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“O que passou (não) passou”

Todos sabemos que o título deste texto, na verdade é uma frase comumente utilizada pelas pessoas em algumas situações específicas. Por exemplo: quando alguém está propondo uma reconciliação com o outro, não é incomum que diga, "olha vamos deixar prá lá, na verdade o que passou passou". Ou ainda naquelas situações onde alguém está propondo uma reconciliação consigo mesmo, depois de sofrer uma situação dolorosa. Costuma dizer para si próprio, algo do tipo: "bom, foi uma pena tudo o que aconteceu comigo, mas o que passou passou".  

Observamos esse movimento muito comumente, naqueles "balanços" de finais de ano, onde as pessoas, ao se lembrarem de momentos difíceis pelos quais passaram durante o ano, costumam dizer a si próprias: "é ,realmente foram momentos difíceis ,mas o ano acabou, outro está começando e, o que passou passou". Desta forma, parece que tentamos fazer uma anulação retroativa, zerando nossas mazelas e  , acreditando que o melhor ainda está por vir; sempre renovando as nossas esperanças em dias melhores.

O que me importa no momento em que escrevo este artigo, é sublinhar que a famosa frase "o que passou, passou", só é válida do ponto de vista cronológico, não ocorrendo da mesma forma em termos intrasubjetivos. Aliás, eu diria que, muito pelo contrário, nesses termos na verdade, o que passou, NÃO passou.

Quando falamos , em Psicanálise sobre o conceito de Inconsciente, uma das características que o definem, é exatamente a sua ATEMPORALIDADE. Me ocorre, a título de um exemplo, uma situação pela qual passam muitas mulheres em todo o mundo, todos os dias, ano após ano ,que é a situação do aborto. É muito discutida mundialmente , a hipótese de sua legalização, onde é claro isso ainda não existe.

Contudo, o que notamos é que para aquém da liberação governamental, portanto externa, existe todo um trâmite quanto à legalização interna, a qual nesse momento é a que me interessa discutir aqui.

O tipo e conflito que gera uma situação dessa ordem, jamais poderá ser resolvido externamente, ou seja, de fora para dentro. A eventual liberação externa em nada garante a abolição do conflito interno, bem como suas respectivas conseqüências para quem se submete e, aqui também deve ser considerado o fato de que quem acompanha, pricipalmente se for o pai da criança, que o mesmo também terá que se fazer cargo de suas próprias conseqüências pessoais, muito embora não seja no seu próprio corpo, o que não invalida a hipótese de que o conflito se estabeleça de maneira extremamente danosa.

Para aqueles que, como eu, praticam a psicanálise clínica, não deve se constituir em nenhuma novidade a escuta de falas do tipo: "É, de fato eu fiz alguns abortos, mas foi o que de melhor havia para ser feito à época". Sabemos que esse é um julgamento procedente da esfera racional, de certa forma se utilizando de uma lógica que possui ,sem dúvida, a sua coerência interna. Ocorre que o ser humano não é só consciência e que, muitas vezes aquilo que nos parece realmente o melhor a ser feito, não invalida a possibilidade do surgimento de conseqüências futuras.

Ainda enquanto freqüentador dos bancos acadêmicos, tomei contato com um trabalho de um analista latino-americano , o qual trazia como título: "O aborto:um estúdio psicoanalítico" e, seu nome era Julio Aray. Da atenta leitura deste trabalho, pude já naquela época depreender que as conseqüências da tomada de atitude não focava só a mulher, mas sim e de forma muito intensa, seu companheiro. Trata-se, até hoje de um trabalho exemplar sobre o tema, conduzido de forma muito bem alinhavada em termos teóricos, bem como no que dizia respeito à experiência clínica do autor.

Notem os leitores deste trabalho que aqui, nem estou entrando nas questões referentes à saúde pública, a qual pela sua inoperância, acaba colocando sob risco de vida, todos os dias milhares de mulheres, para as quais não resta outra alternativa, do que procurar as tais "clínicas de fundo de quintal", isentas muitas vezes de qualquer cuidado asséptico e,  fazendo o procedimento em massa. Como cobram relativamente barato, tem que tirar a diferença na quantidade de procedimentos praticados.

Muitas vezes tratam-se de pré adolescentes que são envolvidas nesse procedimento, sem terem muito bem definida a noção daquilo que realmente está ocorrendo,uma vez que querem, ou melhor, precisam se livrar de um "problema", o qual  colocam no mesmo grau de importância de um problema financeiro, ou mesmo escolar do qual precisam escapar o mais rápido possível.

Quero aqui me valer de um conceito muito utilizado, pela sua correção comprovada clínicamente em Psicanálise, que é o conceito de "POSTERIORIDADE" (no alemão: NACHTRÄGLICHKEIT e ,no francês: APRÈS-COUP).

Passo a transcrever a definição contida no VOCABULÁRIO DE PSICANÁLISE de J. LAPLANCHE e J-B. PONTALIS:  " termos frequentemente utilizados por Freud em relação com a sua concepção da temporalidade e da causalidade psíquicas: há experiências, impressões, traços mnésicos, que são ulteriormente remodelados em função de experiências novas, do acesso a outro grau do desenvolvimento. Pode então, ser-lhes conferida, além de um novo sentido, uma eficácia psíquica". Além de Freud, J. Lacan teve o mérito de chamar a atenção para esse termo.

Sabemos que Freud acentuou que o indivíduo modifica posteriormente os acontecimentos passados e que esta modificação lhes confere um sentido, além de uma eficácia, ou um poder patogênico.

Ainda segundo Laplanche e Pontalis: " essa idéia poderia levar a pontos de vista segundo os quais, todos os fenômenos que encontramos em Psicanálise se situam sob o signo da retroatividade, e mesmo da ilusão retroativa". Os autores citam ainda que : "É assim que Jung fala de fantasmas retroativos(Zurückphantasieren): segundo ele, o adulto reinterpreta o seu passado nos seus fantasmas que constituem outras tantas expresões simbólicas dos seus problemas atuais".

A noção freudiana de posterioridade apresenta-se muito mais definida. Os autores agrupam assim, o que a especifica: 1) Não é a vivência em geral que é remodelada posteriormente,mas antes o que, no momento em que foi vivido, não pôde integrar-se plenamente num contexto significativo. O modelo dessa vivência é o acontecimento traumatizante. 2) A remodelação posterior é acelerada pelo aparecimento de acontecimentos e de situações, ou por uma maturação orgânica, que vão permitir o acesso a um novo tipo de significações e a sua reelaboração das suas experiências anteriores. 3) A evolução da sexualidade favorece, pelos desfasamentos temporais que implica no homem,o fenômeno da posterioridade.

Quero aqui recuperar, da definição citada de posterioridade, o aspecto da  " eficácia psíquica ". É exatamente, dependendo dessa eficácia psíquica que vai ser adquirida pelo indivíduo, que poderemos inferir o seu potencial patogênico. Ou seja, uma vivência , na qual esteja implícito um grande montante afetivo, mas que por um processo dissociativo, não seja sentido e vivido como tal, poderá, com posterioridade, exercer sobre o indivíduo uma pressão patogênica.

 Se fizermos uma tentativa de simplificação, o que na expressiva maioria das vezes , é impossível em Psicanálise,sob pena de descaracterizarmos a importância do fenômeno,  poderíamos dizer que seria como uma forma de "cair a ficha" e, em "caindo", o caráter patogênico encontra caminho para se fazer presente na vivência do sujeito.

Numa tentativa de estabelecermos uma hipótese prognóstica, não obrigatória, poderíamos dizer que dentre as possibilidades decorrentes dessa "eficácia psíquica", uma delas seria a de que essa mulher, por exemplo, pudesse vir a desenvolver problemas relacionados à obtenção do próprio prazer sexual, causado, entre outras coisa por uma espécie de culpa persecutória pelo ato cometido.

Ressalto que é, entre outras coisas, uma vez que estou respeitando o princípio da sobredeterminação do sintoma. Uma outra hipótese possível, é a de que a mesma mulher possa desenvolver toda uma espécie de repulsa em relação ao companheiro, atribuindo a ele, fantasmáticamente, toda ou boa parte da culpa pelo ocorrido, utilizando-se do mecanismo da projeção. Outra hipótese seria que não viesse a se permitir uma entrega à relação com outros filhos, que porventura viesse a ter, uma vez que se sentiria culpada pelo infanticídeo cometido.

É claro que , como disse , não é obrigatório que essas hipóteses se configurem, porém o que procurei aquí chamar a atenção é que essas vivências podem permanecer no sujeito , na forma de um "corpo estranho", minando a vida psíquica e relacional  do mesmo e , sem que ele faça a menor idéia de sua presença  nefasta.

Assim ,desde um olhar baseado na Psicanálise,o que podemos sempre verificar é que " o que passou,NÃO passou" .

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