"Com este artigo Kandel inaugura um dos movimentos científicos mais promissores de nossos tempos."
Adalberto Tripicchio, Ph D
"A biologia e o futuro da psicanálise: um novo referencial intelectual [para o Campo Psi]"
Eric R. Kandel, MD
"We must recollect that all of our provisional ideas in psychology will presumably one day be based on an organic substructure".
Sigmund Freud, "On Narcisism"
"The deficiencies in our description would probably vanish if we were already in a position to replace the psychological terms with physiological or chemical ones." We may expect (physiology an chemistry) to give most surprising information and we cannot guess what answers it will return in a few dozen years of questions we have put to it. They may be of a kind that will blow away the whole of our artificial structure of hypothesis".
Sigmund Freud, "Beyond the Pleasure Principle"
Este declínio é lamentável, já que ela continua a representar a visão mais coerente e intelectualmente satisfatória da mente humana. Caso a psicanálise queira recuperar seu poder e influência intelectual, precisará fazer mais do que responder às criticas hostis. Precisará também do envolvimento construtivo por parte daqueles que a valorizam e que privilegiam uma teoria sofisticada e realista da motivação humana. Tenho como propósito neste artigo sugerir uma forma de revigoramento da teoria psicanalítica que se dá através do desenvolvimento de uma relação próxima com a biologia em geral e com a neurociência cognitiva em particular.
Uma relação de maior proximidade com a psicanálise e a neurociência cognitiva pode proporcionar à psicanálise o alcance de dois objetivos: um conceitual e outro experimental. Do ponto de vista conceitual, a neurociência cognitiva pode prover a psicanálise de novos fundamentos para seu crescimento futuro, fundamentos talvez mais satisfatórios do que os provindos da metapsicologia. David Olds referiu-se a esta potencial contribuição da biologia como "reescrever a metapsicologia embasada numa fundamentação científica". Do ponto de vista experimental, os princípios biológicos poderiam servir como estímulo para a pesquisa, a fim de testar idéias específicas sobre o funcionamento mental.
Outros argumentaram que a psicanálise deveria se satisfazer com objetivos mais modestos, como esforçar-se por aproximar sua interação com a psicologia cognitiva, uma disciplina que tem uma relevância clínica mais direta e está mais intimamente relacionada com a psicanálise. Mesmo não pondo em dúvida essa posição, parece-me, entretanto, que o que é estimulante na psicologia cognitiva dos dias de hoje, e será ainda mais no futuro, é a fusão desta com a neurociência em uma única disciplina, chamada neurociência cognitiva. É minha esperança que, unindo-se à neurociência cognitiva no desenvolvimento de uma nova e instigante perspectiva da mente e de seus transtornos, a psicanálise poderá recuperar sua energia intelectual.
Uma interação significativa, do tipo que descrevo aqui, entre a psicanálise e a neurociência cognitiva exigirá um novo direcionamento da psicanálise e novas estruturas institucionais que a encampem. Portanto, o propósito desse artigo é descrever prováveis pontos de intersecção entre a psicanálise e a biologia e delinear como estas interações podem ser produtivamente investigadas.
O método psicanalítico e a concepção psicanalítica da mente
Antes de destacar os pontos concordantes entre a psicanálise e a biologia, é útil revisarmos alguns fatores que levaram à presente crise do pensamento psicanalítico, crise esta que resultou em boa parte da restrição de sua metodologia. Nesse sentido, três pontos são relevantes:
Em primeiro lugar, no início do século XX, a psicanálise introduziu um novo método de investigação psicológica baseado na associação livre e na interpretação. Freud nos ensinou a escutar cuidadosamente os pacientes de uma nova maneira nunca antes experimentada. Freud também criou um sistema provisório de interpretações para dar sentido a algo que, de outra maneira, apareceria como associações desconexas e incoerentes dos pacientes. Esta abordagem era tão singular e poderosa que por muitos anos, não apenas Freud, como também outros psicanalistas não menos inteligentes e criativos, poderiam argumentar que os encontros psicoterapêuticos entre pacientes e analistas proveriam um melhor contexto para a investigação. Na verdade, nos seus primórdios, a psicanálise fez muitas contribuições úteis ao nosso entendimento da mente, através da simples escuta dos pacientes, ou através da testagem das idéias provindas do setting analítico em estudos observacionais, um método que provou ser particularmente útil no estudo do desenvolvimento infantil. Esta abordagem pode ainda ser útil na clínica porque, como Anton Kris enfatizou, ouve-se diferentemente agora. Todavia, está claro que, como instrumento de pesquisa, este método particular perdeu muito de seu poder investigatório. Cem anos depois de sua introdução, há poucas novidades no campo da teoria que possam ser aprendidas apenas através de uma mera escuta atenta dos pacientes. Nós devemos, finalmente, reconhecer que neste ponto do moderno estudo da mente, a observação clínica de pacientes em um contexto psicanalítico está sujeita à parcialidade do investigador, e isso não é uma base suficiente para uma ciência da mente.
Essa perspectiva é compartilhada mesmo por profissionais experientes da comunidade psicanalítica. Assim, Kurt Eissler escreveu:
"O decréscimo do impulso da pesquisa psicanalítica não é devido a fatores subjetivos presentes entre os psicanalistas, mas a fatos históricos de significado mais amplo: a situação psicanalítica já deu tudo o que continha. Está esgotada quanto a possibilidades de pesquisa, ao menos até que possamos conceber novos paradigmas."
Em segundo lugar, como estes argumentos deixam claro, embora a psicanálise tenha sido historicamente científica em seus objetivos, raramente foi científica em seus métodos, ou seja, falhou durante anos em submeter suas suposições à testagem experimental. De fato, a psicanálise tem se saído tradicionalmente bem melhor em gerar idéias do que em testá-Ias. Como resultado desta falha, não foi capaz de progredir como o fizeram outras áreas da psicologia e da medicina.
As preocupações da moderna ciência comportamental em controlar a influência das particularidades do investigador através de experimentos "cegos" têm escapado ao largo das preocupações dos psicanalistas. Com raras exceções, os dados obtidos nas sessões psicanalíticas são privados: os comentários dos pacientes, associações; silêncios, posturas, movimentos e outros comportamentos são privilegiados. De fato, a privacidade da comunicação é ponto central para a confiança produzida pela situação psicanalítica. Aqui está o obstáculo. Na maior parte dos casos, nós temos somente a narrativa subjetiva do psicanalista sobre o que ele acredita haver acontecido. Como o pesquisador psicanalítico Hartvig Dah tem argumentado reiteradamente, evidências remotas como estas não são aceitas como dados na maior parte dos contextos científicos. Os psicanalistas, entretanto, raramente preocupam-se com o fato de que suas narrativas das sessões analíticas estejam fadadas a ser subjetivas e parciais.
Como resultado, o que Boring escreveu, aproximadamente há 50 anos, continua válido:
"Podemos dizer, sem faltar com a consideração com o que foi produzido, que a psicanálise tem sido pré-científica. Faltaram experimentos e não foram desenvolvidas técnicas de controle. No requinte da descrição sem controle, é impossível distinguir especificações semânticas dos fatos".
Em terceiro lugar, diferentemente de outras áreas da medicina acadêmica, a psicanálise apresenta um sério problema institucional. Os institutos psicanalíticos autônomos, que persistiram e proliferaram ao longo do século passado, desenvolveram suas próprias abordagens de pesquisa e de técnica que se diferenciaram de outras formas de pesquisa. Com algumas admiráveis exceções, os institutos psicanalíticos não forneceram aos seus estudantes ou membros, ambientes acadêmicos apropriados para a habilitação para bolsas de pesquisa empírica.
Para sobreviver como força intelectual na psicologia, medicina e na neurociência cognitiva, assim como na sociedade como um todo, a psicanálise precisará adotar novos recursos intelectuais, novas metodologias e novos planejamentos institucionais para levar adiante sua pesquisa. Várias disciplinas médicas cresceram através da incorporação de metodologias e conceitos de outras disciplinas. A psicanálise falhou amplamente em fazer o mesmo. Porque a psicanálise ainda não reconheceu a si mesma como um ramo da biologia, ela não incorporou, dentro da perspectiva psicanalítica da mente, os ricos resultados dos conhecimentos da biologia sobre o cérebro e a capacidade de controle do comportamento que ele exerce, surgidos nos últimos cinqüenta anos. Isto, é claro, levanta a seguinte questão: Por que a psicanálise não foi mais receptiva à biologia?
Em 1894, Freud referiu que a biologia não tinha avançado o bastante para ser útil à psicanálise. Ele pensou que era prematuro uni-Ias. Um século mais tarde, um significativo número de psicanalistas tem uma visão bem mais radical. A Biologia, argumentam, é irrelevante para a psicanálise. Para dar um exemplo, Marshall Edelson, em seu livro "Hypothesys and Evidence in Psychoanalysis", escreveu:
"Os esforços para vincular a teoria psicanalítica aos fundamentos neurobiológicos, ou combinar hipóteses sobre a mente e sobre o cérebro em uma estrutura só, deveriam ser evitados por representar expressões de uma confusão lógica. Eu não vejo razão em abandonar a posição de Reiser apesar de sua conhecida crença na "unidade funcional" da mente e corpo, quando ele considera a relação entre ambos:"
"A ciência da mente e a ciência do corpo usam linguagens diferentes, conceitos diferentes (com níveis diferentes de abstração e complexidade) e um diferente conjunto de técnicas e instrumentos. O estudo simultâneo e paralelo, do ponto de vista psicológico e fisiológico de um paciente em estado de ansiedade aguda, produz a necessidade de dois distintos conjuntos de dados descritivos, de medições e de formulações. Não há forma de unir essas duas ciências na tradução de uma linguagem comum, ou compartilhar um marco conceitual comum, nem são elas formadas por conceitos extensivos que poderiam servir… como intermediários ou isomórficos. Portanto, para todos os propósitos práticos, nós lidamos com os conhecimentos de mente e corpo como universos diferentes."
"Virtualmente, todos os nossos dados psicofisiológicos e psicossomáticos consistem na essência de dados covariantes, demonstrando coincidência de eventos em dois universos do conhecimento em um intervalo de tempo especifico e numa freqüência não casual ".
Penso que seja, no mínimo, possível que os cientistas possam finalmente concluir que aquilo que Reiser descreve não reflete apenas, metodologicamente, o estado atual das coisas, ou a inadequação do nosso pensamento, mas representa, por outro lado, algo que é logicamente ou conceitualmente necessário; algo que nenhum desenvolvimento prático ou conceitual poderá atenuar.
Em minhas diversas interações com Reiser, nunca percebi nele dificuldade alguma em relacionar o cérebro à mente. Contudo, concordo com muito do que Edelson afirma, pois seu ponto de vista é representativo do que é compartilhado por um número surpreendentemente grande de psicanalistas, até mesmo por Freud em seus últimos escritos. Essa perspectiva, várias vezes referida como hermenêutica em oposição à visão científica da psicanálise, reflete uma posição que tem dificultado a continuação do crescimento da psicanálise.
Bem, a psicanálise poderia, caso desejasse, facilmente acomodar-se nos seus lauréis hermenêuticos. Poderia continuar discorrendo sobre as notáveis contribuições de Freud e seus alunos, sobre os insights dos processos mentais inconscientes e suas motivações, que fazem com que sejamos os indivíduos complexos e singulares que somos. Decerto, no contexto dessas contribuições, poucos desafiariam a posição de Freud como o maior pensador moderno da motivação humana ou negariam que nosso século tem sido permanentemente marcado pela profunda compreensão freudiana das temáticas psicológicas que ocuparam a mente ocidental desde Sófocles até Schnitzier.
Mas, se a psicanálise se acomodar com suas descobertas passadas, permanecerá inevitavelmente, como Jonathan Lear e outros descreveram, uma filosofia da mente e a literatura psicanalítica – de Freud a Hartmann, a Erickson, a Winnicott – deveria ser lida como uma filosofia moderna ou texto poético ao lado de Platão, Shakespeare, Kant, Schopenhauer, Nietzsche e Proust. Por outro lado, se a disciplina almeja ser, como eu acredito que muitos psicanalistas o fazem, um contribuinte ativo na evolução da ciência emergente da mente, então, a psicanálise está ficando para trás.
Daí porque eu concordo com o sentimento expresso por Lear: "Freud está morto". Ele morreu em 1939, após uma produção extraordinária e uma vida criativa… é importante não ficarmos fixados nele como um sintoma rígido, seja para idolatrá-Io ou para denegri-Io.
A biologia a serviço da psicanálise
Meu foco neste artigo é em como a biologia pode revigorar a exploração psicanalítica da mente. Devo dizer, de saída, que embora esboçamos o quepoderia evoluir para uma significativa fundamentação biológica para apsicanálise, estamos recém nos primórdios deste processo. Ainda não temos uma compreensão satisfatória dos complexos processos mentais. Mesmo assim, a biologia tem feito progressos notáveis nos últimos cinqüenta anos, e os passos não estão diminuindo. Como os biólogos focalizaram seus esforços na compreensão do cérebro/mente, a maior parte deles está convencida de que a mente representará para a biologia do atual século XXI o que os genes representaram para a biologia do século XX. Desta forma, François Jacob escreveu: "O século XX, que está terminando preocupou-se com as proteínas e os ácidos nucleicos. O próximo se concentrará na memória e no desejo. Será ele capaz de responder às indagações que fazem?"
Minha idéia é de que a biologia do século vindouro está, de fato, apta a responder a algumas questões sobre memória e desejo e que estas respostas serão mais ricas e significativas se forjadas por um esforço sinérgico entre biologia e psicanálise. Ademais, respostas para estas questões e o próprio esforço de provê-Ias em conjunto com a biologia, irá fornecer uma base mais científica para a psicanálise.
Agora, é muito provável que a biologia faça profundas contribuições para a compreensão dos processos mentais, descrevendo a base biológica dos muitos processos inconscientes, como por exemplo, do determinismo psíquico, do papel dos processos mentais inconscientes na psicopatologia e do efeito terapêutico da psicanálise. Bem, mas a biologia não poderá iluminar imediatamente seus profundos e centrais mistérios. Estes temas representam, juntamente com a natureza do inconsciente, os problemas mais difíceis com que a biologia se confronta, na verdade que toda a ciência enfrenta. No entanto, já se pode esboçar as formas pelas quais a biologia poderá, pelo menos, clarificar alguns temas psicanalíticos centrais. Aqui, eu defino oito áreas em que a biologia poderia se unir à psicanálise para fazer contribuições importantes:
1) A natureza dos processos mentais inconscientes
2) A natureza da causalidade psicológica
3) Causalidade psicológica e psicopatoloógica
4) Experiência precoce e predisposição à patologia mental
5) O pré-consciente, o inconsciente e a córtex pré-frontal
6) Orientação Sexual
7) A psicoterapia e as mudanças estruturais na mente
8) A psicofarmacologia como tratamento combinado com a
psicanálise
É central, para a psicanálise, a idéia de que desconhecemos muito da nossa vida mental. A maior parte do que vivenciamos, do que percebemos, pensamos, sonhamos ou fantasiamos não pode ser diretamente acessada através do pensamento consciente. Da mesma forma, não podemos explicar o que freqüentemente motiva nossas ações. A idéia de processos mentais inconscientes, além de ser importante por si mesma, é decisiva para a compreensão da natureza do determinismo psíquico. Dado o papel central dos processos psíquicos inconscientes, como pode a biologia nos ensinar a compreensão de tais processos?
Em 1954, Branda Milner fez a notável descoberta, a partir de estudos de H.M., um paciente com amnésia, de que o Lobo Temporal Medial e o Hipocampo medeiam o que hoje denominamos armazenamento da memória declarativa (memória explícita), que corresponde à memória consciente de pessoas, objetos e lugares. Em 1962, ela foi mais longe, descobrindo que ainda que seu paciente não se recordasse conscientemente de suas memórias recentes sobre pessoas, lugares e objetos, ele era totalmente capaz de aprender novas habilidades motoras e perceptivas. Esse tipo de memória, denominada memória procedural ou memória implícita, é completamente inconsciente e se evidencia somente no seu desempenho e não nas recordações conscientes.
O uso simultâneo dos dois sistemas de memória consiste mais em regra do que em exceção. Esses dois sistemas de memória se justapõem e são comumente usados em conjunto, de forma que muitas tarefas de aprendizagem requerem ambos. De fato, repetições constantes podem transformar a memória declarativa em procedural. Por exemplo, o aprendizado de dirigir um automóvel envolve primeiramente lembranças conscientes, mas, após um determinado número de repetições, o ato de dirigir torna-se automático, consistindo-se em atividade motora inconsciente. A memória procedural constitui, por si mesma, um conjunto de processos que envolve diversos sistemas cerebrais diferentes: o ''priming'', ou reconhecimento de estímulos recentes, é uma função do córtex sensorial; a aquisição de estados emocionais diversificados envolve a amígdala; a formação de novos hábitos motores (e talvez cognitivos) requer o neostriatum; o aprendizado de novos comportamentos motores ou atividades coordenadas depende do cerebelo. Diferentes contextos e experiências de aprendizado recrutam diferentes subgrupos desses e outros sistemas de memória de procedimentos, em combinação variável com os sistemas de memória explícita do hipocampo e de outras estruturas afins.
Na memória procedural, temos um exemplo biológico de um componente da vida mental inconsciente. De que forma é que esse inconsciente biológico se relaciona ao inconsciente de Freud? Em seus últimos escritos, Freud usou o conceito de inconsciente de três formas diferentes. Primeiramente, ele usou o termo de uma forma especifica e estrutural para se referir ao inconsciente reprimido ou dinâmico. Este inconsciente corresponde ao que a literatura psicanalítica clássica refere como o inconsciente. Este inclui não apenas o id, como também parte do ego que contém impulsos, defesas e conflitos inconscientes, sendo, por isso, similar à dinâmica inconsciente do id. Nesse inconsciente dinâmico, as informações sobre conflitos e impulsos são impedidas de alcançar a consciência por poderosos mecanismos de defesa como a repressão.
Em segundo lugar, complementando as partes reprimidas do ego, Freud propôs que uma outra parte permanece inconsciente. Diferentemente das partes inconscientes do ego que se encontram reprimidas e, por esse motivo, assemelham-se ao inconsciente dinâmico, a parte inconsciente do ego não reprimida não está preocupada com os impulsos e conflitos inconscientes. Além disso, diferentemente do pré-consciente, essa parte inconsciente não é, de forma alguma, acessível à consciência, mesmo não estando reprimida. Desde que este inconsciente esteja relacionado a hábitos e habilidades motoras e perceptivas, ele se projeta na memória procedural. Devo, então, me referir a esta parte do inconsciente como inconsciente procedural.
Finalmente, Freud usou o termo, descritivamente, em um sentido mais amplo – pré-consciente/inconsciente – para referir-se a quase todas as atividades mentais, à maior parte dos pensamentos e memórias que alcançam a consciência. De acordo com Freud, o indivíduo não tem consciência de quase todos os processos e eventos mentais, mas pode ter pronto acesso à consciência de muitos deles através de um esforço de atenção. A partir dessa perspectiva, conclui-se que a maior parte da vida mental ocorre no plano inconsciente, podendo tornar-se consciente somente como percepções sensórias, tais como palavras e imagens.
Desses três processos mentais inconscientes, apenas o inconsciente procedural, a parte inconsciente do ego que não está em conflito ou reprimida, parece projetar-se no que os neurocientistas chamam de memória procedural. Esta correspondência importante entre a neurociência cognitiva e a psicanálise foi primeiramente reconhecida em um inspirado artigo de Robert Clyman, que relacionou a memória procedural ao contexto emocional e sua relevância para a transferência e tratamento. Essa idéia foi desenvolvida mais profundamente por Louis Sander, Daniel Stern e seus colegas do Boston Process of Change Study Group. Este grupo enfatizou que muitas das mudanças que se desenvolvem no processo terapêutico durante a análise não estão no campo da compreensão consciente e, sim, no campo dos comportamentos e conhecimentos não-verbais do inconsciente procedural. Para sintetizar essa idéia, Sander, Stern e colegas desenvolveram o conceito de que há momentos de significação que ocorrem na interação entre paciente e terapeuta – no contexto psicanalítico que representam o alcance de um novo grupo de memórias implícitas que permite, à relação terapêutica, progredir a um novo nível. Essa progressão não depende da compreensão consciente e não requer que o inconsciente se torne consciente. Ao invés disto, os momentos significantes, no entender dos autores, levam a mudanças comportamentais que aumentam o limite da ação das estratégias procedurais de ser e agir. O crescimento nessas categorias do conhecimento conduz a estratégias de ação que se refletem na forma com que a pessoa interage com outras, inclusive na transferência.
Marianne Goldbeneger expandiu essa linha de pensamento, enfatizando que o desenvolvimento moral também pode ser desenvolvido pelos meios procedurais. Salienta que as pessoas geralmente não se lembram, de forma consciente, das circunstâncias sob as quais assimilaram as regras morais que regem seus comportamentos; essas regras são adquiridas de forma quase automática, como as regras da gramática que regulamentam a língua nativa de qualquer pessoa.
Ilustrei a distinção entre memória procedural e declarativa, proveniente da neurociência cognitiva, a fim de enfatizar a utilidade, para o pensamento psicanalítico, de uma percepção fundamentalmente neurobiológica. Além disso, sugiro que, assim como na psicanálise, essas idéias biológicas são, até aqui, apenas idéias. O que a biologia pode oferecer é uma oportunidade de levá-Ias a um passo adiante. Agora, sabemos bem mais sobre os aspectos biológicos do conhecimento procedural incluindo algumas de suas bases moleculares.
Essa interessante convergência da psicanálise com a biologia na problemática da memória procedural confronta-nos com a tarefa de testar tais idéias de forma sistemática. Precisaremos examinar, a partir de ambas as perspectivas psicanalítica e biológica, a extensão dos fenômenos que agrupamos sob a rubrica de "memória procedural" e observar como eles se distribuem nos diferentes sistemas neurais. A partir disto, poderemos examinar nos estudos comportamentais, observacionais e de imagens, em que grau diferentes comportamentos de um dado momento significante ou diferentes momentos deste tipo recrutam um ou outro subsistema anatômico da memória procedural. Conforme essas idéias vão se tornando mais claras, podemos perceber que uma das primeiras limitações do estudo sobre os processos psíquicos inconscientes foi a falta da existência de uma metodologia para a observação direta. Todos os métodos de estudo dos processos inconscientes foram indiretos. Assim, a contribuição mais importante que a biologia pode agora fazer – com a sua habilidade de inferir sobre os processos mentais e com sua habilidade para estudar pacientes com lesões cerebrais em diferentes componentes da memória procedural – é modificar a base do estudo dos processos mentais inconscientes, desde a inferência indireta até a observação direta. Nesse sentido, poderemos ser capazes de determinar quais aspectos, psicanaliticamente relevantes da memória procedural, são mediados por cada um dos sistemas sub-corticais envolvidos. Além disso, métodos de imagens podem nos permitir discernir que sistemas cerebrais medeiam as duas outras formas de memória inconsciente: o inconsciente dinâmico e o pré-consciente.
Antes de voltar minha atenção ao inconsciente/pré-consciente e a sua possível relação com o córtex pré-frontal, desejo considerar três outros aspectos relativos ao inconsciente procedural: sua relação com o determinismo psíquico, com os processos mentais conscientes e com as experiências precoces.
Na perspectiva freudiana, os processos mentais inconscientes proporcionam uma explicação para o determinismo psíquico. A idéia fundamental do determinismo psíquico é que muito pouco, ou nada, na vida psíquica de alguém, ocorre por acaso. Cada evento psíquico, não importando se declarativo ou procedural, é determinado por um evento precedente. Deslizes verbais, pensamentos aparentemente sem sentido, piadas, sonhos, e todas as imagens relacionadas a cada sonho, precedem acontecimentos psicológicos e possuem um significado coerente com relação ao resto da vida psíquica de qualquer pessoa. O determinismo psíquico é igualmente importante na psicopatologia. Até mesmo sintomas neuróticos, não importando o quão estranho possam parecer ao paciente, têm um sentido na mente inconsciente relacionado a processos mentais anteriores. Estas conexões entre sintomas e processos mentais causais, ou entre imagens de um sonho e eventos relacionados, encontram-se obscurecidas pela operação de processos inconscientes dinâmicos e onipresentes.
O desenvolvimento de muitas idéias do pensamento psicanalítico e sua metodologia central, a associação livre, deriva do conceito de determinismo psíquico. O objetivo da associação livre é obter o relato, por parte do paciente, de todos os pensamentos que passam por sua mente, impedindo que exerça sobre eles qualquer grau de censura ou direcionamento. A idéia principal do determinismo psíquico é a de que qualquer fenômeno mental está causalmente relacionado a um precedente. Desta forma, Brenner escreveu:
"Na mente, como na natureza física ao nosso redor, nada acontece fortuitamente ou por acaso. Cada acontecimento psíquico é determinado por um precedente".
Embora não tenhamos um modelo biológico sofisticado do conhecimento psíquico explícito e declarativo, encontramos, na biologia, um ponto de partida satisfatório para a compreensão de como as associações se desenvolvem na memória procedural. Até onde os aspectos do conhecimento de procedimentos são relevantes para os momentos significativos, estes fundamentos biológicos devem provar ser úteis para o entendimento do inconsciente procedural.
Nas últimas décadas do século XIX, na mesma época em que Freud estava trabalhando em sua teoria do determinismo psíquico, Ivan Pavlov estava desenvolvendo uma abordagem empírica de um momento específico do determinismo psíquico, no nível do que hoje em dia denominamos conhecimento procedural, ou seja, a aprendizagem pela associação. Pavlov buscava a elucidação de uma característica essencial da aprendizagem que é conhecida desde a Antigüidade. Pensadores ocidentais desde Aristóteles tinham inferido que o armazenamento da memória requer a associação temporal de pensamentos contínuos, um conceito posteriormente desenvolvido sistematicamente por John Locke e pelos filósofos empiristas britânicos.
O mais brilhante empreendimento de Pavlov foi o desenvolvimento de um modelo animal de aprendizado por associação que poderia ser rigorosamente estudado em laboratório. Mudando o tempo entre dois estímulos sensórios e observando os efeitos desta mudança no comportamento de reflexo simples, Pavlov estabeleceu um procedimento no qual inferências razoáveis podiam ser feitas sobre como as mudanças na associação entre os dois estímulos poderiam levar a mudanças no comportamento – no aprendizado.
Desta forma, Pavlov desenvolveu paradigmas poderosos para o aprendizado por associação, que levaram a uma modificação permanente no estudo do comportamento, movendo-se de uma ênfase na introspecção para uma análise objetiva de estímulo-resposta. Este é exatamente o tipo de mudança que estamos buscando nas investigações psicanalíticas a respeito do determinismo psíquico. Descrevi este paradigma familiar porque desejo enfatizar três pontos relevantes para o pensamento psicanalítico. Primeiro: no aprendizado da associação entre dois estímulos, o sujeito não aprende simplesmente que um estímulo precede ao outro. Ao invés, ao aprender a associar dois estímulos, o indivíduo aprende que um vem a predizer o outro. Segundo, como veremos adiante, o condicionamento clássico é um paradigma soberbo para a análise de como o conhecimento pode se deslocar do plano inconsciente para o consciente. Finalmente, o condicionamento clássico pode ser usado para adquirir não somente respostas apetitivas como também aversivas, proporcionando-nos, assim, insights relacionados à emergência de psicopatologias. Agora, desenvolverei especificamente cada um destes pontos.
Por muitos anos, os psicólogos pensaram que o condicionamento clássico seguia as regras de um determinismo psíquico semelhante ao delineado por Freud. Pensavam que o condicionamento clássico dependia somente de contigüidade e de um intervalo crítico mínimo entre o estímulo condicionado e o não-condicionado, de tal forma que os dois eram vivenciados como conectados. De acordo com esta perspectiva, em cada período de tempo, um estímulo condicionado é seguido de um reforço ou estímulo não condicionado. Uma conexão neural é, assim, fortalecida entre o estímulo e a resposta ou entre um estímulo e outro, até que finalmente a conexão entre os dois se torna tão forte que é possível a mudança de comportamento.
A única variável relevante determinando a força do condicionamento pensava-se ser o número de pares de estímulos condicionados e incondicionados. Em 1969, Leon Kamin fez o que hoje é considerado de forma geral, a descoberta empírica mais significativa no campo do condicionamento desde os primeiros achados de Pavlov, na virada do século. Kamin constatou que os animais aprendem mais do que a contigüidade: aprendem também as contingências. Eles não aprendem simplesmente que o estímulo condicionado precede o não-condicionado, mas também que o estímulo condicionado prevê o estímulo não-condicionado. Deste modo, a aprendizagem associativa não depende de um número crítico de pares de estímulos condicionados e não-condicionados, mas do poder do estímulo condicionado de prever um não-condicionado biologicamente relevante.
Estas considerações sugerem o porquê dos animais e das pessoas adquirirem tão prontamente o condicionamento clássico. O condicionamento clássico, e talvez todas as formas de aprendizagem associativa, evoluiu filogeneticamente para capacitar o animal a distinguir acontecimentos que regularmente ocorrem juntos daqueles que estão associados somente pelo acaso. Em outras palavras, o cérebro parece ter desenvolvido um mecanismo simples que "dá sentido" a eventos do meio ambiente ao relacionar uma função preditiva a alguns desses eventos. Quais condições ambientais podem haver formado ou mantido um mecanismo comum de aprendizagem nas mais variadas espécies? Todos os animais devem ser capazes de reconhecer e evitar o perigo; eles precisam buscar gratificações como as provindas da nutrição e evitar a comida quando esta está deteriorada ou é tóxica. Uma forma efetiva de atingir esse conhecimento é adquirir a capacidade de detectar relações entre estímulos ou entre comportamentos e estímulos. É possível que, ao examinar essas relações em termos da biologia celular, podemos estar contemplando o mecanismo elementar do determinismo psíquico.
O condicionamento clássico convencional é usualmente realizado em uma forma denominada "condicionamento postergado", em que o início do estímulo condicionado precede tipicamente o início do estímulo não-condicionado por aproximadamente 500 mseg, e ambos os estímulos terminam juntos.
Essa forma de condicionamento é prototipicamente procedural. Quando um sujeito humano normal aprende uma resposta de piscar a partir de um leve estímulo táctil em sua sobrancelha, este sujeito não está consciente de que está sendo condicionado. Os pacientes com danos no hipocampo e no neocórtex temporal medial a quem, portanto, falta memória declarativa ou explícita, podem ser condicionados como os sujeitos normais, sob o paradigma do "condicionamento postergado" (delay conditioning).
Uma leve variação, o condicionamento de traço (trace conditioning), converte o condicionamento implícito em memória explícita. Com o condicionamento de traço, o estímulo condicionado termina antes do estímulo não-condicionado ocorrer, de forma que o estímulo condicionado é breve, havendo um intervalo de 500 mseg entre o fim do estímulo condicionado e o início do estímulo não-condicionado. Richard Thompson e colegas constataram que o condicionamento "trace" depende do hipocampo e está eliminado em experiências com animais que sofreram lesões do hipocampo. Clark e Squire ampliaram estes experimentos, estendendo-os aos humanos, constatando que o condicionamento determinado requeria lembrança consciente. Durante o processo de condicionamento de traço, sujeitos normais geralmente tornam-se conscientes do intervalo temporal que ocorre na relação entre o estímulo condicionado e o não-condicionado. Aqueles sujeitos que não tomam consciência deste intervalo não se condicionam. Além disso, essa tarefa não pode ser bem desenvolvida, por pessoas que sofrem de amnésia – provinda de um defeito na memória declarativa – resultante de lesões do Lobo Temporal Medial.
Desta forma, uma pequena modificação na seqüência temporal transforma o determinismo psíquico de inconsciente para consciente! Este fato é consistente com a idéia de que os dois sistemas de memória, declarativa e procedural, são freqüentemente acionados por uma tarefa comum e codificam diferentes aspectos do padrão sensório de estímulos (ou do mundo externo) apresentados ao sujeito. Em que local, no Lobo Temporal Medial, ocorre esta modificação de um tipo de armazenamento da memória para outra? Para Eichenbaum, o hipocampo tem a capacidade de associar eventos não contíguos no espaço e no tempo. De fato, agora sabemos que o condicionamento de traço aciona o hipocampo e os circuitos do Lobo Temporal Medial. Que partes do circuito do hipocampo são mais importantes para o condicionamento de traço? Há outras regiões envolvidas? O córtex pré-frontal (que deveremos considerar adiante) uma área relacionada à memória de trabalho, que é considerada representativa de um aspecto do pré-consciente-inconsciente – media associações entre as memórias inconscientes e conscientes, que são o sujeito da análise?
Vimos que um ponto de convergência entre a biologia e a psicanálise é o papel relevante da memória procedural para o desenvolvimento das primeiras noções morais, para a transferência e para os momentos significativos na psicoterapia psicanalítica. Consideramos um segundo ponto de convergência quando examinamos a relação entre as características associativas do condicionamento clássico e o determinismo psíquico. Quero agora ilustrar um terceiro ponto de convergência: aquele que se encontra entre o condicionamento para o medo, de Pavlov, uma forma de memória procedural mediada pela amígdala, a ansiedade sinal e a síndrome de stress pós-traumático nos humanos.
No início deste trabalho sobre o condicionamento clássico, Pavlov referiu que o condicionamento é apetitivo quando o estímulo não-condicionado é gratificante, mas o mesmo procedimento produzirá um condicionamento defensivo quando o estímulo não-condicionado for aversivo. A descoberta seguinte de Pavlov foi a constatação de que o condicionamento defensivo proporciona um modelo experimental particularmente interessante para o surgimento da ansiedade sinal, uma forma de medo aprendido que pode ser vantajosa.
"É bastante evidente que, sob condições naturais, animais normais respondem não apenas a estímulos que trazem benefício imediato ou causam danos, como também a outros agentes químicos ou físicos… que apenas sinalizam a aproximação destes estímulos; portanto, não é a visão ou som do predador que é em si mesmo perigosa a suas vítimas, mas seus dentes e garras".
Uma proposta similar foi feita, independentemente, por Freud. Devido ao fato dos estímulos dolorosos se encontrarem freqüentemente relacionados a estímulos neutros, simbólicos ou reais, Freud postulou que a repetição de estímulos neutros e nocivos pode fazer com que os estímulos neutros sejam percebidos como perigosos, provocando ansiedade. Contextualizando este postulado em termos biológicos, Freud escreveu:
"O indivíduo terá feito um avanço importante na sua capacidade de auto-preservação se puder prever situações traumáticas deste tipo que ocasionam desamparo, ao invés de simplesmente esperar que elas aconteçam. Chamemos a situação que contém o determinante para tal expectativa de situação perigosa. É a partir desta situação que é dado o sinal de ansiedade".
Assim, ambos, Pavlov e Freud, consideram que é biologicamente adaptativo possuir a habilidade de responder defensivamente a sinais de perigo antes de o perigo real estar presente. A ansiedade sinal ou antecipatória prepara o indivíduo para lutar ou fugir se estes sinais provêm do ambiente. Freud sugeriu que as defesas mentais funcionam como substitutos das ações reais de fuga, só que em resposta ao perigo interno. A ansiedade sinal, portanto, provê uma oportunidade para o estudo de como as defesas mentais são desencadeadas, de como o determinismo psíquico pode levar à psicopatologia.
Sabemos que a amígdala é importante para a memória emocionalmente carregada, como ocorre no condicionamento clássico do medo através da conjugação de um estímulo neutro com um choque. A amígdala coordena o fluxo de informações entre as áreas do tálamo e do córtex cerebral responsáveis pelo processamento dos estímulos sensoriais, e as áreas que processam a expressão do medo: o hipotálamo, que regula a resposta autonômica ao medo, e as áreas de associação Iímbicas neo-corticais (córtex pré-frontal e do cíngulo), o córtex pré-frontal e o córtex cingulado que estão envolvidos na avaliação consciente das emoções. LeDoux referiu que, na ansiedade, o paciente experimenta os estímulos autônomos como sinais de que algo ameaçador está acontecendo, um incremento mediado pela amígdala. LeDoux atribui a falta de consciência a um apagamento do hipocampo devido ao stress, um mecanismo que será considerado adiante. Agora, possuímos métodos excelentes de visualização destas estruturas em animais e humanos de forma experimental com o objetivo de abordar a questão de como estas conexões estão estabelecidas, e, uma vez estabelecidas, como são mantidas.
4. Experiência precoces e predisposição para a psicopatologia
A ansiedade sinal representa um exemplo simples de uma psicopatologia adquirida. Mas, como ocorre com todas as coisas adquiridas, algumas pessoas têm uma maior disposição constitucional que outras para desenvolver ansiedade neurótica. Quais fatores predisporiam um indivíduo a associar uma variedade de estímulos neutros com estímulos ameaçadores?
Em Luto e Melancolia e em outros de seus escritos, Freud enfatizou o papel de dois componentes na etiologia da psicopatologia adquirida. São eles: predisposições constitucionais (incluindo a bagagem genética) e experiências precoces (especialmente, perdas). De fato, existem evidências no desenvolvimento de muitas formas de doenças mentais para ambos os fatores; genéticos e experienciais (ambos, experiências do desenvolvimento, precoces e precipitantes agudos tardios). Como exemplo, enquanto há uma nítida contribuição genética à suscetibilidade à depressão, muitos pacientes com um quadro de depressão maior passaram por experiências estressantes durante sua infância como o abuso ou negligência, sendo estes estressores importantes na predição da depressão. O caso é ainda mais evidente na desordem ocasionada por stress pós-traumático (PTSD), que requer para seu diagnóstico a presença de uma experiência estressante tão grave que se encontra fora do limite das vivências humanas normais. Aproximadamente 30% dos indivíduos traumatizados desta forma desenvolvem subseqüentemente a síndrome completa. Esta penetrância incompleta levanta a seguinte indagação: que fatores, além da bagagem genética, predispõem ao desenvolvimento em algumas pessoas da PTSD e de outras perturbações relacionadas ao stress?
O componente referente às experiências precoces que demonstrou ser o mais importante nos casos humanos, na realidade, para todos os mamíferos, é o principal cuidador do bebê, normalmente a mãe. A psicanálise por muito tempo referiu que a maneira como ocorre a interação entre a criança e a mãe cria na mente da criança as primeiras representações mentais, não somente a respeito de outra pessoa, como também do estilo da interação em si, ou seja, do modelo de relacionamento entre elas. Esta(s) representação(s) inicial(is) das pessoas e relações é considerada relevante para o posterior desenvolvimento psicológico da criança. A interação ocorre em um fluxo recíproco. A forma com que o bebê se comporta com relação à mãe exerce influência considerável no comportamento dele. Um apego seguro entre mãe e criança acredita-se que favoreça um sentimento de aceitação de si e confiança básica nos outros, da mesma forma que um apego inseguro é reconhecido como promotor de ansiedade.
Uma das primeiras idéias-chave a emergir de ambos os estudos do desenvolvimento, cognitivo e neurobiológico, é de que o desenvolvimento dessas representações internas pode somente ser desencadeado durante um período precoce definido e crítico na vida infantil. Durante estes períodos críticos, e somente neles, a criança (e sua mente em desenvolvimento) deverá interagir com um ambiente responsivo (um ambiente em média previsível, nos termos de Heinz Hartmann), se o desenvolvimento de seu cérebro e de sua personalidade for satisfatório.
A primeira evidência da importância das relações precoces entre os pais e seus bebês partiu dos estudos de Anna Freud sobre os efeitos traumáticos das disfunções familiares durante a Segunda Guerra Mundial. Este tema foi desenvolvido mais profundamente por René Spitz, através de pesquisas comparativas entre dois grupos de crianças separadas de suas mães. Um dos grupos habitava uma Fundação para crianças abandonadas e era cuidado por enfermeiras, cada qual responsável por sete crianças, e outro grupo pertencia a uma creche vinculada a uma prisão feminina, onde as crianças eram cuidadas diariamente pelas mães. No final do primeiro ano, a performance motora e intelectual das crianças do orfanato caiu muito abaixo daquela das crianças da creche. Estas crianças eram retraídas e mostravam pouca curiosidade e alegria.
Harry Harlow levou este estudo ainda mais longe, elaborando um modelo animal para o desenvolvimento do bebê. Observou que, quando os macacos recém-nascidos eram isolados por um período de seis meses a um ano e depois retomados à companhia de outros macacos, eles se mantinham fisicamente saudáveis, mas apresentavam perturbações devastadoras em seus comportamentos. Estes macacos ficavam agachados no canto das suas jaulas e embalavam-se para trás e para frente como fazem as crianças autistas ou severamente perturbadas. Eles não interagiam com outros macacos, nem lutavam, brincavam ou mostravam qualquer interesse sexual. O isolamento de um animal em idade mais avançada por um período comparável não causava nenhum efeito destrutivo. Assim, nos macacos como nos humanos, foi constatado haver um período crítico para a socialização. Harlow posteriormente demonstrou que a síndrome poderia ser parcialmente revertida através da substituição da ausência da mãe por uma mãe postiça de madeira revestida com tecido. Esta substituta desencadeava o comportamento de apego no macaco isolado, mas era insuficiente para que ocorresse o desenvolvimento completo da socialização. A socialização completa normal poderia apenas ser resgatada se, além da mãe substituta, o animal isolado tivesse tido contato, por algumas horas durante o dia, com macaquinhos normais que ficavam o resto do dia na colônia dos macacos.
O trabalho de Anna Freud, Spitz e Harlow foi relevantemente desenvolvido por John Bowlby, que começou a pensar a interação entre a criança e seus cuidadores em termos biológicos. Bowlby formulou a idéia de que a criança indefesa mantém a proximidade ao seu cuidador através de um sistema de padrões de responsividade emocional e comportamental, denominando-o sistema de apego. A concepção de Bowlby sobre o sistema de apego era de um sistema inato instintivo ou motivacional, similar a sede ou fome, responsável pela organização dos processos de memória da criança e pelo seu direcionamento na busca de proximidade e comunicação com a mãe. A partir de um ponto de vista evolucionista, o sistema de apego claramente aumenta as chances de sobrevivência da criança, pois permite ao cérebro imaturo o uso das funções maduras dos pais para organizar seus próprios processos vitais. O mecanismo de apego de uma criança é espelhado nas respostas sensíveis dos pais aos sinais dela. As respostas parentais servem tanto para amplificar como para reforçar os estados emocionais positivos da criança e atenuar os estados negativos, ao proporcionar à criança segurança quando ela está frustrada. Estas experiências repetidas tornam-se codificadas na memória procedural como expectativas que ajudam a criança a sentir-se segura.
Deve ser observado que, durante os 2 a 3 primeiros anos de vida, quando a interação da criança com sua mãe é particularmente importante, a criança depende primeiramente de sua memória procedural. Tanto em animais usados para experimentação, como nos humanos, a memória declarativa se desenvolve em um período posterior. Assim, a amnésia infantil, que resulta no pouco acesso a memórias da primeira infância após a vivência desta, é evidente não somente nos seres humanos, como também em outros mamíferos, incluindo roedores.
Esta amnésia, presumivelmente, não é devida à repressão das lembranças do período da resolução do complexo edípico, mas tem como causa o desenvolvimento vagaroso do sistema da memória declarativa.
Bowlby descreveu a resposta à separação como ocorrendo em duas fases: protesto e desespero. Fenômenos que perturbam a proximidade da criança ao objeto de apego produzem primeiramente protesto observado em comportamentos como o agarramento, comportamento de seguir, buscar, chorar e excitação fisiológica aguda com duração de minutos a horas. Estes comportamentos servem para restaurar a proximidade. Quando o contato é restabelecido, estes comportamentos de agarramento são extintos, segundo Bowlby, por um mecanismo de feedback. Então, são ativados sistemas de comportamento alternativos principalmente exploratórios. Se a separação é prolongada, o desânimo (desespero) gradualmente toma o lugar daquelas respostas precoces, à medida que a criança reconhece que a separação pode ser prolongada ou permanente. Os comportamentos de ansiedade e fúria são substituídos por tristeza e desesperança. Enquanto o protesto é concebido como adaptativo pelo aumento da probabilidade de pais e crianças se encontrarem novamente, pensa-se que a desesperança pode preparar a criança para a sobrevivência passiva por períodos prolongados de tempo, através da conservação da energia e afastamento do perigo.
Devemos a Levine e seus colegas, Ader, Grota e Hofer, a descoberta de que sistemas similares de apego existem nos roedores. A extensão desta pesquisa para o modelo com os roedores, que é bem mais simples, embora continue no campo dos mamíferos, é extremamente relevante e poderosa. Por exemplo, nos ratos, os genes podem ser expressos ou suprimidos, o que permite uma abordagem poderosa da relação de genes individuais com o comportamento. Levine verificou que filhotes de ratos demonstram protesto imediato à separação. Os filhotes emitem vocalizações de alta intensidade, comportamentos de busca agitada e de asseio (lamber seus próprios pêlos). Se a mãe falha em retornar e a separação continua, os comportamentos de protesto dominam por um período de horas, para após serem substituídos por uma quantidade de comportamentos mais vagarosos, semelhantes à desesperança, como tornar-se menos alerta e responsivos. Estes comportamentos são observáveis fisiologicamente pela redução do batimento cardíaco e temperatura corporal. Assim como o trabalho de Harlow foi capaz de delinear os componentes do cuidador que eram essenciais para o desenvolvimento normal do caráter, também Hofer demonstrou três aspectos diferentes dos comportamentos padrões de respostas protesto/acomodação que eram desencadeados por três reguladores ocultos na interação mãe/filho: falta de calor, falta de alimento e falta de estimulação táctil.
Levine e seus colegas foram os primeiros a levar essas análises ao nível molecular, estudando a forma com que os muitos graus de apego infantil afetavam a habilidade de resposta ao stress. Hans Selye salientou já em 1936 que tanto humanos quanto animais experimentais respondiam a experiências estressantes ativando o eixo hipotalâmico-hipofisário-suprarrenal (HHS). O produto final do sistema HHS é a liberação de hormônios glicocorticóides pela glândula suprarrenal. Estes hormônios servem como importantes reguladores da homeostase – do metabolismo intermediário, tônus muscular e função cardiovascular. Juntamente com as catecolaminas liberadas pelo sistema nervoso autônomo e pela medula da suprarrenal, a secreção de glicocorticóides é essencial para a sobrevivência frente ao stress.
Daí a razão porque Levine levantou a seguinte questão: poderia a resposta a longo prazo do sistema HHS ser modulada pela experiência? E, se possível, seria particularmente sensível a experiências precoces? Levine descobriu que, quando, ao longo das duas primeiras semanas de vida, os filhotes eram separados de suas mães por apenas alguns minutos, estes demonstravam um aumento de vocalização, que desencadeava o aumento do cuidado maternal. As mães respondiam lambendo, limpando e carregando estes filhotes com mais freqüência do que fariam se estes não tivessem sido removidos. Este aumento de grau dos comportamentos de apego materno foi capaz de reduzir, para o resto da vida do filhote, os níveis de resposta de glicocorticóide a uma variedade de estressores! Concomitantemente, isto reduziu o medo e a vulnerabilidade a doenças relacionadas ao stress. No entanto, quando, durante o mesmo período de tempo, os filhotes eram separados de suas mães por períodos de tempo mais prolongados (3 a 6 horas por dia, durante duas semanas), ocorreu uma reação oposta. Neste caso, as mães ignoraram os filhotes, e estes demonstraram um aumento de ACTH e glicocorticóides no plasma, iguais às respostas adultas ao stress. Assim, diferenças nas interações mãe-bebê – diferenças que estão dentro do espectro dos comportamentos maternos que ocorrem normalmente – constituem fatores cruciais de risco para a futura resposta do indivíduo ao stress. Aqui, temos um exemplo notável de como as experiências precoces alteram a regulagem das respostas biológicas ao stress.
Estudos desenvolvidos por Charles Nemeroff e Paul Plotsky verificaram que estas experiências precoces adversas resultavam no aumento da expressão do gene sintetizador do fator de liberação de corticotrofina (CRF), o hormônio liberado no hipotálamo para desencadear a resposta HHS. A separação diária materna durante as duas primeiras semanas de vida está associada, nos ratos, com o profundo e persistente aumento na expressão do RNA mensageiro para o CRF, não somente no hipotálamo, mas também nas áreas límbicas que incluem a amígdala e o núcleo da base terminal do striatum.
Entretanto, a compreensão dos fatores biológicos com relação à teoria do apego não parariam por aqui. Bruce McEwen, Robert Sapolsky e seus colegas descobriram que o aumento dos glicocorticóides que se segue à separação da mãe tem efeitos adversos no hipocampo. Há dois tipos de receptores para os glicocorticóides: tipo 1 (receptores mineralocorticóides) e tipo 2 (receptores glicocorticóides). O hipocampo constitui um dos poucos locais no cérebro que possui ambos! Assim, experiências estressantes repetidas (ou exposição a altos níveis de glicocorticóides por mais de algumas semanas) causam a atrofia dos neurônios do hipocampo, reversíveis quando o stress ou a exposição aos glicocorticóides é interrompida. No entanto, quando o stress ou a exposição ao alto índice de glicocorticóide é prolongada por muitos meses ou mesmo anos, ocorrem danos permanentes, resultando em perda dos neurônios do hipocampo. Como podemos prever a partir do papel central do hipocampo na memória declarativa, ambos os casos (atrofia reversível ou dano permanente) resultam no enfraquecimento da memória. Este déficit na memória pode ser detectado no nível celular. Isto se torna evidente no enfraquecimento do processo chamado potenciação de longo prazo (Long-term Potentiation), um mecanismo intrínseco considerado como crítico para o fortalecimento das conexões sinápticas relacionadas à aprendizagem.
Assim, o que pode inicialmente parecer repressão pode vir a ser, na verdade, uma amnésia verdadeira: danos no sistema do lobo temporal medial do cérebro.
Este conjunto de experimentos tem um significado profundo na relação dos processos inconscientes precoces com os processos posteriores conscientes. Experiências estressantes no início da vida ocasionadas pela separação da criança de sua mãe produzem uma reação na criança que é armazenada primeiramente na memória procedural, o único sistema bem diferenciado de memória que a criança possui neste estágio da vida. Porém, a ação do stress na memória procedural lidera um ciclo de transformações que tem como conseqüência o dano do hipocampo e, por meio deste, uma modificação persistente na memória declarativa.
Este modelo em roedores tem relevância clínica direta. Pacientes portadores da Síndrome de Cushing produzem glicocorticóides acima do nível normal como resultado de um tumor na glândula suprarrenal, na glândula hipófise, ou na parte do hipotálamo que controla a hipófise. Starkman e seus colegas estudaram estes pacientes e verificaram que aqueles que haviam tido a doença por mais de um ano apresentavam atrofia seletiva do hipocampo e perda de memória. Atrofia e perda de memória similares parecem ocorrer no stress pós-traumático. Bremner e colegas constataram que pacientes com PSTD (transtorno de stress pós-traumático) relacionada aos combates, apresentavam déficits na memória declarativa, assim como a redução de 8% no volume do hipocampo direito. Aqui, entretanto, a atrofia e perda de memória não são secundárias ao aumento de glicocorticóides, mas ocorrem devido a outros mecanismos, visto que nestes pacientes o nível de glicocorticóides encontra-se mais baixo que o normal.
Na década de 70, Sachar, pela primeira vez, demonstrou que fenômenos similares ocorriam no eixo hipotalâmico-hipofisário de pacientes com depressão. Mais de 50% dos pacientes deprimidos demonstraram ter níveis elevados de glicocorticóides. Estudos subseqüentes demonstraram que a elevação dos glicocorticóides encontrava-se relacionada ao decréscimo no número de receptores destes e com a resistência à supressão do cortisol pela dexametasona. Consistente com os dados dos roedores, pacientes com depressão apresentam redução significativa no volume do hipocampo e uma elevada perda de memória declarativa.
Nemeroff e colegas verificaram que, em pacientes deprimidos, a secreção de CRF apresenta-se significativamente elevada. Este fato sugeriu a idéia interessante de que, em pacientes deprimidos, os neurônios secretores de CRF no cérebro encontram-se hiperativos. Consistente com essa idéia, quando o CRF é injetado diretamente no sistema nervoso central de mamíferos, este produz muitos sinais e sintomas característicos da depressão. Dentre estes, encontram-se a diminuição do apetite, alteração da atividade do sistema nervoso autônomo, diminuição da libido e perturbações do sono. Com base nas evidências de que experiências desfavoráveis precoces na vida aumentam a probabilidade de uma pessoa sofrer depressão ou outros distúrbios específicos de ansiedade na vida adulta, Nemeroff sugeriu que esta vulnerabilidade é mediada, provavelmente, pela hipersecreção de CRF.
Este entendimento pode ter diversas aplicações. A primeira é o desenvolvimento de modelos animais progressivamente mais refinados para aqueles fatores que predispõem ao stress e à depressão. Esses modelos podem permitir a identificação destes fatores em animais experimentais e, talvez, no futuro, até mesmo em humanos dos genes ativados pelo CRF e que predispõem à ansiedade. Em segundo lugar, a pesquisa estratégica de medicamentos que bloqueiam a ação do CRF pode vir a provar ser útil para certos tipos de depressão. Finalmente, poderemos ser capazes de acompanhar as respostas dos pacientes à terapia através de imagens do hipocampo e de observar o grau de mudanças anatômicas que são interrompidas, ou mesmo revertidas e, até mesmo, ver de que forma a resposta à psicoterapia está relacionada aos níveis de CRF e glicocorticóides.
Até agora só consideramos o inconsciente implícito. Mas quanto ao inconsciente pré-consciente, relacionado a todas as memórias e pensamentos capazes de acesso à consciência e quanto ao inconsciente reprimido? Temos motivos para acreditar que aspectos do inconsciente pré-consciente podem ser mediados pelo córtex pré-frontal. Talvez o argumento mais forte seja de que o córtex pré-frontal esteja envolvido em trazer uma variedade de conhecimentos explícitos para o domínio consciente. O córtex pré-frontral de associação tem duas funções principais:
. Integrar a informação sensorial
. Conectá-Ia ao movimento planejado
Nas quase três últimas décadas, tornou-se claro que o córtex pré-frontal serve como um componente de um sistema que tem um papel importante no armazenamento da informação de curto-prazo, incluindo as informações armazenadas ou relembradas a partir da memória declarativa. Esta idéia emergiu a partir de descoberta de que lesões no córtex pré-frontal produzem um déficit específico no componente de curto prazo da memória explícita, chamada memória de trabalho. O psicólogo cognitivo Alan Baddeley, que desenvolveu a idéia da memória de trabalho, sugeriu que este tipo de memória integra as percepções de momento a momento ao longo do tempo, exercita-as e combina-as com informações armazenadas sobre experiências, ações ou conhecimentos passados. Este mecanismo de memória é crucial para muitos aspectos aparentemente simples da vida cotidiana, como entabular uma conversação, dirigir um automóvel ou somar uma lista de números. A idéia de Baddeley foi desenvolvida mais profundamente em experimentos neurobiológicos por Joaquin Fuster e Patricia Goldman-Rakic, que sugeriram, pela primeira vez, que alguns aspectos da memória de trabalho encontram-se representados na associação do córtex pré-frontal e de que a lembrança de qualquer informação explícita da memória – a passagem do pré-consciente para o consciente requer a mediação da memória de trabalho. Uma predição possível de ser feita, a partir deste achado, é que no condicionamento de traço, o estímulo não condicionado pode ativar o sistema de memória de trabalho do córtex pré-frontal dorso lateral. Este, conseqüentemente, agirá, geralmente, junto com o hipocampo, submetendo à consciência o processo associativo que, não fosse assim, seria procedural. Estudos clínicos de pacientes com lesões sugerem que o córtex pré-frontal também parece representar alguns aspectos dos julgamentos morais; ele governa, ao mesmo tempo, nossa habilidade de planejar de forma inteligente e responsável. Isto leva à interessante possibilidade de que a lembrança do conhecimento explícito pode depender de uma avaliação adaptativa e realista da informação a ser recordada. Neste sentido, o córtex pré-frontal poderia, como sugeriu Solms, estar envolvido, por um lado, com as funções executivas que a psicanálise atribui ao ego e, por outro, com o superego.
6. Orientação sexual e a biologia dos impulsos
Freud concebia os impulsos como os componentes energéticos da mente. Um impulso, argumentava, conduz a um estado de excitação ou tensão, um estado chamado atualmente de estado motivacional pelos psicólogos cognitivos. Os estados motivacionais impulsionam a ação com o objetivo de reduzir a tensão.
Muito cedo em sua carreira, talvez influenciado por Havelock Ellis, Magnus Hirschfeld e Richard Krafft-Ebing, Freud acreditou que a orientação sexual de uma pessoa era significantemente influenciada por processos natos do desenvolvimento e que todos os humanos eram constitucionalmente bissexuais. Esta bissexualidade constitucional era um fator chave na homossexualidade feminina e masculina. Mais tarde, no entanto, ele veio a pensar na orientação sexual como uma característica adquirida. Freud pensava especialmente na homossexualidade masculina como representação de um fracasso no desenvolvimento sexual normal, uma falha na adequada separação do menino de sua mãe, mantendo um intenso vínculo sexual com ela. Como resultado, o menino, já crescido, identificar-se-ia com ela e procuraria fazer seu papel na tentativa de provocar o renascimento da relação que existia entre ambos. Freud propôs que a incapacidade do menino de separar-se de sua mãe podia ser o resultado de diversos fatores, incluindo uma relação extremamente próxima com uma mãe possessiva e um pai fraco, ausente ou hostil. Em termos de suas três fases do desenvolvimento psicossexual, Freud via a homossexualidade masculina, com ênfase no intercurso anal, como uma incapacidade de progredir normalmente da fase anal para a genital. A homossexualidade feminina estava definida de forma menos clara na mente de Freud, mas ele pensava nela como uma imagem em espelho do processo que destacou na homossexualidade masculina. Freud também via um componente homossexual latente na paranóia, no alcoolismo e na drogadição.
A perspectiva de Freud sobre a sexualidade está agora fazendo, no mínimo, 50 anos de idade, e em alguns casos, perto de 90. Algumas visões sobre a sexualidade, foram, compreensivelmente, abandonadas, graças ao pensamento psicanalítico moderno e todas foram modificadas. Entretanto, eu as relato, não para manter Freud ou a comunidade psicanalítica responsáveis por idéias ultrapassadas, mas para ilustrar que qualquer insight clínico ou psicológico da sexualidade, não interessando se atual, com toda a certeza pode ser mais esclarecido por melhores compreensões biológicas da identificação de gênero e orientação sexual, ainda que no momento saibamos pouco. À medida que a homossexualidade tem se tornado mais abertamente aceita pela maioria da sociedade, vêm ocorrendo discussões polêmicas na comunidade homossexual, na comunidade psicanalítica e na sociedade sobre o grau com que a orientação sexual é inata ou adquirida. A observação de Freud e de outros analistas de que alguns homossexuais tendem a lembrar seus pais como hostis ou distantes e suas mães como mais próximas que o comum tem tido confirmações recentes.
Apesar disto, outros estudos sugerem uma contribuição genética à orientação sexual. Esta é uma área complexa, porque gênero genotípico, fenotípico, assim como identificação de gênero e orientação sexual, são distintos uns dos outros, porém inter-relacionados. De fato, o reconhecimento desta complexidade pode conferir a termos-padrão como masculino, feminino, macho, fêmea, certa imprecisão e necessidade de esclarecimento.
O gênero genotípico é determinado pelos genes, enquanto o gênero fenotípico é definido pelo desenvolvimento da genitália externa e interna. A identificação de gênero é mais sutil e complexa e refere-se à percepção subjetiva que alguém possui de seu sexo. Finalmente, a orientação sexual refere-se à preferência por parceiros sexuais. Os fatores que contribuem aos vários aspectos do gênero ainda não foram completamente entendidos, mesmo assim os discuto porque, historicamente, esta é uma área que tem sido central para a psicanálise, pois, desde que a dicotomia natureza/cultura tem sido confrontada repetidamente pela biologia e, algumas vezes, esclarecida, penso que nesta área a biologia pode contribuir significativamente. Embora a identificação de gênero e a orientação sexual sejam complexas e tenham feições que são distintamente humanas, podendo não ser acessíveis à experimentação animal, muitos outros aspectos do comportamento sexual são similares aos comportamentos de fome e sede – tão essenciais à sobrevivência, que se encontram extremamente conservados entre os mamíferos, envolvendo sistemas cerebrais e hormonais comuns, e até mesmo comportamentos estereotipados. Em função disto, temos aprendido muito sobre os controles neurais dos hormônios e comportamentos sexuais dos estudos experimentais com animais como ratos e camundongos.
O desenvolvimento embrionário das gônadas, no seu início, é idêntico em machos e fêmeas. O gênero genotípico é determinado por um complemento individual dos cromossomos sexuais: fêmeas têm dois cromossomos X, enquanto os machos têm um X e um Y. O fenótipo de gênero dos machos é determinado por um único gene, chamado fator determinante dos testículos, no cromossomo Y. Este gene inicia a transformação da gônada bissexual primitiva no testículo, que produz testosterona: na ausência deste fator, a gônada se desenvolve em um ovário e produz estrogênio. Todas as outras características sexuais fenotípicas resultam dos efeitos dos hormônios das gônadas em outros tecidos. De interesse particular, tanto para biólogos como para psicanalistas, é que o dimorfismo sexual se estende ao cérebro e daí para o comportamento.
O comportamento de machos e fêmeas difere, mesmo antes da puberdade. Como muitos aspectos da sexualidade são conservados entre todos os mamíferos, os comportamentos sexuais relevantes para a sexualidade humana podem ser estudados em primatas e até mesmo em roedores. Macacos machos jovens jogam e brincam de forma barulhenta (esculhambação) com mais freqüência do que as fêmeas, uma diferença relacionada aos níveis de testosterona. Meninas que foram expostas, no período pré-natal, a altos níveis de andrógenos, como resultado da hiperplasia suprarrenal congênita, preferem o mesmo tipo de brinquedo dos meninos. Parece provável que as diferenças sexuais nos comportamentos lúdicos sejam influenciadas, ao menos parcialmente, pelos efeitos organizacionais do nível de andrógenos pré-natais.
O nível da testosterona apresenta outros efeitos dramáticos no comportamento. Ratos machos que foram castrados antes, ou logo após o nascimento, falham quando adultos em demonstrar o comportamento típico masculino de "montar" (sexualmente) na presença de fêmeas receptivas, mesmo se Ihes for administrado testosterona. Além disso, se a estes ratos for administrado estrógeno e progesterona na vida adulta, imitando a situação hormonal das fêmeas adultas, eles apresentam a mesma postura, sexualmente receptiva típica de fêmeas no cio. Se a castração é feita alguns dias após o nascimento, nenhum destes efeitos ocorrem. Assim, da mesma forma que as habilidades perceptivas e de coordenação motora, o comportamento sexual típico é estruturado durante um período crítico, em torno do nascimento, mesmo que o comportamento propriamente dito não apareça até bem mais tarde.
As diferenças sexuais no comportamento, na medida em que manifestam diferenças nas funções cerebrais, devem, ao menos em parte, resultar de diferenças sexuais estruturais do sistema nervoso central. Uma possível localização anatômica para estas diferenças é o hipotálamo, que está comprometido com o comportamento sexual como também com uma variedade de outros impulsos homeostáticos. A estimulação elétrica do hipotálamo intacto de ratos e macacos Rhesus geram comportamentos tipicamente sexuais. Biólogos verificaram uma diferença dimórfica impressionante na área medial pré-óptica do hipotálamo em roedores. Neste ponto, há quatro grupos funcionais de neurônios desconhecidos em sua função, chamados, desde então, de núcleos intersticiais do hipotálamo anterior (INAH-1 a INAH-4). Um destes núcleos, INAH-3, é cinco vezes maior no rato macho do que na fêmea. Muitas células nestes núcleos morrem durante o desenvolvimento feminino; estas células são salvas nos filhotes machos pela circulação de testosterona e podem ser recuperadas nas fêmeas através de injeções de testosterona durante as janelas críticas do desenvolvimento.
Também podemos ver características do dimorfismo nos diferentes graus de espessura das várias regiões do cérebro no córtex de ratos. Por exemplo, há uma maior assimetria nos machos: a espessura do lado esquerdo do córtex do rato macho é maior do que do direito. Talvez como conseqüência, o joelho do corpo caloso contém um número maior de neurônios na fêmea. Outras regiões do cérebro também apresentam dimorfismo sexual, e sem dúvida há muito mais a ser descoberto.
A verificação de uma base biológica para o genótipo e fenótipo de gênero coloca a seguinte questão: qual é a base biológica para a orientação sexual? Para começar, é óbvio que o desenvolvimento do gênero é multifatorial, de forma que a etiologia da orientação sexual deve ser também multifatorial. Presumivelmente, esta é determinada por hormônios, genes e fatores ambientais. É quase certo que um traço comportamental, como a orientação sexual, não é causado por um simples gene, uma única alteração em um hormônio, ou na estrutura cerebral, ou uma experiência única de vida. O progresso contínuo nos estudos sobre as características do dimorfismo sexual irá, sem dúvida, ajudar os psicanalistas a melhor compreender a identidade de gênero e a orientação sexual.
Os estudos na área da anatomia sobre a orientação sexual estão apenas começando. Precisaremos de muito mais informação antes de nos sentirmos confiantes para publicar achados sobre as diferenças anatômicas. No momento, estes devem ser considerados como possibilidades interessantes. Simon LeVay, obteve cérebros de homens homossexuais e de, presumivelmente, homens heterossexuais, todos mortos pela AIDS, assim como cérebros de mulheres. O INAH3, o mais proeminente dos núcleos sexuais dimórficos presentes no hipotálamo dos ratos, encontrava-se, em média, de duas a três vezes maior nos homens presumivelmente heterossexuais do que nas mulheres. Entretanto, nos homossexuais, o INAH3 encontrava-se, em média, do mesmo tamanho que nas mulheres. Nenhum dos outros três núcleos de INAH demonstraram diferenças entre os grupos. Além dos problemas potenciais da amostra estudada, não é possível, com base na observação de LeVay, determinar se estas diferenças estruturais estavam presentes no nascimento, ou se influenciaram os homens a tornar-se homossexuais ou heterossexuais, ou ainda se o dimorfismo é resultado de diferenças no comportamento sexual. Mas, com melhores amostras e os desenvolvimentos nas técnicas de visualização dos exames cerebrais, talvez seja possível responder a estas questões.
Allen e Gorski encontraram outra diferença entre homo e heterossexuais na comissura anterior, um atalho entre os lados direito e esquerdo do cérebro que é geralmente maior na mulher do que no homem. Allan e Gorski verificaram que a comissura anterior se encontrava, em média, maior nos homossexuais do que nos heterossexuais. Na verdade, ela é maior nos homossexuais do que nas mulheres.
Outra questão, que está sendo abordada atualmente, é se a orientação sexual é inata ou adquirida. A orientação sexual parece sofrer a influência dos genes, e esta influência é, como poderia se esperar, complexa. A orientação sexual é um fator familiar. Se uma pessoa é homossexual, as chances de um gêmeo ser também homossexual, cresce significativamente. Em casos de gêmeos monozigóticos, indivíduos que possuem os mesmos genes, o índice de equivalência é de 50%. Para gêmeos dizigóticos, o índice é de 25%. Em contraste, a incidência da homossexualidade masculina na população em geral é menor do que 10%. Para a homossexualidade feminina, a relação genética é mais fraca; aproximadamente 30% em gêmeos monozigóticos e 15% em dizigóticos. Estes números parecem, de certa forma, similares àqueles de outros traços complexos, indicando que ambos, fatores genéticos e nãogenéticos, são importantes e operantes.
Como estes achados são recentes, sua consistência nos diversos grupos de pessoas, tanto heterossexuais quanto homossexuais, ainda está sendo questionada. Porém, os métodos estão disponíveis para o estabelecimento da existência ou não de diferenças anatômicas confiáveis entre pessoas de distintas orientações sexuais. Como havia sugerido antes, estes achados poderão influenciar, enormemente, o pensamento psicanalítico sobre a dinâmica da orientação sexual.
Trabalhos experimentais recentes em animais indicam que a memória de longo prazo leva a alterações na expressão dos genes e a alterações anatômicas subseqüentes no cérebro. Mudanças anatômicas no cérebro ocorrem ao longo da vida e provavelmente moldam as habilidades e o caráter dos indivíduos. A representação das partes do corpo no córtex cerebral das áreas motoras e sensoriais depende do uso e, assim, das experiências particulares de cada um. Edward Taub e seus colegas escanearam os cérebros de instrumentistas de cordas. Durante as performances, instrumentistas de cordas estão constantemente engajados em hábeis movimentos de mão. O segundo até o quinto dedo da mão esquerda, que entram em contato com as cordas, são manipulados individualmente, enquanto os dedos da mão direita, que movimentam o arco, não expressam movimentos tão diferenciados. Imagens cerebrais destes músicos revelaram que seus cérebros eram diferentes dos cérebros dos não músicos. Especificamente, a representação cortical dos dedos da mão esquerda, mas não da direita, era maior nos músicos.
Tais mudanças estruturais são adquiridas mais prontamente nos primeiros anos de vida. Assim, Johann Sebastian Bach era Bach não somente porque tinha os genes certos, mas provavelmente também porque começou a praticar habilidades musicais em um tempo em que seu cérebro era mais sensível a ser modificado pela experiência. Taub, e colegas, verificou que músicos que aprenderam a tocar seus instrumentos pela idade de 12 anos tinham uma representação cerebral maior dos dedos na mão esquerda, a mão mais importante no tocar, do que aqueles que começaram mais tarde na vida.
Estas constatações levantam uma questão central para a psicanálise: A terapia pode trabalhar desta maneira? Caso positivo, onde ocorrem as mudanças induzidas pela psicoterapia? As mudanças estruturais terapeuticamente operam nos mesmos locais do cérebro alterados pelas desordens mentais, ou estas mudanças, terapeuticamente induzidas, causam modificações compensatórias independentes em outros locais inter-relacionados?
Mudanças de longa duração nas funções mentais envolvem alterações na expressão genética. Assim, no estudo de mudanças específicas que subjazem estados mentais persistentes, tanto normais quanto perturbados, deveríamos também procurar por alterações da expressão genética. Como a expressão alterada de genes conduziria a alterações de longa duração dos processos mentais? Os estudos sobre as alterações na expressão genética em animais, associados com a aprendizagem, indicam que tais alterações são seguidas por mudanças nos padrões de conexões entre as células nervosas, o que representa, em alguns casos, o crescimento e a retração de conexões sinápticas.
É intrigante pensar que até onde a psicanálise tem sido bem sucedida em proporcionar mudanças persistentes em atitudes, hábitos e comportamentos conscientes e inconscientes, isto seja feito pela alteração na expressão de genes que produzem mudanças estruturais no cérebro. Estamos diante da interessante possibilidade de que, na medida em que as técnicas de visualização do cérebro melhorem, estas técnicas possam ser úteis, não apenas para o diagnóstico das várias doenças neuróticas, como também para o monitoramento do progresso da psicoterapia.
Já em 1962, Mortimer Ostow, um psicanalista com formação em neurologia que tinha um antigo interesse na relação entre a neurobiologia e a psicanálise, apontou a utilidade do uso de drogas durante o tratamento psicanalítico. Ele argumentou que, adicionado ao seu valor terapêutico, a farmacologia poderia servir como uma ferramenta biológica no estudo das funções afetivas. Ostow observou que um dos principais efeitos dos agentes psicofarmacológicos se manifesta no afeto, o que o levou a argumentar que o afeto, muitas vezes, seja um fator determinante mais importante dos comportamentos e das doenças do que a ideação ou interpretação consciente. Esta idéia reforça a posição de Sanders, Stern e do Boston Process of Change Study Group sobre importância relativa dos afetos inconscientes sobre os insights conscientes, insistindo, uma vez mais, na importância das mudanças no conhecimento inconsciente procedural (como as que ocorrem em momentos significativos), como índice de progresso terapêutico, tão importante, para o Grupo de Boston, quanto os insights. Ambos, os argumentos de Boston e de Ostow, deixam claro que as mudanças nas representações internas inconscientes podem beneficiar o progresso, mesmo sem atingir a consciência. Talvez, nestes casos, o inconsciente seria até mesmo mais importante do que o próprio Freud avaliava! Assim, a temática emergente do estudo de Ostow sobre as ações dos agentes farmacológicos no processo psicanalítico confirma as idéias de Sanders e Stern, que insistem que o progresso na psicoterapia passa por um componente procedural importante e de que muito o que acontece na psicoterapia não precisa estar diretamente relacionado ao insight.
Como sugeri anteriormente, a maioria dos biólogos acredita que a mente é, neste século XXI, o que o gene foi para o século XX. Discuti brevemente como as ciências biológicas em geral e a neurociência cognitiva em particular irão provavelmente contribuir para uma compreensão mais profunda de um grande número de questões chaves na psicanálise. Uma questão que seguidamente é levantada é que uma abordagem neurobiológica da psicanálise poderia reduzir os conceitos psicanalíticos aos neurobiológicos. Se assim fosse, iria privar a psicanálise de seu conteúdo e riqueza essencial específica e conseqüentemente mudar o caráter da terapia. Tal reducionismo não é apenas indesejável, mas impossível. Os conteúdos psicanalíticos, da psicologia cognitiva e da neurociência, imbricam-se, mas não são, de forma nenhuma, idênticos. As três disciplinas possuem perspectivas e objetivos distintos que convergem apenas em alguns pontos críticos.
O papel da biologia neste contexto é o de iluminar aquelas direções que provavelmente levarão a insights mais profundos em processos paradigmáticos específicos. A força da biologia está em sua forma rigorosa de pensar e em sua profundidade de análise. Nossa compreensão sobre a hereditariedade, regulação genética, a célula, a diversidade da imunologia, o desenvolvimento do corpo e do cérebro humano e a produção de comportamentos foram profundamente expandidos na medida em que a biologia se aprofunda cada vez mais na dinâmica molecular dos processos vitais. A força da psicanálise está em seu escopo e na complexidade das questões tratadas, força que não pode ser diminuída pela biologia. Assim como a medicina tem reiteradamente indicado direções à biologia, à psiquiatria e à neurociência, também a psicanálise pode servir como um tutor competente e realisticamente orientado para uma compreensão mais sofisticada da mente-cérebro.
Durante a metade do século passado, assistimos a várias integrações bem-sucedidas nas ciências biológicas, sem que isto causasse o desaparecimento das disciplinas centrais. Por exemplo, a genética clássica e a biologia molecular se mesclaram em uma disciplina comum: a genética molecular. Agora sabemos que os traços que Gregor Mendel descreveu e os genes em locais específicos nos cromossomos que Thomas Hunt apontou, são pedaços de dupla hélice de DNA. Este conhecimento nos permitiu entender como os genes se replicam e como controlam as funções celulares. Estas compreensões revolucionaram a biologia, mas não aboliram a disciplina da genética. Ao contrário, com o término do genoma humano a genética está florescendo. Ela fez uso dos poderosos conhecimentos da biologia molecular, aplicou-os efetivamente aos seus próprios fundamentos e foi adiante. Que o mesmo aconteça com a psicanálise.
Como temos visto, a biologia poderia ajudar à psicanálise de duas formas: conceitual e experimentalmente. Estamos, na verdade, começando já a ver sinais de progresso conceitual. Um número de institutos psicanalíticos, ou pelo menos, um número significativo de pessoas dentro da psicanálise, tem lutado para tornar a psicanálise mais rigorosa e aproximá-Ia da biologia. Freud buscou esta posição no início de sua carreira. Mais recentemente, Mortimer Ostow, membro do Neuroscience Project of the New York Psichoanalytic Institute e David Olds e Arnold Cooper do Columbia Institute, assim como outros nos Estados Unidos, já vinham expressando, anteriormente, idéias similares às que esbocei aqui.
Durante muitos anos, tanto a Association for Psichoanalytic Medicine de Columbia quanto o New York Psichoanalytic Institute, para ficar apenas em dois exemplos, instituíram (com a ajuda de meu colega, James H. Schwartz), centros neuropsicanalíticos para conduzir os interesses comuns da psicanálise e neurociência. Os estudos realizados nestes centros incluíam temáticas como consciência, processos inconscientes, memórias autobiográficas, sonhos, afeto, motivação, desenvolvimento mental infantil, psicofarmacologia e a etiologia e tratamento das doenças mentais. O prospecto do New York Psichoanalytic Institute hoje é apresentado da seguinte maneira:
A explosão de novos conhecimentos a respeito de inúmeros problemas de interesse vital para a psicanálise necessita ser integrada de forma significativa com velhos conceitos e métodos como vêm ocorrendo com o surgimento crescente das tecnologias de pesquisa e tratamentos farmacológicos. Semelhantemente, os neurocientistas que estão explorando, pela primeira vez, o complexo problema da subjetividade, têm muito o que aprender de mais de um século de questionamentos psicanalíticos.
Desta forma, os psicanalistas estão começando a aprender sobre a ciência neurológica e psicofarmacologia, um estimulante passo a frente, um passo que deve conduzir, por fim, a um novo currículo para os psicanalistas clínicos.
Como resultado destes esforços, tem havido um pouco de progresso na segunda função da biologia: a função experimental. Muitos investigadores têm assistido à possibilidade estimulante da combinação experimental da psicanálise com a biologia. Têm sido admiráveis as tentativas de Karen Kaplan-Solms e Mark Solms para identificar sistemas anatômicos no cérebro, relevantes para a psicanálise, através do estudo de alterações de funções mentais de pacientes com lesões cerebrais. Kaplan Solms e Solms acreditam que o poder da psicanálise deriva de sua habilidade para investigar processos mentais a partir de uma perspectiva subjetiva. Entretanto, como eles assinalam, esta grande força também é sua grande fragilidade. Os fenômenos subjetivos não se entregam facilmente à análise empírica subjetiva. Precisamos desenvolver novas formas de estudo dos fenômenos subjetivos. Como resultado, estes investigadores argumentam que somente através da conexão da psicanálise com os fenômenos neurobiológicos objetivos, como nas mudanças de personalidade conseqüentes a lesões cerebrais focais, é possível relacionarem-se correlatos empíricos com os construtos subjetivos da psicanálise. De forma semelhante, há também a longa tradição do trabalho de Howard Shevrin, que correlaciona a percepção de estímulos subliminares e supraliminares com potenciais cerebrais relacionados a eventos, na tentativa de analisar aspectos dos processos mentais inconscientes.
Estes estudos iniciais são extremamente encorajadores. Mas, para que a psicanálise se revigore, será necessário integrar esta reestruturação intelectual com mudanças institucionais. Para que a biologia possa ajudá-Ia, dois aspectos da psicanálise requerem atenção especial: os resultados terapêuticos e o papel dos institutos psicanalíticos.
Como forma de terapia, a psicanálise não é mais tão amplamente praticada como era há 50 anos. Jeffrey sugere que o número de pacientes que procuram a psicanálise tem decrescido de forma estável, 10% ao ano, nos últimos vinte anos, assim como tem decrescido o número de psicólogos e psiquiatras talentosos que procuram treinamento em institutos psicanalíticos. Este declínio é frustrante, porque a terapia psicanalítica parece haver se tornado mais focalizada realisticamente, daí tendo maior probabilidade de ser eficaz. Durante as últimas décadas, a psicanálise tem abandonado de forma ampla os objetivos não-realísticos da década de 50, quando tentava tratar sozinha do autismo, da esquizofrenia e de doenças bipolares graves, distúrbios para os quais tinha pouco ou nada a oferecer. Nos dias de hoje, pensa-se que a psicanálise pode alcançar mais sucesso com pessoas com distúrbios de caráter não-psicóticos, como pessoas que encontram maiores dificuldades em trabalhar de forma efetiva ou manter relações de forma satisfatória e que desejam adquirir meios melhores de conduzir suas vidas. Um grande número desses pacientes sofre dos transtornos de personalidade borderline com perturbações afetivas concomitantes. Nestes casos, a psicanálise e a psicoterapia de orientação analítica são consideradas úteis, juntamente com a farmacoterapia. Como resultado deste estreitamento de foco para pacientes não psicóticos, a psicanálise e a psicoterapia de orientação analítica podem ser hoje mais efetivas do que antigamente.
Lembro aqui de Kay Jaminson e de sua espantosa discussão de sua própria doença maníaco-depressiva e da resposta efetiva da combinação da medicação com lítio e psicoterapia:
"Neste ponto em minha existência, não posso imaginar como levar uma vida de forma normal sem o tratamento do lítio e os benefícios da psicoterapia. O lítio previne meus "picos" sedutores, mas desastrosos, diminui minhas depressões, torna mais clara a confusão da desordem de meu pensamento, me desacelera, tornando-me menos impulsiva, me ajuda a não arruinar minha carreira e relacionamentos, mantém-me fora do hospital, viva, e torna a psicoterapia possível. Mas a cura ocorre através da psicoterapia. É ela que dá sentido à confusão, governa o território dos sentimentos e pensamentos, me dá controle e esperança e a possibilidade de aprender com tudo isto. Os medicamentos não podem trazer você de volta à realidade de forma amena, eles podem somente fazer com que alguém volte rapidamente, repentinamente, o que pode ser muito duro algumas vezes. A psicoterapia é um santuário; é um campo de batalha; é um lugar onde estive psicótica, neurótica, exaltada, confusa e desesperada para além do que se possa acreditar. Mas, sempre, é onde eu acreditei, ou aprendi a acreditar, que um dia eu poderia ser capaz de vencer tudo isto."
"Nenhum comprimido pode me ajudar a lidar com o problema de não querer tomá-Ios; da mesma forma, nenhuma terapia sozinha pode prevenir minhas manias e depressões. Preciso de ambos. É estranho, dever sua vida aos comprimidos, seus subterfúgios e persistências e a esta única, estranha e profunda relação chamada psicoterapia."
Constatados estes avanços, por que a prática da psicanálise não está florescendo? Este declínio no uso da psicoterapia psicanalítica é atribuível, em grande parte, a causas externas à psicanálise: à proliferação de diferentes formas de psicoterapias breves (muitas, em muitos graus, derivadas da psicanálise), à emergência da farmacoterapia e ao impacto econômico do Manage Gare. Mas uma causa importante deriva da psicanálise em si. Um século inteiro após sua fundação, a psicanálise ainda não fez o esforço necessário para a obtenção de evidências objetivas para convencer a cética profissão médica de que é um método mais efetivo do que placebos. Assim, diferentemente de várias formas de psicoterapia cognitiva e de outras psicoterapias, para as quais, agora existem evidências objetivas – tanto como terapias em si ou como acessórios fundamentais à farmacoterapia – não há ainda evidência objetiva, além de impressões subjetivas, de que a psicanálise funcione melhor do que as terapias não-analíticas ou placebos.
O fracasso da psicanálise em prover evidências objetivas de que é efetiva como terapia não pode mais ser aceita. A psicanálise tem que ser persuadida pela perspectiva realista e crítica de Arnold Cooper:
"Até onde a psicanálise considera ser um método de tratamento, estamos, para melhor ou pior, dentro da órbita da ciência e não podemos escapar da obrigação da pesquisa empírica. À medida que desenvolvemos profissionais que são membros de uma determinada profissão e cobram por seus serviços, é responsabilidade nossa estudar o que estamos fazendo e como afetamos nossos pacientes."
Como Cooper assinala, um número de estudos importantes inicialmente destinados a avaliar os resultados terapêuticos – as pesquisas de Wallerstein e os estudos revisados por Kantrowitz e Bachrach – abandonou seus objetivos de longo-prazo pelos de curto-prazo mais acessíveis e não relacionados aos resultados. Apesar de seu custo e complexidade, os estudos rigorosos sobre os resultados terapêuticos, em comparação com as terapias breves e de orientação não analítica e placebos, necessitam estar no topo da lista de prioridades se a psicanálise deseja ser reconhecida como uma boa opção terapêutica.
O passo mais difícil, porém, é ir além da apreciação da biologia. É ter uma pequena elite de pesquisadores profissionais para desenvolver, na psicanálise, uma atmosfera intelectual que tornará uma pequena fração de analistas competentes em neurociência cognitiva e ansiosos por testar suas próprias idéias com novos métodos. O desafio para os psicanalistas é tornarem-se participantes ativos na difícil tarefa de unir a biologia à psicologia, incluindo a psicanálise, na compreensão da mente. Se desejarmos que ocorra esta transformação da atmosfera da psicanálise, como acredito que deva ocorrer, os institutos psicanalíticos devem deixar de ser escolas vocacionais – um tipo de corporação – para tornarem-se centros de pesquisa e pós-graduação.
Neste século XXI, os institutos psicanalíticos norte-americanos assemelham-se a escolas médicas privadas que povoavam o país no início do século XX. Na virada século XIX, os Estados Unidos vivenciaram uma grande proliferação de escolas médicas – 155 declaradas – a maioria delas sem laboratórios para o ensinamento das ciências básicas. Nestas escolas, os estudantes eram ensinados por profissionais particulares que, freqüentemente, encontravam-se ocupados com suas próprias clínicas.
Para examinar este problema, a Garnegie Foundation contratou Abraham Flexner para avaliar a educação médica nos EUA. O relatório Flexner, finalizado em 1910, enfatizou que a medicina é uma profissão científica e requer uma educação estruturada na ciência básica e sua aplicação à medicina clínica. Para promover uma educação qualificada, o relatório Flexner recomendou limitar as escolas médicas no país àquelas integradas a universidades. Como conseqüência deste relatório, muitas escolas inadequadas foram fechadas, foram estabelecidos padrões para credenciamento para o ensinamento e prática da medicina. Para retornar ao vigor de sua fundação e contribuir de forma relevante à compreensão da mente, a psicanálise precisa examinar e reestruturar o contexto intelectual em que é feito seu trabalho formativo e desenvolver formas mais críticas de formação de profissionais no futuro. Assim, o que a psicanálise talvez precise, se quiser sobreviver como força intelectual neste século, é de algo similar ao Relatório Flexner com relação aos institutos psicanalíticos.
O que levou tantos de nós à psicanálise, nos finais de 1950 e início de 1960, foi sua audaciosa curiosidade e seu zelo investigativo. Eu mesmo fui levado ao estudo neurobiológico da memória por conceber a memória como central para uma compreensão mais profunda da mente, um interesse primeiramente iluminado pela psicanálise. Pode-se esperar que a animação e o sucesso da biologia atual reacendam as curiosidades investigativas da comunidade psicanalítica, e que uma disciplina unificada da neurobiologia, da psicologia cognitiva e da psicanálise levem a um novo e mais profundo entendimento da mente humana.