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Setor de Terapia Ocupacional – Uma experiência

No final de 1.980 e início de 1.981, me encontrava dando início ao último ano da Faculdade de Psicologia, para a obtenção do título "Formação de Psicólogo". Procurei junto com alguns colegas o CIEE (Centro de Integração Empresa Escola), na procura de algum estágio remunerado, o qual pudesse contribuir com as despesas relativas à Faculdade, além da obtenção de mais uma experiência na área clínica, a qual desde sempre foi minha opção.

Encontramos um estágio de um ano em um hospital psiquiátrico aqui de São Paulo. Para lá nos dirigimos a passar por uma entrevista de seleção, a qual foi conduzida por duas psicólogas que eram funcionárias efetivas do hospital. Uma vez aprovados e tendo providenciado toda a papelada necessária para a nossa admissão enquanto estagiários, começamos a trabalhar numa segunda feira. Éramos três e cada um foi designado para trabalhar num setor do hospital , tendo sido eu, direcionado para o setor de Terapia Ocupacional .

Vale notar que esse estágio ocorria sempre na parte da manhã, até a hora do almoço e que, num sistema de rodízio, tínhamos que dar plantão no sábado à tarde. Ficava praticamente um sábado para cada um de nós, tendo por vezes, chegado no  máximo a dois. Contávamos também com uma supervisão de uma a duas vezes por semana, conforme o mês, a qual era ministrada pelas mesmas duas psicólogas efetivas que haviam nos contratado para o estágio.

O meu grande interesse nesse artigo é enfocar a total falta de planejamento e busca de  objetivos, da qual estava investido o setor de Terapia Ocupacional quando ali cheguei. Nos primeiros dias de estágio, encontrava praticamente os mesmos pacientes que para ali se dirigiam para poderem jogar um pouco de bilhar, ping-pong, pebolim, etc. Lá chegando, jogavam um pouco, sem trocar palavras, sentavam, fumavam um cigarro e depois desapareciam, muitas vezes indo para os seus quartos.

Vale também ressaltar que trabalhávamos na área custeada pelo governo, muito embora soubéssemos que o hospital possuía uma ala particular, à qual nunca tivemos acesso, embora houvésemos solicitado e a permissão nos fora negada sem maiores explicações. No que nos dizia respeito, se ficássemos sentados por todo o período que lá devíamos estar, receberíamos a nossa ajuda de custo no final do mês sem nenhum problema.

Falo aqui por mim, muito embora saiba que os colegas empatizavam com a minha posição. Fui ficando cada vez mais decepcionado com esse estado de coisas, não me conformando de ir prá lá todas as manhãs, de me encontrar com os pacientes e nada mais acontecer. Para mim, aquele desperdício de tempo e falta de qualquer programação acabaria se tornando insuportável , talvez até interrompendo precocemente o meu estágio.

Quando tentei conversar a respeito com as minhas supervisoras, notei que as mesmas não se oporiam, desde que eu propusesse algo por minha conta e risco. Com elas notei que não poderia contar, até porque saíam pela tangente, dizendo que não tinham tempo para cuidar dessas coisas. Ora, se não cuidavam dessas coisas, cuidavam de quê? A resposta que me parecia mais apropriada para essa pergunta, era de que estavam prontas para cuidar de seus próprios salários, sem questionarem muito ou nada a estrutura da qual faziam parte.

Parecia-me que era isso o que mais lhes convinha, ao contrário de mim, que ia ficando cada vez mais inquieto e inconformado. Depois de ter me colocado para pensar a respeito, consegui chegar a algumas diretrizes, às quais estava disposto a colocar em prática. Em lá chegando numa segunda feira, me propuz a jogar e a convidar alguns pacientes para jogarem comigo. Posso afirmar que a resposta foi satisfatória, no sentido de que muitos daqueles que ficavam ali "jogados", ociosos, ao ser convidados por mim, logo se levantavam e até propunham outros jogos nos quais confiavam mais em si.

Nesta etapa, cansei de levar verdadeiras surras, principalmente no jogo de bilhar e pebolim, onde lá encontrei verdadeiros craques. Propositalmente, quando eu começava a jogar com algum paciente, depois de um tempo eu convidava alguém prá entrar no meu lugar, dando uma desculpa qualquer, mas tentando sempre ficar por perto para observar o que se passava entre eles. Tímidamente um fazia um ponto e formulava um comentário, ao que o outro, não menos timidamente, respondia com um sorriso. Eu procurava ficar mais como uma espécie de mediador, tentando catalizar, ajudar que a relação entre eles se estabelecesse e que tivesse continuidade no dia seguinte.

Comecei a freqüentar mais as quadras e o setor de artesanato, dizendo claramente aos pacientes o que eu fazia ali e que estava à disposição deles se tivessem alguma idéia sobre esportes, etc. Um belo dia, notei que havia menos pacientes do que o habitual na sala de jogos, e pude verificar que isso tinha a ver com um aumento na medicação que haviam tido um dia antes. Pois bem, sentei-me num banco de madeira e comecei a puxar conversa com um paciente que ali estava sentado também e, enquanto conversávamos, notei a aproximação de outros pacientes que também ali se sentaram e, que de vez em quando, participavam da nossa conversa, dando opiniões a respeito do que falávamos. Ao observar aquele movimento dos pacientes, ocorreu que eu poderia me oferecer para conversar com quem estivesse a fim e que para isso bastariam os bancos de madeira e a minha predisposição, assumindo uma postura de grande acolhimento e receptividade.

Gradativamente, os pacientes começaram a se aproximar e aquela atividade foi se estabelecendo como mais uma atividade que ali eles tinham à sua disposição, mas com a enorme diferença de que encontravam a condição humana, estabelecendo um contra-ponto com a sua condição, muitas vezes longe desse caráter mais humano. Por lá encontrei pacientes que já se encontravam na trigésima segunda internação, onde havia sido substituída sua adição alcoólica, por uma adição medicamentosa.

Em termos diagnósticos, hoje muito questionáveis, a grande maioria dos pacientes que ali se encontravam, sofriam de alcoolismo e de dependências químicas. Foi muito curioso e marcante prá mim, poder observar que os pacientes tinham sobre o que falar, apenas não contavam com as pessoas para ouvir.

Todas as manhãs,  portanto foi meio que se estabelecendo um horário onde o grupo se formava. Não havia um horário determinado a priori, sendo que eu os deixava livres para jogarem e, quando percebia que o jogo estava começando a esfriar, puxava um banco de madeira e lá me sentava, sendo que com essa atitude, ficava estabelecido que o horário do grupo estava começando e que todos eram muito bem vindos indistintamente.

Eu podia ter a nítida impressão de que eles contavam com aquela atividade, sendo que quando eu, raramente, faltava, ficavam perguntando por mim e a que horas seria o grupo. Durante os grupos, muitas vezes chegavam a questionar onde estavam as suas roupas que vestiam quando ali chegaram e que agora estavam todos vestidos iguais. Seus cabelos haviam sido cortados, seus documentos e fotos suprimidos, ou seja, de alguma forma a minha presença era o único contato que eles podiam ter com o mundo de fora, ou melhor dizendo com uma dimensão que de alguma forma lhes resgatava a identidade.

Eu sei dizer que esses tais grupos foram tomando dimensões que nem mesmo eu achava que poderiam tomar e assim foi que a existência desses grupos chegou até os ouvidos dos pacientes que ocupavam a ala particular das internações.

Os mesmos manisfestaram a vontade de me conhecer e a idéia de que fossem feitos grupos também ali onde estavam internados. Uma vez tendo sido consultada a diretoria, a solicitação foi negada, causando uma grande frustração nos pacientes, bem como em mim. Num primeiro momento, ainda sob efeito da frustração, ficamos sem entender as causas dessa negativa, mas se nos ativermos sobre a questão com mais vagar, logo descobriremos que não era do interesse da diretoria, que os pacientes tivessem um lugar de discussão, entre outras coisas, sobre o por que de trinta e duas internações, as quais eram pagas pelo governo e recebidas pelos donos do hospital.

Procurei me informar e ao que parece, entre todos os donos do hospital, não havia nenhum com formação psiquiátrica, pertencendo eles a outras especialidades médicas. Ou seja, do ponto de vista do negócio visto economicamente, não era interessante para eles que os pacientes questionassem suas internações, e, menos ainda, que pudessem vir a prescindir delas. Em outras palavras, a doença mantinha a arrecadação e a retirada entre os sócios. Vocês poderão perguntar: mas por que isso tudo não era levado para ser discutido em supervisão, ao que eu responderia: nós bem que tentávamos, mas a supervisão, se é que podemos chamar aquilo dessa forma, tinha um horário contado, por exemplo 40 minutos para 8 pessoas. Contaríamos, então cada um com a enorme flexibilidade de 5 minutos para cada participante. Quando reclamávamos que era muito pouco, as nossas brilhantes supervisoras nos respondiam que era para vermos entre os participantes, se havia alguém que poder-nos-ia  emprestar alguns de seus minutos.

Vale observar que a própria supervisão na instituição psiquiátrica, funciona como mais um instrumento de controle, o que é extremamente lamentável, redundando na manutenção do status quo. Além disso, aqueles pacientes que ficavam mais questionadores, deveriam ser imediatamente medicados uma vez que prá "equipe" (ir)responsável, estaria havendo um recrudescimento da sintomatologia.

Acredito, que se pudessem teriam medicado até a mim e, principalmente a mim, uma vez que eu estava representando para eles, alguém que poderia ser responsável por um levante, por uma insubordinação. Mas, o que é a loucura, se não uma forma de insubordinação saudável?

Indubitavelmente, se eu tivesse alguma aspiração, o que nem de longe era o caso, de requerer uma efetivação naquela instituição psiquiátrica, pós-formado, dariam um jeito de deletarem meu curriculum em caráter absolutamente definitivo. Assim, fica a triste constatação de que, enquanto a doença mental for significada como uma forma de se aferir recompensas econômicas e vultuosas, VIVA A DOENÇA MENTAL !!!

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