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Uma modalidade de transferência: A transferência psicótica

Para escrever esse artigo, estou me embasando em minha experiência clínica, bem como no estudo teórico intenso sobre duas obras principais. A primeira é "Estudos sobre a técnica psicanalítica", da produção de Einrich Racker e, a segunda, de mesmo nome, da produção de Horácio Etchegoyen, o qual fez análise com o próprio Racker.

Trata-se de duas obras de extrema magnitude no campo da Psicanálise. Há muito tempo, a obra de Racker é considerada como sendo o melhor manual sobre as temáticas da transferência e da contratransferência existentes na literatura especializada. Antigamente, nos primórdios da Psicanálise, os casos que apresentavam esse tipo de modalidade transferencial, eram considerados como sendo inanalisáveis, até porque, a única transferência passível de análise , era a transferência oriunda das neuroses. Para a época, os casos de psicose, estavam automáticamente fora do influxo da Psicanálise. A bem da verdade, muitos casos rotulados de psicose à época de Freud, hoje sabemos que tratavam-se de neuroses graves, sobre as quais a psicanálise não tinha condições de realizar um diagnóstico diferencial, uma vez que contava com um arsenal teórico-técnico, que não lhe permitia estabelecer uma sintonia fina capaz de aquilatar do que realmente se tratava.

Encontramos em H. Etchegoyen, a afirmação de que certos tipos de transferência erótica podem ser considerados como sendo uma transferência psicótica, pela sua impossibilidade de se inserir no campo simbólico, metafórico, apresentando ao contrário um aspecto de concretude. As catexias libidinais não podem ser pensadas como deslocamentos de catexias libidinais anteriores, por exemplo. O objeto investido não pode ser pensado como estando no lugar de, mas sim que trata-se do próprio objeto mesmo. Gostaria de ilustrar essa apresentação, com um exemplo, prá mim muito significativo, retirado de minha atividade clínica. Por volta de 1.990, recebí um encaminhamento feito por um colega, o qual apenas me disse que a pessoa em questão  já havia sido sua paciente e, que naquele momento, encontrava-se impossibilitado de dar continuidade ao atendimento, me solicitando que dentro do meu possível eu me encarregasse do caso. Tratava-se de uma mulher com trinta e poucos anos ,casada e mãe de três filhos. Estava quase em vias de concluir um curso superior. Uma mulher bonita, culta e de gestual refinado. Já na primeira entrevista ,em determinado momento, me solicitou que eu lhe prometesse que iria atende-la como condição para que me contasse aquilo que ela chamava de um segredo de caráter muito grave. Lhe respondi que as coisas não funcionavam assim e que aquele era apenas o nosso primeiro contato ,não me sendo possível lhe garantir que eu iria atende-la de qualquer forma. Eu estava tentando tomar pé da situação, além de termos ainda que conversar sobre horários, honorários, etc. Depois de algum silêncio, o qual parecia representar uma reprovação a minha conduta, retomou a fala e me contou o tal segredo, fato grave que envolvia não só a ela como também a pessoa do marido. Após o término dessa primeira entrevista, lhe propus que nos víssemos mais uma vez, ao que ela concordou de imediato. Na segunda entrevista também compareceu muito bem trajada, maquiada e com o seu modo requintado habitual. Retomou o tal segredo ,detendo-se mais sobre ele e acrescentando alguns outros detalhes que não tinham surgido por ocasião da primeira entrevista.

Falou mais do seu relacionamento conjugal, bem como se sentia em relação aos filhos e aos planos futuros em relação a profissão que pretendia abraçar e para a qual, me parecia levar bastante jeito. Fez referência também a um acidente, no qual havia se envolvido não fazia muito tempo e ,no qual tinha ido contra um poste por se achar alcolizada. Teve que ser hospitalizada, lá permanecendo até se restabelecer completamente. O pai já havia falecido e o relacionamento com a mãe e com os irmãos era muito pobre afetivamente falando.

Muito bem, passamos então aos detalhes do processo de análise e lhe propuz que nos víssemos duas vezes por semana, ao que ela concordou. Iniciado o processo de análise e, tendo a paciente ocupado o divã desde a primeira sessão, foi falando sobre as coisas que mais lhe preocupavam, tendo feito logo após as primeiras sessões, a afirmação de que não estava contente com o relacionamento conjugal, mais no sentido de não se achar bem tratada pelo marido, ou pelo menos como ela gostaria que fosse tratada por ele.

Depois de um mês ou pouco mais do início da análise, um dia chegou e se sentou diante de mim, dizendo que estava acontecendo algo estranho com ela e, que se tratava de achar que estava gostando de alguém. Afirmo que nesse exato momento, tive a sensação de que ela estava se referindo a mim e, se eu tinha alguma dúvida, que não era o caso, ela foi logo tratando de dissipá-la, afirmando com todas as letras o que eu havia pressentido.

Quero chamar aqui a atenção para a forma como tudo isso foi falado, ou seja, como algo que ela havia tomado conhecimento e que queria colocar em prática, ficando claro que esperava de mim a contrapartida correspondente e que eu me manifestasse a respeito. Não havia nenhum tipo de exitação em sua fala e nem sequer deixava transparecer que estava levando em consideração, que eu poderia não estar mínimamente interessado na sua afirmação.

Era como se tivesse me feito um comunicado e que esperava de mim o comportamento condizente com à sua expectativa. As sessões foram transcorrendo e aquela fala se tornou lugar comum ,parecendo que sua vida pregréssa, havia deixado de existir e que seus planos para o futuro já me incluíam automáticamente.

Em todas as tentativas que fiz, no sentido de levar em conta o sentimento de que me falava, mas de poder relativisá-lo, oferecendo-lhe alternativas quanto às possibilidades de estar havendo aí, por exemplo, um deslocamento, a resposta era sempre a mesma, isto é,  "é de você que eu gosto e disso tenho absoluta certeza".  Lhe sugeri que levássemos tudo isso em consideração, mas que nos déssemos tempo para podermos entender o que estava acontecendo, ao que sempre me respondia que por ela tudo bem, só que jamais mudaria de opinião sobre seus sentimentos em relação a mim.

Me lembro que numa das sessões seguintes , que ocorreu numa tarde, lhe disse que ela me dizia tudo aquilo em relação a mim, mas que me parecia que em nenhum momento levava em consideração a minha pessoa, no sentido dos meus sentimentos, os quais poderiam não estar orientados em relação a ela. Olha para a janela, logo ao lado do divã e responde: " tenho a impressão de que você deve ter falado alguma coisa interessante, mas eu aqui olhando para esse dia lindo que está lá fora, estava pensando quanto legal seria se nós dois agora estivéssemos numa banheira de espuma".

Respondi prontamente que ela ,por estar achando muito difícil estar alí na sessão, havia criado em sua fantasia um lugar onde para ela estaríamos muito à vontade, diferentemente dalí. Que garantia ela tinha de que seria dessa forma? Além disso lhe disse, que enquanto tentava me exaltar como homem, me reduzia a zero enquanto seu analista.

Depois de sentir que a minha posição não arrefeceria, me falou que na sua análise anterior, a qual foi conduzida pelo colega que me havia indicado a paciente, eles tinham se envolvido afetiva e físicamente e que ela não entendia como eu podia não me interessar por ela. Lhe respondi  que me interessava sim por ela, por todas as questões que foram levantadas nas entrevistas e nas sessões iniciais, mas que me parecia que ela não queria saber de mais nada daquilo tudo.

Quando eu pensava nessa paciente me fazia a seguinte metáfora. Era como se eu tivesse diante de mim uma trave de futebol, cujo goleiro-paciente tinha as exatas dimensões da trave e eu tentando formular um gol-interpretação, o qual nunca seria marcado ,uma vez que todo espaço era ocupado pelo goleiro-paciente. Todas essas situações constituíam-se em actings-in , o que nos facultava  a possibilidade de tentarmos trabalhar analíticamente. Contudo, a paciente começou a passar pelo consultório em horários que não correspondiam aos seus,me deixando CDs, bombons, cartões,etc, na portaria do prédio.

Além disso pediu a uma amiga que ligasse para a minha casa num sábado à tarde, me avisando que dentro de alguns minutos , a paciente iria passar por lá, ao que, óbviamente não fui conferir, deixando para falar a respeito no seu próximo horário de sessão.

Bem,acabou vindo por mais algumas sessões, chegando num determinado dia em que me comunicou que não viria mais e dizendo que só faltava tirar a roupa para chamar a minha atenção. Acertou o que devia e disse que nunca mais colocaria os seus pés alí. Passados uns quinze dias, me ligou uma noite em casa, dizendo que já estava em uma outra terapia e, que se eu mudasse de idéia em relação a ela , que eu sabia onde encontrá-la,ao que respondi, que fazia minhas as suas palavras, sendo que se ela mudasse de idéia a meu respeito, que ela também sabia onde me encontrar.

Hoje, são passados dezessete anos dessa experiência e eu nunca mais tive qualquer notícia da paciente e, também acabei por não saber se havia sido verdade o relacionamento que ela disse que tivera com o meu colega e o fiz, por achar absolutamente irrelevante a verdade dos fatos, preferindo ficar com aquilo que teria sido verdade para a minha paciente. Tenho a dizer, portanto, que esse para mim foi com certeza um dos contatos que tive com uma modalidade de transferência erotizada, transferência negativa, que acabou por adquirir matizes de uma transferência psicótica, a qual inviabilizou a continuação do processo de análise.

Essa foi uma experiência tão marcante para mim, que acabei escrevendo minha monografia de conclusão da pós-graduação com o seguinte título: "Considerações sobre o amor de transferência sob as ópticas dos conceitos de narcisismo e pulsão de morte", utilizando, a título de ilustração clínica, fragmentos do caso acima citado.

Apenas a título de uma última consideração, gostaria de citar que em Psicanálise ,existe uma espécie de máxima onde " não importa o objeto da relação,mas sim a relação de objeto " que o paciente estabelece, a qual se reproduzirá na transferência. No caso da minha paciente, certamente ela diria: " Como não importa o objeto da relação? É tudo o que me importa, sendo que o objeto é você, concretamente você "

E eu ainda acrescentaria, o objeto da relação , antes de mim, era ela, no afã de sua busca narcísica.

Passo agora a falar das formas clínicas da transferência erotizada, tomando como fio condutor, principalmente os trabalhos de Horácio Etchegoyen. A forma mais típica é aquela que Freud descreveu como tenaz, inusitada e irredutível, sintônica com o ego e que não aceita substituição alguma, características nas quais Bion chegou a ver, tempos depois, a marca do fenômeno psicótico. No dizer de Freud, o enamoramento é sintônico e surge precocemente, sendo que quanto mais precoce aparece, pior será o prognóstico.

Outros tantos casos entram no que E. Racker chamou de ninfomania de transferência(1.952). Evidencia a existência de mulheres que querem seduzir sexualmente o analista como a qualquer homem que conhecem.

A ninfomania é um quadro de difícil delimitação e, as vezes, é alimentada, por um delírio erótico(erotomania), uma forma da paranóia de Kraepelin, com o mesmo título que o delírio de ciúmes ou o delírio persecutório.

Pode também ser a expressão sintomática de uma síndrome maníaca. Ainda outras vezes quando a perturbação é mais visível a nível da conduta sexual do que na esfera do pensamento, a ninfomania se apresenta como perversão em relação ao objeto sexual, se nos remetermos à classificação do primeiro, dos "Três Ensaios Para Uma Teoria Sexual", de 1.905. Existe também uma ninfomania que apresenta todas as características da psicopatia,quando a estratégia fundamental da paciente é a inoculação do analista, levando-o a atuar.

Desta forma, dentro do chamado amor de transferência, pode haver formas psicóticas (delirantes e maníacas), formas perversas e formas psicopáticas do vínculo transferencial. Em outras ocasiões, quando a situação não é tão manifesta, esse amor de transferência da drogadição leva ao impasse e a análise interminável, recoberto as vezes de um desejo manifesto de se analisar "todo o tempo que for necessário". Observamos em um trabalho de 1.981, de Elza H. Garzoli, a advertência sobre o perigo da drogadição do analista, frente aos sonhos que lhe ministra o paciente.

Racker já apontava em 1.954, comentando o belo trabalho de Freud de 1.915, onde dizia que essa grande necessidade de amor que Freud atribuía a essas enfermas, "filhas da natureza", que lhe colocavam a questão de como podiam o amor e a enfermidade coexistir, é mais aparente que real. São ao contrário, mulheres com muito pouca capacidade de amar e, que é através da pulsão de morte que elaboram todo esse sistema de voracidade, de insaciabilidade de exigências concretas, labilidade, etc, as quais levam muitas vezes, à interrupção precoce de um processo de análise.

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