Em nosso primeiro artigo tentamos explicitar o campo de atuação da Neuropsicologia, bem como qual o papel do Neuropsicólogo, quais seus pontos fortes e sua maneira particular de comunicação com outras áreas do conhecimento. Nosso objetivo neste novo trabalho é poder pensar sobre as bases históricas e a evolução da Neuropsicologia através do tempo e das diversas civilizações, culminando assim na Neuropsicologia que discutimos na coluna anterior.
A história do surgimento da medicina está inteiramente relacionada com o surgimento das primeiras grandes civilizações da humanidade. O primeiro grande tratado médico escrito pelo homem foi encontrado no Egito, e data do século 17 a.C, mas contém referencias à textos escritos até 3000 a.C. O papiro, que foi chamado de “O papiro cirúrgico de Edwin Smith”, foi adquirido por Edwin Smith, em 1862, na cidade de Luxor, continha as mais antigas descrições anatômicas, fisiológicas e patológicas das mais diversas doenças, incluindo oito estudos de danos cerebrais fazendo correlação entre funções cerebrais e suas localizações. Foi o primeiro registro em que palavras como “cérebro”, “meninges” e “liquido cefaloraquidiano”, apareceram.
O papiro contém o relato de 48 casos de observação, incluindo casos de traumatismos cranianos e de pescoço. Segundo Walsh (1994), apenas em 1930 que o papiro foi traduzido e comentado, abrindo assim um caminho em direção à “corticalização” das funções com a descrição dos danos cerebrais. De todos os casos descritos, os oito primeiros são especificamente relacionados, a lesões na cabeça e no cérebro, dos quais a maioria é de pessoas civis que foram feridos em quedas (talvez durante a construção de monumentos e prédios) ou vítimas de batalhas, já que muitos dos ferimentos parecem ter sido causados por porretes, punhais e lanças, este fato sustenta o que poderia ser o primeiro relato de contribuições de estudos de ferimentos de guerra para o entendimento das relações cérebro-comportamento, uma fonte investigação que tem sido de enorme importância para a ciência atual.
Em cada caso algo importante foi visto e entendido. Por Exemplo: Caso 2 – Traumatismo Craniano com perfuração craniana.Caso 4 – Convulsão por toque no cérebro exposto.Caso 6 – Descrição das meninges e do liquido cérebro-espinhal.Caso 8 – Descrição de uma lesão e da conseqüente mudança de caminhar (hemiparesia) e do olhar.Caso 12 – Descrição de uma lesão Temporal.
Entretanto Walsh (1994) ressalta que diversos erros, enganos e má interpretação ainda estavam presentes e podem ser claramente observáveis no papiro, como por exemplo a observação de que as lesões e as seqüelas ocorriam no mesmo lado, ou seja uma lesão no lado direito do cérebro, geraria uma hemiparesia do próprio lado direito do corpo, fato esse que se sabe não ser correto por conta do efeito contralateral.
Outro papiro Egípcio importante é o de Ebers, que relata casos que envolvem a causa orgânica do esquecimento, depressão e outras condições clínicas importantes. A prática Cirúrgica e as Civilizações Sul-Americanas. A história do cérebro e dos comportamentos, sempre esteve intimamente relacionada com praticas de abertura cirúrgica do cérebro e procedimentos neurocirúrgicos de craniotomia. Essa cirurgia, extremamente difícil, tem sido feita desde o período paleolítico até os dias atuais. Importante notar que nem todas craniotomias foram feitas por problemas de traumatismo cranianos, e que evidências de cérebros que passaram por trepanação (Procedimento médico muito realizado, com o objetivo de eliminar os maus espíritos e demônios do paciente, mas sem nenhum significado terapêutico prático) foram descobertos por toda a Europa, África, América do Sul, América do Norte e ilhas do Pacífico.
Os instrumentos mais antigos encontrados, para tais cirurgias eram compostos de pedras, mas com o advento de novas tecnologias começam a serem empregados instrumentos feitos de ferro e bronze. Segundo Walsh (1994), o uso desses instrumentos pelos Paracas (3000 a.C.) e pelos Incas (até 1600 d.C.), ambas civilizações da América do Sul, foram relatados as centenas pelos arqueólogos, que relatam os mais diversos exemplos de formas de instrumentos, de locais de cirurgias no crânio e de tipos de cortes no cérebro. Mesmo essa sendo uma das mais difíceis cirurgias e mesmo existindo o enorme risco de morte pelas rudimentares técnicas empregadas, muitos pacientes sobreviviam e voltavam a viver em comunidade, fato esse atestado pelos crânios encontrados em sítios arqueológicos, muitos dos quais continham regeneração óssea em volta da área da cirurgia, atestando assim uma sobrevida do sujeito.
A Grécia Clássica.
Hipócrates foi o escritor mais citado desta época, e mesmo com a pouca quantidade de escritas citando cérebro (fato esse relacionado à aversão Grega com a dissecação de cadáveres), pode através do estudo de crânios e cérebro de animais, concluir que a alma, ou as funções mentais estava localizada no crânio, demonstrando assim uma grande capacidade de observação dos pacientes. Em seu famoso livro, Sobre a doença sagrada, existe o mais antigo relato sobre a epilepsia, doença essa que ele não considerava mais sagrada do que qualquer outra doença, tendo sua causa natural como qualquer outra enfermidade.
"It is thus with regard to the disease called Sacred [epilepsy]: it appears to me to be nowise more divine nor more sacred than other diseases, but has a natural cause from the originates like other affections. Men regard its nature and cause as divine from ignorance and wonder…"
—On the Sacred Disease
Outros artigos de Hipócrates observam que lesões em um hemisfério provocavam espasmos. Hipócrates ainda advertiu sobre uma possível cegueira quanto à questão de danos na área temporal do crânio, causar uma paralisação no lado contralateral, fato esse que difere da forma de pensar dos Egípcios, e que hoje foi comprovado como a forma correta de seqüela de determinadas lesões. Idade média e a Doutrina Celular No século 4 d.C., os padres Nemesius e Santo Augustinho desenvolveram a doutrina celular das funções cerebrais.
Essa doutrina apregoava que os processos mentais, ou as faculdades da mente estavam localizadas em câmaras ventriculares no cérebro, feitas de células; os ventrículos laterais formando as 1 células, o 3 ventrículo formando a 2 célula, enquanto o quarto ventrículo formava a 3 célula. Cada ventrículo tinha sua própria especificação com relação a sua função: Primeiro ventrículo = Fantasia e Imaginação.Segundo ventrículo = Cognição e Estimação.Terceiro ventrículo = Memória. Essa doutrina que perdurou por mais 1000 anos, teve sua base nas idéias de Aristóteles e Galeno. Para Aristóteles as atividades mentais eram divididas em um grande número de faculdades de pensamento e julgamento, e na doutrina celular essas faculdades eram alocadas nos ventrículos. Já Galeno contribui com sua teoria do gás psíquico (Psico Pneuma), na qual o líquido presente nos ventrículos pulsava pelo cérebro em direção ao corpo, alimentando e levando o corpo a se comportar, sendo importante para as funções do corpo e do cérebro.
A Renascença Vesalius e seu De Humani Corporis Fabrica Com os estudos de Vesalius no séc. XVI, veio à era das observações mais rigorosas e cientificas, superando assim as imposições dogmáticas da época de Galeno. Em 1543 foi publica sua obra prima, De humani corporis fabrica e sua volume anexo Epítome, ambos os trabalhos foram considerados o corpo do espírito da Renascença e muitos consideram o fator mais importante para o estabelecimento da moderna era de pesquisa e observação. Vesalius foi um grande pupilo de Sylvius, que era conhecido como o maior seguidor de Galeno. Apesar de toda admiração pela teoria de Galeno, Vesalius não seguia de forma cega à teoria de Galeno, e sim observava, testava e pesquisa a fim de comprovar os postulados. Esse espírito crítico e científico foi o grande mérito de Vesalius, através do uso do método observacional ele colocava em prova para saber onde as observações variavam em relação ao dogma aceito.
Entretanto, os avanços da anatomia feitos por Vesalius em seus tratados, não eram concorrentes com os avanços em conhecimento das funções cerebrais e essa discrepância entre anatomia e fisiologia continuaria até o próximo século.
Bibliografia
Walsh, K. (1994). Neuropsychology: A clinical approach. (3rd.ed.) London, U.K: Churchill Livingstone.
Hipocrates.(2003). Aforismos. São Paulo: Martin Claret.