Fragmentos de um evangelho apócrifo
(Jorge Luis Borges)
-Desventurado o pobre de espírito, porque debaixo da terra será o que agora é na terra.
-Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.
-Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
-Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
-Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
-Bem-aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, que é inescrutável.
-Não odeies a teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor do que tua paz.
-Não exageres o teu culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
-Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
-Resiste ao mal, mas sem espanto e sem ira.
-Eu não falo de vingança nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
-Fazer o bem ao seu inimigo é o melhor modo de comprazer tua vaidade.
-Pensa que os outros são justos ou o serão, e se não é assim, não é teu o erro.
-Não julgues o homem por suas obras; podem ser melhores ou piores.
-Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora pedra a areia…
-Feliz o pobre sem amargura e o rico sem soberba.
-Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhante a derrota ou as palmas.
-Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio, porque estas darão luz a seus dias.
-Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
-Felizes os felizes.
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Os Bens e o Sangue trecho de Drummond dito por Bento Prado Jr.
"[…]
Vergonha da família
que de nobre se humilha
na sua malincônica
tristura meio cômica,
dulciamara nux-vômica."
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No caminho com Maiakovski
(Eduardo Alves da Costa)
Na primeira noite, eles se aproximam
e roubam uma flor
de nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
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Sei que não vou por aí
(Paulo Pontes)
Estou reduzida aos meus instintos
Estou presa aos meus sentidos
Reduziram meu direito à minha humanidade
Tiraram meu semelhante de junto de mim
Arrancaram a minha carta de cidadania
Dissolveram minha consciência
Mas me deixaram essas palavras da boca
e eu digo com zavejo…
-Vem por aqui
Dizem-me alguns com olhos doces estendendo-me os braços
e seguros de que seria bom que eu os ouvisse quando me dizem:
-Vem por aqui
Eu olho-os com olhos lassos
Há nos meus olhos ironias e cansaços
E cruzo os braços
-E nunca vou por ali
A minha glória é esta
criar desumanidade
não acompanhar ninguém
que eu vivo com o mesmo sem vontade
com que rasguei o ventre a minha mãe
-Não, não vou por ali
Só vou para onde me levam meus próprios passos
Se o que busco saber
nenhum de vós responde
Por que me repetis
-Vem por aqui?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos
redemoinhar aos ventos
como farrapos
arrastar os pés sangrentos
a ir por aí
Se eu vim ao mundo
foi só para deflorar florestas virgens
e desenhar meus próprios pés na areia inexplorada
O mais que eu faça não vale nada
Como pois sereis vós
que me dareis machados, ferramentas e coragem
para eu derrubar os meus próprios obstáculos?
Corre nas vossas veias
o sangue velho dos avós
E vós amais o que é fácil
Eu amo o longe e a miragem
Não os abismos, as torrentes, os desertos
Ide
Tendes estradas, tendes jardins
tendes canteiros, tendes pátrias, tendes tetos
e tendes regras e tratados e filósofos e sábios
Eu tenho a minha loucura
Levanto-a como um facho
a arder na noite escura
E sinto espuma e sangue
e cântico nos lábios
Deus e o Diabo é que me guiam
mais ninguém
Todos tiveram pai
Todos tiveram mãe
Mas eu que nunca principio nem acabo
nasci do amor que há entre Deus e o Diabo
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções
não me peçam definições
Ninguém me diga
-Vem por aqui
A minha vida é um vendaval que se soltou
É uma onda que se alevantou
É um átomo a mais que se animou
-Não sei por onde vou
-Não sei para onde vou
-Sei que não vou por aí…