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O Psicopata sob o prisma da Psicologia Evolucionista

Resumo

O principal objetivo do presente artigo é discutir a abordagem evolucionista da Psicopatia, ou Transtorno de Perso­nalidade Anti-Social (TPAS). São abordados os prin­cipais argumentos desenvolvidos no âmbito da Psi­cologia Evolucionista que tentam evidenciar o caráter adaptativo deste transtorno num ambiente primitivo de interação social. Ao longo do artigo, são enfoca­dos os principais pressupostos vinculados ao para­digma evolucionista e suas implicações na compre­ensão filogenética de um dos transtornos que mais amplamente demanda análises e investigação na es­fera da Psicoclínica. São também discutidas algumas adequações e inadequações do citado modelo e seu valor explanatório para a compreensão da atual pre­valência da Psicopatia.

Observação

Quando se usa somente o termo psicopata, corresponde, na Classificação de Kurt  Schneider, ao psicopata sem sentimento, ou frio de ânimo, que não elabora uma Escala de Valores – éticos, estéticos, lógicos e religiosos -. O psicopata também é chamado de Personalidade Psicopática (PP), de [Transtorno de] Personalidade Anti-Social, de Sociopata, de Moral Insanity. Não confundir com a Pseudo-Personalidade Psicopática (PPP), que corresponde ao Encefalopata lato sensu que, em geral, nas neuroimagens apresentam graves lesões encefálicas, além de distúrbios de conduta, agressividade, elementos da constelação epiléptica, estigmas degenerativos de encefalopatia descritos por Carl Schneider, alteração de inteligência: a inteligência seletiva. A inteligência do  verdadeiro psicopata não apresenta nenhuma alteração detectável.


Introdução

O estudo do psicopata tem, conforme salienta Salekin1, sido objeto de um grande número de considerações teóricas e empíricas desde que Phillippe Pinel introduziu o termo há aproxima­damente duzentos anos. Nas últimas décadas, entretanto, um considerável número de pesqui­sas vem contemplando suas variáveis fisiológi­cas, cognitivas, além de uma possível base genética para a sua ocorrência. Achados re­centes têm possibilitado o surgimento de novas concepções etiológicas relacionadas à mani­festação do transtorno, bem como alguns en­tendimentos sobre a sua filogênese.

De um modo bastante específico, este arti­go contempla a compreensão filogenética do psicopata. Parte de uma revisão sistemática de uma série de artigos indexados no PsycINFO, publicados entre 1984 e 2006 sobre tal temáti­ca, bem como de algumas obras já traduzidas para a Língua Portuguesa. Procura, de forma sintética, elucidar alguns aspectos essenciais que caracterizam esse novo paradigma científi­co no campo das investigações psicológicas, explicitando o modo como tais aspectos estão sendo relacionados com diferentes pesquisas voltadas para a psicopatia. Também faz parte do objetivo do presente artigo tecer comentários sobre o valor explanatório desse modelo que, por sua vez, vem alcançando uma progressiva repercussão diante dos diferentes estudos que contemplam o transtorno analisado.

Com base em outros estudos sobre a psicopatia, o artigo procura problematizar os princi­pais pontos enfatizados pela Psicologia Evolu­cionista a respeito dos aspectos filogenéticos relativos à manifestação do próprio transtorno. Uma abordagem desse tipo pode contribuir para o avanço das pesquisas sobre a psicopatia, que têm evidenciado, cada vez mais, a necessidade de uma convergência de análises para melhor ex­plicar os aspectos etiológicos e clínicos do mes­mo


Principais características do Psicopata

De acordo com o DSM-IV-TR2, a caracte­rística essencial do psicopata é um padrão invasivo de desrespeito e violação dos direitos alheios, que inicia na infância ou começo da adolescên­cia e continua na idade adulta. O referido ma­nual explicita também o fato de que o diagnósti­co para esse transtorno deve levar em consideração a existência de pelo menos três critérios que, de forma sintética, podem ser descritos como um fracasso em conformar-se às normas legais, uma propensão para enga­nar, impulsividade, agressividade, desrespeito pela segurança própria ou alheia, irresponsabi­lidade que pode estar vinculada ao trabalho ou às finanças, bem como uma ausência de remor­so.

De um modo geral, percebe-se que o trans­torno está diretamente vinculado aos padrões comumente aceitos na sociedade em que vive­mos, sendo que é justamente a manifestação de comportamentos, que está em desacordo com esses padrões, que perfaz o tipo de semiologia, que o caracteriza. Uma sintomatolo­gia que pode também ser compreendida pelo fato de vincular-se a uma ausência de ansieda­de e depressão, que costuma estar presente nos demais indivíduos quando do cometimento de atitudes anti-sociais.

A prevalência do psicopata é baixa na popula­ção geral, sendo que as pesquisas apontam uma incidência de 3% em homens e 1 % em mulheres. No que se refere ao seu prognóstico, alguns estudos ressaltam o fato de que o auge do comportamento anti-social costuma ocorrer no final da adolescência e os sintomas mos­tram-se propensos a diminuir com o decorrer da idade3.

Embora uma meta-análise realizada por Salekin1 ressalte o fato de que há consideráveis possibilidades de que se consolidem tratamen­tos eficazes no tocante à manifestação dos sin­tomas, inúmeros autores4,5 concordam com o fato de que os indivíduos portadores do trans­torno são, em geral, pouco responsivos aos diferentes tipos de tratamentos.

Pressupostos essenciasis da psicologia evolucionista

Conforme ressalta Pinker6, a Psicologia Evolucionista reúne duas revoluções científi­cas, a revolução cognitiva das décadas de 50 e 60 e a Biologia Evolucionista das décadas de 60 e 70. Em termos gerais, esse novo paradigma propõe-se a rever alguns achados da Sociobio­logia, bem como postular sobre os diferentes mecanismos psíquicos que podem ser entendi­dos como resultantes das pressões ambientais encontradas pelos nossos ancestrais num am­biente primitivo. Nesses termos, uma determi­nada tendência psíquica pode muito bem ser explicada com base na sofisticação de algorit­mos que operam dentro de um caráter modular em nosso cérebro, sendo que a sua existência estaria vinculada a um tipo específico de de­manda ambiental7-9. Em outras palavras, a men­te humana seria um design complexo e seus padrões funcionais são, em última análise, res­postas selecionadas pela evolução.

Dentro dessa perspectiva, não somente as emoções humanas são respostas adaptativas, mas também as próprias faculdades cognitivas que perfazem o nosso pensar estariam atrela­das a uma diversidade de mecanismos que foram sendo selecionados ao longo da nossa história10,11. "Ressalta-se ainda, o fato de que para a Psicologia Evolucionista, as adaptações estão essencialmente atreladas a mecanismos de propagação genética, ou seja, vinculam-se sempre à manutenção do próprio código que viabiliza a vida. Nesse sentido, as diferentes tendências psíquicas são, em última instância, explicadas em termos das vantagens e desvan­tagens no que diz respeito àquilo que, a grosso modo, poderia ser entendido como uma espé­cie de 'interesse genético' "12. Conforme ressalta Wright13 servindo-se das palavras de Tooby e Cosmides, somos "executores de adaptações e não maximizadores de aptidões". Em outras palavras, o psiquismo seria tão somente o re­sultado de mudanças fortuitas protagonizadas por um "bioprograma" cujo objetivo maior é a propagação genética.

Um entendimento desse tipo apregoa, por­tanto, que um mecanismo psíquico torna-se manifesto quando se mostra bem sucedido em termos seletivos. Desse modo, uma das áreas que vem ganhando respaldo no campo da Psi­cologia Evolucionista é a chamada Psicopato­logia Evolucionista14, que estuda o modo pelo qual determinados mecanismos tornaram-se disfuncionais na sociedade em que vivemos e considera também o fato de que esses mesmos mecanismos possam ter cumprido um papel verdadeiramente adaptativo num outro contex­to.

Um bom exemplo disso é verificável no caso das fobias específicas. Embora também ocor­ram fobias relacionadas a situações e objetos de baixo potencial ofensivo para a espécie hu­mana, a ocorrência de fobias relacionadas a insetos, fenômenos da natureza e animais é, conforme salientam Siegert & Ward15, conside­ravelmente maior. Dito de outro modo, essa elevada prevalência corresponderia a uma fun­ção adaptativa da espécie, ainda que, num grau exacerbado, possa constituir-se numa patolo­gia específica. De um modo geral, a Psicologia Evolucionista abarca questões desse tipo e pro­põe-se a investigar o psiquismo humano por intermédio de considerações sobre os diferen­tes mecanismos que podem ser entendidos como respostas selecionadas4. Salienta-se ain­da o fato de que compreensões como essa vêm sendo direcionadas para a psicopatia.

Concepções evolucionistas sobre o psicopata

Existem hoje boas evidências de que a psicopatia esteja associada a uma série de regula­dores biológicos. Estudos desenvolvidos por Stalenheim & cols.16 encontraram uma correlação significativa entre psicopatia e um ele­vado nível de testosterona nestes indivíduos. Algumas pesquisas investigando a ação da monoaminaoxidase (MAO) têm demonstrado a possibilidade que esta possa servir como um marcador biológico para uma série de traços anti-sociais da perso­nalidade17,18. Ainda que, conforme Stalenheim seja necessário um maior número de investigações envolvendo a relação desta subs­tância com a psicopatia propriamente dito, seria possível pensar na sua ação, em termos de um fator combinado no que diz respeito à própria etiologia do transtorno. De um outro modo, um número significativo de pesquisas tem explici­tado um funcionamento alterado em certas estruturas centrais que estariam diretamente en­volvidas na manifestação da psicopatia. Estas regiões incluem o córtex órbito-frontaI19, o cór­tex pré-frontaI20, as diferentes estruturas do sistema límbico21-23. Dentro dessa perspectiva, se­ria possível considerar que algumas regularidades orgânicas observadas nos casos de manifestação da psicopatia podem estar também atreladas a fatores genéticos, conforme indi­cam as pesquisas feitas por Cadoret & cols.24 e as asserções de McGuire & cols.25 De um amplo modo, evidências desse tipo mostram-se su­gestivas no tocante a uma hipótese biológica para a etiologia da psicopatia. Uma hipótese que, por seu turno, pode ir ao encontro do próprio paradigma evolucionista.

Isso equivale a dizer, que um entendimento baseado na Psicologia Evolucionista sobre a psicopatia sustenta-se, antes de tudo, na idéia de que deve existir uma transmissibilidade genéti­ca para certos mecanismos que caracterizam o transtorno. De um outro modo, a concepção evolu­cionista procura elucidar não apenas o substrato biológico para a sua ocorrência, mas também os pressupostos adaptativos que justi­ficariam a sua manifestação em termos filoge­néticos. Dito de outra forma, alguns autores26-29 têm sustentado a idéia de que o próprio padrão invasivo de desrespeito e violação aos direitos alheios, que a caracteriza, estaria atrelado a uma série de funções adaptativas, ainda que tais funções possam, em termos de seleção natural, mostrar-se dependentes da freqüên­cia com que se manifestam29.

A seleção dependente de freqüência é per­feitamente verificável em ambientes sociais bem menos sofisticados do que aqueles em que os nossos ancestrais realizavam suas pri­meiras interações. Ela ocorre, por exemplo, no caso dos peixes lepômis em que, por sua vez, também há certa prevalência de lepômis "anti-sociais". Nesse sentido, conforme explici­ta Wright13, existem peixes lepômis que espa­lham uma enorme quantidade de ovos para serem fertilizados e mostram-se perfeitamente responsáveis no que tange aos cuidados dirigi­dos à própria fertilização. De um outro modo, os lepômis "anti-sociais" apenas fazem uso da dedicação alheia, deixando seus próprios ovos para serem fertilizados pelos peixes mais colaborativos e menos atentos às manobras dos outros peixes.

Numa organização social bastante simples como essa, a seleção dependen­te de freqüência é perfeitamente verificável, uma vez que um considerável aumento na pro­porção de lepômis "anti-sociais" corresponde­ria a um abalo na própria organização geradora e mantenedora desses peixes. De outro modo, entendimentos como esse mostram-se condi­zentes com a própria taxa de prevalência da psicopatia na sociedade atual que, conforme salien­tado, é baixa.

A questão do papel adaptativo que os sin­tomas anti-sociais poderiam desempenhar es­taria vinculada à própria função que o compor­tamento altruísta desempenha em termos de interação social. Numa concepção evolucionis­ta, o altruísmo emergiu em larga escala na es­pécie humana diante do fato de que nossos ancestrais teriam protagonizado um jogo social com soma diferente de zero13,30. Ou seja, no âmbito da Psicologia Evolucionista, a chamada Teoria dos Jogos preconiza que as atitudes pró-­sociais, embora impliquem custos individuais, mostraram-se adaptativas na medida em que a inserção social fez-se necessária para a sobre­vivência individual, gerando, dessa forma, um ambiente onde a doação virou também sinôni­mo de recebimento.

No que se refere às trocas sociais, o comportamento altruísta acabou, portanto, sendo favorecido pela lógica evolucionis­ta e emergindo em estrutura cerebral que se tornou apta a levar em conta os custos e bene­fícios do seu emprego. Ceder algo em termos materiais, ou engajar-se em ações objetivando o benefício alheio, tornou-se, de acordo com esse entendimento, o mesmo que gerar uma possibilidade de ganhos futuros num jogo so­cial em que a soma é sempre diferente de zero. Em função de uma dinâmica social desse tipo, foram então fomentados dispositivos neurocog­nitivos capazes de engendrar o comportamento altruísta fundamentado, por sua vez, na capaci­dade de compreender e solidarizar-se com o outro. Tomando como base as palavras de Wright13, o altruísmo seria, portanto, também um tipo de adaptação que executamos­

Por outro lado, os indivíduos portadores de psicopatia não se mostram responsivos aos senti­mentos alheios e tendem a não se engajar em atitudes pró-sociais. De uma forma ou de outra, tais indivíduos demonstram, em termos men­tais, não estarem aptos a contabilizar as vanta­gens do comportamento altruísta, apresentan­do assim uma sintomatologia que se mostra mais atrelada a um imediatismo e a uma dificul­dade em retardar a recompensa. Também de acordo com um entendimento evolucionista so­bre a manifestação da psicopatia, esse conjunto de sintomas não chega a constituir-se numa dis­função em termos adaptativos.

Ou seja, levan­do em consideração a idéia de uma "seleção dependente de freqüência", alguns autores en­fatizam que a evolução permitiu que pudesse ocorrer a transmissão de genes capazes de gerar "designs biológicos" propensos a não exe­cutar uma dose razoável de comportamentos altruístas. Nesse sentido, o psicopata manifestar­-se-ia por intermédio de uma série de regularidades orgânicas que podem representar uma disfunção no tocante aos padrões sociais acei­tos, no entanto, em termos evolutivos, encon­tram uma possibilidade de manifestação dependente do próprio grau de ocorrência verificado na espécie. Nesses termos, o enten­dimento vinculado à Psicologia Evolucionista e, mais especificamente, à Psicopatologia Evolucionista, estabelece que os indivíduos anti-so­ciais também executariam adaptações, ainda que, em termos sociais, sua tendência compor­tamental possa ser compreendida como uma disfunção.

O aspecto salutar de um entendimento so­bre o papel adaptativo do psicopata sustenta-se no pressuposto de que os indivíduos portadores do citado transtorno não apresentariam um dé­ficit em termos de processamento das informa­ções sociais. De outro modo, o que os portado­res do transtorno conseguem fazer com êxito é justamente manipular os estados mentais alhei­os, ainda que se mostrem indiferentes aos sen­timentos que conseguem detectar nos outros. Ou seja, os psicopatas, de acordo com esse entendimento, diferem-se dos demais pelo fato de estar, em termos adaptativos, mais capacitados para um tipo de manipulação voltada à obtenção de vantagens exclusiva­mente pessoais. Se por um lado o comporta­mento altruísta resulta, para alguns teóricos da Psicologia Evolucionista, de um mecanismo evolutivamente desenhado visando à obtenção de vantagens indiretas, por outro, a sintomato­logia anti-social resulta de um design mental voltado tão somente à obtenção de vantagens diretas nos ambientes sociais em que os orga­nismos humanos evoluíram29.

Considerações evolucionistas do psicopata

Em termos gerais, pode-se dizer que os estudos que vêm sendo sustentados pela Psi­cologia Evolucionista mostram-se fecundos no que diz respeito à explicação de uma diversida­de de mecanismos mentais. De fato, uma com­preensão ampla sobre o psiquismo humano deve levar em conta, tal como salienta Pinker6, as pressões ambientas e o caráter emergente de certos mecanismos psíquicos como uma res­posta selecionada diante dessas mesmas pres­sões. Seria ingênuo pensarmos que todos os organismos vivos estiveram submetidos a uma lógica evolutiva, sendo que o ser humano teria sido uma exceção nesse mesmo processo, sen­do que faz-se necessário considerar sempre as alterações verificadas no próprio ambiente so­cial ao longo da nossa história evolutiva.

Por outro lado, os entendimentos sobre a psicopatia, que estiveram fundamentados na Socio­biologia e, mais recentemente, na Psicologia Evolucionista26-29 deparam-se com questões que não podem ser elucidadas levando-se em conta apenas uma compreensão sobre o cará­ter adaptativo do próprio transtorno. Em outras palavras, uma coisa seria afirmar que alguns transtornos mentais podem decorrer de meca­nismos adaptativos, que ocorrem num grau exacerbado, outra coisa seria dizer, que todos os transtornos psíquicos expressam adaptações, que continuamos a executar no ambiente atual. Indubitavelmente, esse parece ser um problema que merece melhores investigações no campo da chamada Psicopatologia Evoluci­onista.

No caso específico da psicopatia, é preciso con­siderar, por exemplo, o fato de que o transtorno não decorre exclusivamente de fatores geneti­camente determinados. Uma série de pesqui­sas tem conseguido evidenciar a influência de fatores ambientais no tocante à própria mani­festação do transtorno31. Mealey29, que propõe um modelo evolucionista integrado para a psicopatia, também considera tais fatores como sen­do importantes. A questão, entretanto, é que a autora chega a postular a existência de dois tipos diferenciados de sociopatia, sendo que haveria um tipo primário e determinado em ter­mos de genótipo e um tipo secundário resultan­te da influência ambiental. Ou seja, a sociopatia primária poderia ser explicada dentro de uma lógica evolucionista e estaria sujeita a uma "se­leção dependente de freqüência" e a sociopatia secundária seria um quadro gerado por inter­médio das interações e vivências, que se mos­tram propensas a influenciar a formação da personalidade.

Percebe-se, dessa forma, que a autora pro­cura, através de categorizações distintas, abar­car o fato de que a psicopatia não parece decorrer de fatores exclusivamente genéticos. No entan­to, se considerarmos uma série de pesquisas vinculadas à mensuração da psicopatia que vêm sendo sustentadas pela utilização do PCL-R (Psychopathy Checklist Revised)33,34, é possí­vel constatar que, de fato, ocorrem diferenças em termos da manifestação do transtorno, mas são diferenças que se referem ao próprio grau em que os sintomas estão presentes. Dito de outro modo, uma avaliação mais criteriosa da prevalência da psicopatia leva-nos a perceber, que o transtorno manifesta-se muito mais em termos de um contínuo, que abrange situações extre­mas, bem como situações limítrofes, do que propriamente em termos de categorias distin­tas. Por que deveríamos pensar, que existe no que diz respeito a essa distinção gradual, indi­víduos cujos sintomas decorrem exclusivamen­te de fatores genéticos e outros cujos sintomas decorrem exclusivamente de fatores ambien­tais? Não seria mais plausível pensarmos, que o mesmo transtorno vincula-se a fatores tanto ambientais como genéticos, sendo que o grau em que os sintomas fazem-se presentes irá depender da forma como tais fatores estão con­jugados?

A questão da "seleção dependente de fre­qüência" é um outro ponto problemático da teo­ria de Mealey29. Numa resposta ao artigo de Mealey, Wilson29 sustenta, por exemplo, o fato de que a psicopatia, mesmo decorrendo de fatores exclusivamente genéticos, poderia não ser adaptativo tal com apregoa Mealey (1995)29 e outros autores26. Se considerarmos uma época remota e pensarmos nas sociedades de coleta e caça, é possível constatar que o fato de nos­sos ancestrais terem vivido em pequenos gru­pos fazia com que a manifestação de comporta­mentos anti-sociais fosse sinônimo de uma não-adaptação muito mais do que é hoje. Ou seja, num ambiente hostil, a coesão grupal mostra­va-se verdadeiramente imprescindível e uma reputação negativa tinha, num grupo pequeno, um preço bem mais alto que tendia a resultar em exclusão. Onde há exclusão há, com certe­za, menos possibilidades reprodutivas. A "sele­ção dependente de freqüência" é, no tocante a muitas espécies, uma fato verificável, mas ela só ocorre quando a manifestação de um dado comportamento, em baixa freqüência, não afeta a própria organização intra-grupo. No caso de uma sintomatologia anti-social no ambiente pri­mitivo, mesmo ocorrendo com baixa freqüên­cia, ela afetaria negativamente o mesmo. Por outro lado, poderia ser adaptativa, mas em si­tuações anteriores em que houvesse um indivi­dualismo maior. A agressividade, a rapidez e o "sangue frio" do sociopata mostrar-se-iam, nes­se sentido, adequados para enfrentar a hostili­dade.

De outro modo, como explicar a capacida­de que os indivíduos com psicopatia possuem para manipular os estados mentais alheios? De um modo geral, desenvolveu-se na espécie huma­na aquilo que se costuma chamar de "teoria da mente"34. Em outras palavras, uma capacidade para inferir sobre os estados mentais alheios favorecida pela evolução. Ao contrário do que apregoam alguns modelos exclusivamente cog­nitivos que se voltam para a psicopatia, os indiví­duos com o citado transtorno estão realmente aptos a inferir e manipular as expectativas alheias, e isso depende de uma capacidade para "teorizar" sobre a mente do outro. No en­tanto, a questão central vincula-se ao fato de que eles utilizam funções adaptativas com ob­jetivos decorrentes de sintomas não-adaptati­vos. A "teoria da mente" pode realmente ser uma capacidade fomentada pela evolução, mas os indivíduos com psicopatia diferem-se dos demais pelo fato de utilizar essa mesma capacidade de um modo que vai ao encontro do próprio quadro disfuncional que neles está presente. Ou seja, inferem sobre os estados mentais alheios com o propósito de obter ganhos exclu­sivamente pessoais, tendo em vista que não estão mentalmente propensos a contabilizar os ganhos sociais indiretos que o comportamento altruísta pode gerar. Nesse sentido, alguns pos­tulados da Psicologia Evolucionista podem ser elucidativos para uma melhor compreensão da psicopatia; em contrapartida, isso não nos leva, necessariamente, a acreditar que o transtorno seja uma adaptação e, menos ainda, uma adap­tação que se mostrou, ao longo da nossa histó­ria evolutiva, dependente da sua freqüência.

A questão de uma base genética para a psicopatia realmente nos faz pensar que a sua ocor­rência esteja atrelada a uma lógica evolutiva. O problema é que essa lógica pode ter operado muito antes de termos nos tornado o que so­mos. Os fatores biológicos propriamente ditos podem, nesse sentido, ter sido bem mais atuan­tes do que são hoje. Dito de outro modo, desen­volveu-se na espécie humana, uma ampla ca­pacidade representacional capaz de conferir novas orientações para tendências que outrora foram o resultado exclusivo de regularidades endócrinas e fisiológicas.

Na medida em que acabamos desenvol­vendo uma sofisticação cognitiva largamente capacitada para processar informações am­bientais e alocá-Ias, gerando formas específicas de interagir, deixamos de ser aquilo que a genética determina, ainda que nunca tenhamos deixado de receber as suas influências. Nesses termos, a psicopatia pode ter decorrido, num passa­do bastante remoto, exclusivamente de um de­terminismo biológico e, nesse sentido, alguns entendimentos mencionados são válidos. Por outro lado, seria difícil designarmos a sua ocorrência como um transtorno propriamente dito e mais difícil ainda classificá-Io como "anti-so­cial". Em pesquisas realizadas, por exemplo, com macacos Rhesus sabe-se que a simples alteração dos níveis de testosterona é, por si só, capaz de gerar comportamentos anti-so­ciais35. No entanto, será que podemos dizer que esses animais e uma série de primatas não­-humanos, no pleno sentido do termo, vivem em sociedade?

De um modo geral, essa discussão mostra­-se bastante ampla. No entanto, a funcionalida­de do próprio comportamento altruísta sugere que a manifestação de comportamentos anti­ssociais não pode ser considerada adaptativa, seja na sociedade em que vivemos, seja na sociedade em que nossos ancestrais passaram a viver após o advento de uma maior capacida­de intelectual na espécie. De acordo com inú­meros estudiosos da evolução do intelecto36, o seu desenvolvimento foi fomentado pela pró­pria conivência na esfera social. Uma convivên­cia que também esteve encarregada de sele­cionar repertórios comportamentais, que se mostraram mais adequados. O fato de que um repertório comportamental tenha sido privilegi­ado ao longo do processo evolutivo não signifi­ca, entretanto, que qualquer outro tenha sido extinto. A ocorrência da psicopatia pode, nesse âm­bito, resultar de uma combinação de fatores ambientais com genótipos que vêm sendo transmitidos ao longo da nossa história evoluti­va, ainda que os "designs psíquicos" por eles sustentados nunca tenham representado uma adaptação social no seu verdadeiro sentido.

De outro modo, é também preciso conside­rar o fato de que a abordagem evolucionista sobre a psicopatia ainda poderá mostrar-se bastan­te elucidativa, na medida em que os entendi­mentos sobre a função do comportamento al­truísta na esfera social forem ampliados. Nesse sentido, revelar-se-ão pertinentes estudos que abordem a filogênese de alguns valores morais e sociais amplamente sustentados ao longo da nossa história, ainda que, para tanto, seja sem­pre necessário levar em consideração as pró­prias influências culturais. A Psicologia Evolu­cionista pode explicitar melhor as raízes de alguns valores socialmente aceitos, sem que isso signifique reduzi-Ios a uma compreensão exclusivamente biológica. Nesse sentido, faz­-se ainda necessário um maior entendimento sobre os indivíduos que se mostram propensos a infringir as regras básicas de convivência e a agirem em desacordo com os próprios valores referidos. Uma melhor compreensão dos mui­tos comportamentos que podem ou não ser considerados adaptativos ao longo da nossa história pode, por si só, vir a esclarecer uma série de sintomas vinculados à psicopatia e, desse modo, ainda que os estudos mencionados te­nham sustentado argumentos questionáveis, ti­veram o mérito de provocar reflexões oportu­nas.

Conclusões

Até o presente momento, a etiologia da psicopatia não foi devidamente esclarecida já que antes teríamos de saber como se dá a relação cérebro-mente, mas uma série de pesquisas tem mostrado a possibilida­de de que a psicopatia seja melhor explicada em ter­mos de uma combinação de fatores37. De outro modo, um entendimento sobre a filogênese do transtorno deve levar em conta o fato de que a manifestação da psicopatia não decorre de um fator isolado. Sendo assim, não é passível de ser explicada em termos de uma lógica evolutiva que apregoa o caráter adaptativo do transtorno.

Muitos transtornos psíquicos podem ser entendidos como mecanismos adaptativos cujo grau em que estão presentes representa, no ambiente atual, uma disfunção. Este, entretan­to, não parece ser o caso da psicopatia. O transtor­no não poderia, nesse sentido, ser explicado como um design biológico selecionado para uma exclusiva obtenção de vantagens diretas, uma vez que a própria socialização humana sempre prescindiu de mecanismos mentais ca­pazes de engendrar o comportamento colabo­rativo.

Uma melhor compreensão sobre a funcio­nalidade do comportamento altruísta e dos me­canismos neurocognitivos que lhe dão susten­tação poderá, de outra forma, vir a ser esclarecedora para uma série de sintomas do psicopata. Nesses termos, poderá ser melhor com­preendida a notória incapacidade que os indiví­duos portadores do transtorno possuem para gerar atitudes pró-sociais. Faz-se necessário, portanto, um maior esclarecimento evolutivo sobre o próprio caráter não adaptativo dos sin­tomas que perfazem o transtorno, tendo em vista que, este, ao contrário do que sustentam alguns autores26-29, não demonstra ser um tipo de adaptação com um grau específico de pre­valência na atualidade.

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