Parece não fazer qualquer diferença se esse encontro com o nascimento e a morte ocorre em situações reais da vida, tais como no caso de mulheres dando à luz e no contexto de experiências de quase morte, ou se é puramente simbólico. Seqüências perinatais intensas em sessões psicodélicas e holotrópicas ou durante crises psicoespirituais espontâneas ("emergências espirituais") parecem ter o mesmo efeito.
O nascimento biológico tem três estágios distintos. No primeiro, o feto é apertado pelas contrações uterinas sem ter qualquer chance de escapar dessa situação, já que o cérvix está firmemente fechado. As contrações contínuas empurram o cérvix sobre a cabeça do feto até que ele esteja suficientemente dilatado para permitir a passagem através do canal do nascimento. A dilatação total do cérvix e a descida da cabeça para encaixar-se na pelve marcam a transição do primeiro para o segundo estágio do parto que é caracterizado pela gradual e difícil propulsão através das vias do nascimento. E finalmente, no terceiro estágio, o recém-nascido emerge do canal do nascimento e, depois que o cordão umbilical é cortado, ele ou ela se tornam um organismo anatomicamente independente.
Em cada um desses estágios o bebê vivencia um conjunto de emoções intensas e sensações fisicas específicas e típicas. Essas experiências deixam marcas inconscientes profundas na psique que, mais tarde, irão desempenhar um papel importante na vida do indivíduo. Reforçadas por experiências emocionalmente importantes da primeira infância e da infância em geral, as memórias do nascimento podem formar a percepção do mundo, influenciar profundamente o comportamento cotidiano e contribuir para o desenvolvimento de vários distúrbios emocionais e psicossomáticos.
Nos estados holotrópicos, esse material inconsciente pode vir à tona e ser vivenciado plenamente. Quando nosso processo de auto-exploração profunda nos leva de volta ao nascimento, descobrimos que reviver cada um dos estágios do parto se associa com um padrão experiencial distinto, caracterizado por uma combinação específica de emoções, sensações físicas e imagens simbólicas. Refiro-me a esses padrões da experiência como matrizes perinatais básicas (MPBs).
A primeira matriz perinatal (MPB I) é relacionada com a experiência intra-uterina que imediatamente precede o nascimento e as três matrizes restantes (MPB II – MPB IV) com os três estágios clínicos do parto descritos acima. Além de conter elementos que representam um replay da situação original do feto em um estágio específico do nascimento, as matrizes perinatais básicas também incluem várias cenas naturais, históricas e mitológicas com qualidades experienciais semelhantes extraídas de domínios transpessoais.
As conexões entre as experiências dos estágios consecutivos do nascimento biológico e várias imagens simbólicas associadas com elas são muito específicas e consistentes. O motivo pelo qual elas emergem juntas não faz sentido em termos da lógica convencional. No entanto, isso não quer dizer que as associações sejam arbitrárias ou ao acaso. Elas têm sua própria ordem profunda cuja melhor descrição é "lógica experiencial". O que isso significa é que a conexão entre as experiências características dos vários estágios do nascimento e os temas simbólicos concomitantes não estão baseados em alguma similaridade externa formal, mas sim no fato de que elas partilham os mesmos sentimentos emocionais e as mesmas sensações físicas.
4.1. Primeira Matriz Perinatal Básica (MPB I)
Ao experimentar os episódios de uma existência embriônica serena (MPB I), muitas vezes encontramos imagens de vastas regiões sem quaisquer fronteiras ou limites. Às vezes as identificamos com galáxias, espaço interestelar, ou o cosmos inteiro, outras vezes temos a sensação de estar flutuando no oceano ou de estarmos nos transformando em vários animais aquáticos tais como peixes, golfinhos ou baleias. A experiência uterina serena pode também abrir para visões da natureza – seguras, belas e incondicionalmente nutritivas, como um bom útero (a Mãe Natureza). Podemos ver pomares exuberantes, campos de milho maduro, terraços agrícolas nos Andes ou ilhas da Polinésia ainda não exploradas. A experiência do útero bom pode também dar acesso seletivo ao domínio arquetípico do inconsciente coletivo e mostrar imagens de paraísos ou céus como são descritos nas mitologias de culturas diferentes.
Quando estamos revivendo episódios de distúrbios uterinos, ou experiências de "útero mau" temos uma sensação de ameaça oculta e geral, e muitas vezes sentimos como se estivéssemos sendo envenenados. Podemos ver imagens que retratam águas poluídas ou depósitos de lixo tóxico. Isso reflete o fato de que muitos distúrbios pré-natais são causados por mudanças tóxicas no corpo da mãe grávida. A experiência do útero tóxico pode ser associada com visões de figuras demoníacas assustadoras do reino arquetípico do inconsciente coletivo. A revivência de interferências mais violentas durante a existência pré-natal, tais como um aborto natural iminente, ou uma tentativa de aborto provocado, é usualmente relacionada com uma sensação de ameaça universal ou com visões apocalípticas e sangrentas do fim do mundo.
4.2. Segunda Matriz Perinatal Básica (MPB lI)
Quando a regressão experiencial atinge a memória do começo do nascimento biológico, normalmente sentimos que estamos sendo tragados por um rodamoinho gigantesco ou engolidos por alguma fera mítica. Podemos também sentir como se o mundo inteiro, ou até mesmo o cosmos estivessem sendo tragados. Isso pode ser associado com imagens de monstros arquetípicos que agarram ou devoram, tais como leviatãs, dragões, cobras gigantescas, tarântuIas e polvos. A sensação esmagadora de risco de vida pode provocar ansiedade intensa e uma desconfiança de tudo que é quase como uma paranóia. Podemos também vivenciar uma queda nas profundezas do submundo, no reino da morte, ou no inferno. Como o mitólogo Joseph Campbell descreveu de forma tão eloqüente, esse é um tema universal nas mitologias da viagem do herói (Campbell, 1968).
Reviver o primeiro estágio do nascimento biológico em sua plena evolução, quando o útero está se contraindo, mas o cérvix ainda não está aberto (MPB II) é uma das piores experiências que um ser humano pode ter. Sentimo-nos presos em um pesadelo claustrofóbico monstruoso, sofremos dores físicas e emocionais extremas e temos uma sensação de impotência e desespero total. Nossos sentimentos de solidão, de culpa, do absurdo da vida e o desespero existencial podem atingir proporções metafísicas. Perdemos conexão com o tempo linear e ficamos certos de que essa situação nunca chegará ao fim e que não há absolutamente nenhuma saída. Não há dúvida em nossa mente que o que nos está ocorrendo é aquilo a que as religiões chamam de inferno – tormento físico e emocional insuportável sem qualquer esperança de redenção. Com efeito, isso pode ser ainda acompanhado por imagens arquetípicas de diabos e paisagens infernais de culturas diferentes.
Quando estamos enfrentando a situação de nenhuma saída e estamos nas garras das contrações uterinas, podemos nos conectar, experiencialmente, com seqüências do inconsciente coletivo que envolvem pessoas, animais e até seres mitológicos que estão em uma situação dolorosa e desesperada semelhante. Identificamo-nos com prisioneiros em masmorras, internos de campos de concentração ou de hospícios e com animais presos em armadilhas. Podemos vivenciar as torturas intoleráveis de pecadores no inferno ou de Sísifo rolando sua pedra gigantesca montanha acima, no mais profundo do Hades. Nossa dor pode transformar-se de Cristo perguntando a Deus por que Ele o havia abandonado. Parece-nos que estamos enfrentando a perspectiva de condenação eterna. Este estado de escuridão e desespero profundos conhecido na literatura espiritual como a Noite Escura da Alma. De uma perspectiva mais ampla, apesar dos sentimentos de total desespero que ele envolve, esse estado é um estágio importante de abertura espiritual. Se vivenciado em sua profundidade total, pode ter um efeito expurgador e liberalizante para aqueles que o vivenciam.
4.3. Terceira Matriz Perinatal Básica (MPB lll)
A experiência do segundo estágio do nascimento, a propulsão do canal do nascimento depois que o cérvix se abre e a cabeça desce (MPB III), é extraordinariamente rica e dinâmica. Enfrentando as energias conflitantes e as pressões hidráulicas envolvidas no parto, somos inundados com imagens do inconsciente coletivo representando seqüências de batalhas titânicas e cenas de violência e tortura sangrenta. É também nessa fase que nos defrontamos com impulsos sexuais e energias de natureza problemática e intensidade extraordinária.
Já descrevemos anteriormente que a excitação sexual é uma parte importante da experiência do nascimento. Isso coloca nosso primeiro encontro com a sexualidade em um contexto muito precário, em uma situação em que nossa vida está ameaçada, onde estamos sofrendo e infligindo dor e em que não podemos respirar. Ao mesmo tempo, estamos vivenciando uma combinação de ansiedade vital e fúria biológica primitiva, a última sendo uma reação compreensível por parte do feto a essa experiência dolorosa e ameaçadora de sua vida. Nos últimos estágios do nascimento, podemos também encontrar várias formas de material biológico – sangue, urina e até mesmo fezes.
Devido a essas conexões problemáticas, as experiências e imagens que encontramos nessa fase normalmente apresentam o sexo de uma maneira profundamente distorcida. A combinação estranha de excitação sexual com dor física, agressão, ansiedade vital e material biológico leva a seqüências que são pornográficas, aberrantes, sadomasoquistas, escatológicas ou até mesmo satânicas. Podemos ser dominados por cenas dramáticas de abuso sexual, perversões, estupros e assassinatos por motivos eróticos.
Ocasionalmente essas experiências podem adotar a forma de participação em rituais de que participam bruxas e satanistas. Isso parece estar relacionado com o fato de que a revivência desse estágio do nascimento envolve a mesma combinação estranha de emoções, sensações e elementos que caracterizam as cenas arquetípicas da Missa Negra e dos Sabás das Bruxas (Noite de Walpurgi). É uma mistura de excitação sexual, ansiedade aterrorizante, agressão, ameaça vital, dor, sacrifício e encontro com materiais biológicos normalmente repulsivos. Esse amálgama experiencial peculiar é associado com uma sensação do sagrado ou numinoso que reflete o fato de que tudo isso está se desenvolvendo em muita proximidade a uma abertura espiritual.
Esse estágio do processo do nascimento pode também ser associado com inúmeras imagens do inconsciente coletivo retratando cenas de agressão assassina, tais como batalhas cruéis, revoluções sangrentas, massacres ensangüentados e genocídio. Em todas as cenas violentas e sexuais que encontramos nesse estágio, alternamos entre o papel do perpetrador e o da vítima. Esse é o momento de um encontro importante com o lado escuro de nossa personalidade, a Sombra de Jung.
À medida que essa fase perinatal culmina e se aproxima do fim, muitas pessoas vêem Jesus, o Caminho da Cruz e a crucificação ou até mesmo vivenciam uma espécie de identificação total com o sofrimento de Jesus. A esfera arquetípica do inconsciente coletivo contribui para essa fase com figuras mitológicas heróicas e divindades representando a morte e o renascimento, tais como o deus egípcio Osíris, as divindades gregas Dionísio e Perséfone ou a deusa sumeriana Inana.
4.4. Quarta Matriz Perinatal (MPB IV)
A revivência do terceiro estágio do processo do nascimento, da verdadeira emergência no mundo (MPB IV) normalmente tem início com o tema fogo. É possível ter a sensação de que nosso corpo está sendo consumido e chamuscado pelo calor, temos visões de cidades e florestas pegando fogo, ou nos identificamos com vítimas de imolação. As versões arquetípicas desse fogo podem tomar a forma das chamas purificadoras do Purgatório ou do legendário pássaro Fênix, morrendo no calor de seu ninho queimado e emergindo das cinzas renascido e rejuvenescido. O fogo purificador parece destruir tudo o que seja corrupto em nós e preparar-nos para o renascimento espiritual. Quando estamos revivendo o momento mesmo do nascimento, o vivenciamos como a extinção total e o renascimento e a ressurreição subseqüentes.
Para entender por que sentimos a revivência do nascimento biológico como se fosse morte e renascimento, temos de compreender que o que ocorre conosco é muito mais do que meramente um replay do evento original do nascimento. Durante o parto, estamos totalmente presos no canal do nascimento e não temos meios de expressar as emoções e sensações extremas que estão em jogo. Assim, nossa memória desse evento permanece psicologicamente mal-digerida e mal assimilada. Grande parte de nossa autodefinição futura e de nossas atitudes com relação ao mundo são fortemente contaminadas pela lembrança constante e profunda da vulnerabilidade, inadequação e fragilidade que vivenciamos durante o nascimento. Em certo sentido nascemos anatomicamente, mas, emocionalmente, não nos damos realmente conta de que a emergência e o perigo já passaram.
O "morrer" e a agonia durante a luta para o renascimento reflete a verdadeira dor e ameaça à vida que ocorre no processo do nascimento biológico. No entanto, a morte do ego que imediatamente precede o renascimento é a morte de nossos antigos conceitos de quem somos e de como é o mundo, que são forjados pela marca traumática do nascimento. À medida que estamos expurgando esses programas antigos de nossa psique e de nosso corpo, deixando-os emergir na consciência, estamos diminuindo sua carga energética e restringindo sua influência destrutiva em nossa vida. De uma perspectiva mais ampla, esse processo tem, na verdade, a capacidade de curar e de transformar. E, no entanto, quando nos aproximamos de sua resolução final, podemos paradoxalmente sentir que, como as antigas impressões estão abandonando nosso sistema, estamos morrendo com elas. Às vezes, não só temos uma sensação de aniquilamento pessoal, mas também da destruição do mundo como o conhecemos.
Embora só um pequeno passo nos separe da experiência de libertação radical, temos uma sensação de ansiedade que tudo permeia e de uma iminente catástrofe de enormes proporções. A impressão de fim iminente pode ser muito convincente e arrebatadora. O sentimento predominante é que estamos perdendo tudo aquilo que conhecemos e que somos. Ao mesmo tempo, não temos nenhuma idéia do que pode estar do outro lado, ou mesmo se há qualquer coisa lá. É devido a esse medo que, nesse estágio, muitas pessoas, se podem, desesperadamente resistem ao processo. Em conseqüência dessa resistência, elas podem ficar psicologicamente presas nesse território problemático por um período indefinido de tempo.
O encontro com a morte do ego é um estágio da viagem espiritual em que provavelmente precisaremos de muito encorajamento e apoio psicológico. Quando conseguirmos vencer o medo metafísico associado com essa importante conjuntura e decidirmos deixar que as coisas aconteçam, vivenciamos extinção total em todos os níveis imagináveis. Isso inclui destruição física, desastre emocional, derrota intelectual e filosófica, fracasso moral final e até condenação espiritual. Durante essa experiência, teremos a sensação de que todos os pontos de referência, tudo que é importante e significativo em nossas vidas foi destruído impiedosamente.
Logo após a experiência de extinção total – "chegando ao fundo do poço cósmico" – seremos dominados por visões de uma luz que tem um brilho e beleza supernaturais e que normalmente é considerada sagrada. Essa epifania divina pode ser associada com a aparição de lindos arcos-íris, desenhos de penas de pavão diáfanas e visões de reinos celestiais com seres angélicos ou divindades surgindo na luz. Esse é também o momento quando podemos vivenciar um encontro profundo com a figura arquetípica da Grande Deusa Mãe ou com uma de suas muitas formas ligadas às várias culturas.
A experiência de morte e renascimento psicoespiritual é um passo importante na direção do enfraquecimento de nossa identificação com o corpo-ego, ou com o "ego-encapsulado na pele", como o chamou o escritor e filósofo anglo-americano Alan Watts, e da re-conexão com a esfera transcendental. Sentimo-nos redimidos, libertados e abençoados e temos uma nova percepção de nossa natureza divina e status cósmico. Normalmente também sentimos uma forte onda de emoções positivas com relação a nós mesmos, às outras pessoas, à natureza, a Deus e à existência em geral. Ficamos cheios de otimismo e temos uma sensação de bem-estar emocional e físico.
É importante enfatizar, também, que esse tipo de experiência de cura e de mudança de vida ocorre quando os estágios finais do nascimento biológico tiveram uma evolução mais ou menos natural. Se o parto foi muito debilitante ou tornou-se confuso devido a uma anestesia muito forte, a experiência do renascimento não tem a qualidade de emergência triunfal na luz. Será mais semelhante a um despertar, ou como a recuperação de uma ressaca com tonteira, náusea e uma consciência confusa. Nesse caso, é provável que muito esforço psicológico seja necessário para trabalhar essas questões adicionais e os resultados positivos serão muito menos surpreendentes.
A esfera perinatal da psique representa uma encruzilhada experiencial de importância crucial. Ele é não só o ponto de encontro de três aspectos absolutamente essenciais da existência biológica humana – o nascimento, o sexo e a morte – mas também a linha divisória entre vida e morte, o indivíduo e a espécie e a psique humana individual e o espírito universal. A plena experiência consciente do conteúdo desse domínio da psique com uma boa integração subseqüente podem ter conseqüências de longo alcance e conduzir a uma abertura espiritual e a uma profunda transformação pessoal.