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Esotérico versus Exotérico

I. CARACTERIZAÇÃO

Ambas as palavras remontam a seus correspondentes gregos esoterikós, termo tardio, e exoterikós, mais primitivo. Esoterikós é um adjetivo formado sobre um tema em grau comparativo que significa literalmente "mais para dentro" ou "interior", do mesmo modo que exoterikós quer dizer "mais para fora" ou "exterior". Esoterismo é o substantivo do adjetivo esotérico (latim esotericus), vocábulo registrado no Thesaurus linguae latinae. Seu antônimo exotericus pode ser lido nos escritos de Cícero e Áulio Gélio com o significado de "feito para o público."

Clemente de Alexandria diz que Aristóteles escreveu obras acusmáticas, ou para serem ouvidas, e exotéricas, para o público em geral, e às primeiras designa esotéricas. A mesma notícia, com maiores detalhes e precisão vem de Plutarco na Vida de Alexandre, acrescentando que esotérico encerrava ensinamento secreto.

Também entre os pitagóricos se deu a distinção entre acusmáticos (ouvintes alucinados) e matemáticos (os consagrados ao estudo dos grandes saberes com possível volta para o cosmos: aritmética, geometria, harmonia e astronomia).

A primeira observação que faço é a de que entre o par de vocábulos esotérico-exotérico não há uma oposição irredutível, mas relativa, e, portanto, uma distinção que admite e pede complementaridade. Existe entre eles a relação correlativa de semelhança e dependência que subsiste entre a profundidade e a superfície, o oculto e o manifesto, o núcleo e o córtex, o interior e o exterior de uma mesma realidade ou objeto.

O cristianismo primitivo tampouco ficou alheio a esta diferenciação se levarmos em conta testemunhos preservados, que separam aos de dentro e aos de fora. O círculo dos discípulos íntimos e o dos demais. Lembre-se o Evangelho de Marcos 4:34 – "[ao público] Não lhes falava sem parábolas; mas a seus próprios discípulos lhes explicava tudo em particular", texto que é a síntese contundente do escrito pouco antes: "Quando ficou a sós com os doze, Lhe perguntaram sobre as parábolas. Ele lhes disse: A vós dei o mistério (mystérion) do Reino de Deus, mas aos que estão fora tudo lhes apresento em parábolas, para que por muito que olhem não vejam, por muito que ouçam não entendam, para que se convertam e se lhes perdoe" (4:10-12). A passagem do Evangelho de Mateus 11:27 – "[…] e a quem o filho o queira revelar", confirma o mesmo sentido, assim como as epístolas de Paulo que falam de "uma sabedoria entre os iniciados" (I Cor 2:6).

Esta separação aludida entre um ensinamento mais interno e outro mais externo em uma mesma corrente religiosa é também comum aos rabinos da época. Eles afirmam que os conteúdos dos temas relativos à criação do mundo segundo os descreve o Gênese e a seção do livro de Ezequiel, que relata a visão do trono móvel de Deus e suas criaturas viventes está proibido que se fale em detalhes, inclusive em presença de dois ou de um testemunho, respectivamente, se estas pessoas carecem de suficiente capacidade e maturidade espiritual para compreender. Os membros da comunidade essênia do Mar Morto deixaram provas de hábitos similares e conservaram escritos como o Livro dos Jubileus que é uma interpretação esotérica da história do Antigo Testamento, diversa da exegese oficial.

As "estranhas parábolas e ensinamentos" que Eusébio de Cesárea admite com desaprovação que Papías (século lI) tinha colecionado e fazia uso delas citando-as e a distinção posterior de Clemente de Alexandria entre o cristão comum e o "cristão gnóstico" são variações da mesma idéia. Para Clemente o ideal da perfeição cristã está representado pelo gnóstico, que é o crente que consegue viver à semelhança de Deus, deixando-se influir e transformar peIo conhecimento (gnósis) que provém da fé, das Escrituras e "da tradição não escrita transmitida desde os Apóstolos a um pequeno número". Esta concepção peculiar sobre um nível de crentes esotéricos da reIigião cristã difere do conceito rigoroso do esoterismo em relação estreita com a iniciação. Vincula-se, o mesmo que a fraseologia paulina, com a tradição salvadora apostólica, por este motivo precisamente Clemente de Alexandria denomina o cristão perfeito "verdadeiro gnóstico", opondo-lhe, e em reação e confrontação com outro modeIo de "gnóstico", o possuidor do conhecimento, que gozava do respeito, êxito e consideração no meio cristão no qual se desenvolvia. Clemente trata de adaptar e aclimatar dentro da grande Igreja Alexandrina paradigmas religiosos que encerravam prestígio para o meio, por essa razão o cristão ideal não é designado com os epítetos de sábio, espiritual, doutor ou mestre, próprios da cultura da época, mas como gnóstico.

lI. ESOTERISMO E INICIAÇÃO

O distanciamento das grandes religiões abrahâmicas e de suas crenças, as mais influentes nos hábitos de pensamento ocidental, permite entrar em contato com um aspecto mais preciso do esoterismo, para assim podê-Io entender com imparcialidade.

Na Índia as mais antigas Upanishades (upa-ni-SAD: "sentar-se junto ao mestre em posição inferior [para ser instruído]"), se referem a si mesmas como a sabedoria profunda ou oculta. Upanishad se opõe a parishad e a sampad (centro público), pois seu ensinamento exclui a participação alheia, porque se trata de uma doutrina privada, não apta para todos, devido à sua profundidade e à necessária regularidade de sua transmissão. Anteriormente a ela, os Brâmanes, aludem a uma doutrina secreta. Este procedimento é conservado na atualidade e se põe de manifesto quando a palavra Vedânta (veda + ânta: fim do Veda) se caracteriza como siddhânta, raddhânta (conclusão) etc., posto que se trata da transmissão do saber por excelência (vidyâ, raiz vid: saber), que remonta aos Vedas e persegue a conquista da Identidade Suprema, Auto-realização ou Conhecimento Final (moksha, jñâna).

A literatura helenística conhecida na época como Escritos de Hermes Trismegistos, que encerram parte das tradições reservadas do sacerdócio egípcio, se apóiam na mesma concepção esotérica. Outros livros da recopilação do Corpus Hermeticum reali­zada na época bizantina são similares, e particular­mente o Discurso sobre a Enéada e a Ogdóada (NHC VI, 6), um tratado hermético mais antigo que a aludida recopilação, desco­berto em fins de 1945 no Alto Egito.

Na antiga Grécia, manifesta-se idêntico fenôme­no. Não só Platão adverte que seus Diálogos não se devem interpre­tar como uma trivialização de caráter individual dos mistérios (Fedro, Cartas VII e lI), mas que o neoplatonismo posterior a Plotino (séc. III), Jâmblico, Nestório, Plutarco de Atenas, Prodo, Olimpiodoro e outros reconhecem a exigência de integrar a filosofia com a iniciação teúrgica. Deste modo a filosofia é novamente compreendida, "mais pitagoricamente", como um "modo de vida", como foi para os órficos e pitagóricos. As doutrinas órficas e caldaicas, portanto, ocupam o primeiro plano, e a teurgia (theou­érgon), a atividade divina, o deixar operar a vontade e conhecimento dos deuses como o cumprimento das ações sagradas pelos teurgos, coroa a tarefa intelectual e inteligível.

Heráclito disse que "A natureza gosta de ocultar-­se". O princípio da vida e dos seres mutantes à physis, se conserva escondido, como em planos mais potentes o aión e a moira krataié, entre as pregas dos fenômenos que provoca. Os mis­térios cumprem a mesma finalidade em toda sua extensão: "Imitam a natureza do divino, que foge da percepção direta". Em reali­dade permite ao iniciado experimentar o segredo que se oculta nas formas e mudanças do cosmos. Sob o véu das celebrações do mistério (ações, utensílios, mitos e discursos sagrados), o que mais salta à vista é a vida inesgotável da natureza e sua circulação universal. Os mistérios de Elêusis com o mito de Deméter e de Perséfone, Dionísio e os rituais em relação com a culinária, o vinho, a embriaguez e o êxtase, as lendas sobre a Grande Mãe, assim como as de Ísis e Osíris, vinculadas à geração sem fim; a história de Mitra inseparável das grutas e do domínio do touro, entram em contato com esta fonte de fecun­didade sem fim, mas o sentido final da ascensão só se alcança pelo  aprofundamento da experiência. Este é o motivo principal da proibição de difundir o segredo iniciático, que com sua divulgação corre o risco de prostituir-se.

É necessário cumprir com as exigências dos diferentes graus para alcançar a perfeição buscada. Os passos su­cessivos constituem as diferentes etapas da iniciação. A iniciação é um fenômeno sacro universal que está presente em todas as comunidades, desde os povos etnológicos até as sociedades des­sacralizadas atuais com seus clubes, seus círculos reservados e seus agru­pamentos de caráter exclusivo. Os cultos dos mistérios antigos a que se fez alusão eram instituições iniciáticas que cresceram em torno às cerimônias de iniciação.

Iniciado é o agente que cumpre a iniciação em lugar apropriado participando da cerimônia afim ao grau. A iniciação, portanto, é basicamente um ritual ou conjunto de cerimônias de culto, de ações relativas aos deuses, pelo que se ingressa em um grupo cultual pela transformação espiritual da própria natureza e progride nesta mudança uma vez que partici­pa ativamente nos ritos do grupo. A iniciação, deste modo, envolve os três significados que encerram o termo "começo" (ini­tium): a) ingresso em uma ordem de realidade diferente ou começo de uma transformação ou nova etapa (trânsito do profano ao sagrado); b) partida para um itinerário espiritual progressivo; c) transposição, regeneração ou metamorfose espiritual que é corres­pondente ou paralela aos níveis visíveis e invisíveis do cosmos.

Os ritos iniciáticos incluem agentes e meios. As ações e práticas, pautadas e observantes da coordenação e sincronia dos movimentos, os objetos ou imagens (symbolo), reflexos da totalidade da ordem cósmica, e as pala­vras, cantos, fórmulas cantadas, relatos e discursos, conservadores do ritmo e das for­mas divinas. Todos eles possuem a nota em comum do caráter simbólico, ou seja, possuem por natureza um duplo nível de significação cuja gradual descoberta permite a regeneração, tratando-se dos meios visíveis transmitidos pela tradição. Os agentes formam a comunidade ou associação de irmãos e incluem o sacerdócio hierarquizado (sacer­dotisas e hierofantes) e aos que se iniciam. Ao iniciante se exige qualificação e preparação para poder receber apropriada­mente bens que são entregues regularmente (tradição), através de uma cadeia que se prolonga sem interrupções (sucessão) e em um meio iniciático que é o respaldo último dos outros dois (comu­nidade). Isto explica a existência no caso de Elêusis, por exemplo, de pequenos mistérios (15 de fevereiro a 15 de março) e de grandes mistérios (15 de setembro a 15 de outubro). Somente sob tais condições de separação do profano é possível o ingresso no âmbito sacro para experimentar os sucessivos momentos dos rituais e ao mesmo tempo manter sua conservação que persiste com a continuidade do cosmos e das estações ou períodos gerado­res, já que os cultos mistéricos não são um fenômeno exclusivamente helenístico, senão da época arcaica. Sabe-se que as famílias das Eumólpides e Kerikés, das mais antigas de Atenas, formavam o sacerdócio de Elêusis; os mistérios de Dionísio remontam a um longínquo passado grego, e os de Ísis de origem egípcia, os de Mitra de ascendência iraniana e os da Grande Mãe ou Cibeles, vindos desde Anatólia, são todos muito antigos, encontrando-se indícios em algum caso na Idade do Bronze. Representam opções dentro de um mesmo gênero, por isso não é de se surpreender a iniciação em diferentes mistérios, como se confirma com o personagem Lúcio em O asno de ouro de Apuleio. Por esta causa diz Aristófanes em As rãs: "Foram chamados mistérios pelo fato de que os ouvintes deviam fechar a boca e não contar nada a ninguém." Os mistérios, como todo o místico, não se devem revelar, porque intrinsecamente não se podem dizer, são indescritíveis. Deste modo os relatos que se possuem sobre alguns mistérios antigos, ainda que descrevam alguns fatos do que se realizava no interior dos santuários, nada expressam internamente de correto para o leitor pro­fano, pois faltando-lhe preparo para interpretar uma experiência, que se realizava em segredo, facilmente confundia uma experiência objetiva e vívida com uma experiência subjetiva individual. A exte­riorização e difusão inapropriadas destas circunstâncias só po­dem convidar à sua adulteração ou interpretação incorreta.

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