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Relação Mente-Corpo de Montaigne a Kant

Resumo

Apresento e discuto, à luz de alguns conhecimentos atuais, a evolução das concepções acerca daquilo que se deno­minou alma (hoje citada como mente nos meios científicos) de Montaigne a Kant. Concluo ainda que dadas certas condições órgano-cerebrais básicas haveria uma certa inde­pendência entre a mente e o corpo. Penso ainda haver encontrado uma prova para tal hipótese na reação luta ou fuga dos animais perante uma situação ameaçadora onde, para uma idêntica situação corporal, podem ocorrer juízos diferentes.

"A alma tem por si a faculdade de raciocinar, recordar, compreender, julgar, desejar (…) É igualmente provável que a alma aloje-se no cérebro, pois os ferimentos e acidentes que afetam esse órgão repercutem de imediato nas suas faculdades."

Montaigne

"(…) Sou uma substância cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar e que para ser, não necessita de nenhum lugar nem depende de qualquer coisa material… Esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo."

Descartes

O surgimento da razão na natureza a partir do advento do Homo sapiens, o como isso se teria dado e a relação entre o ser corporal e a sua atividade mental ou anímica, são talvez os pontos centrais de toda a filosofia através dos séculos.

Os modelos para tentativa de sua compreensão variam desde os mais poéticos – como, por exemplo, no oratório A Criação, de Haydn, onde depois de tudo haver sido criado, a própria natureza ressentia-se da falta de um ser que pu­desse louvar e agradecer, em seu nome, ao seu criador – até aos mais técnicos, que entendem a razão simplesmente como a forma mais elevada de organização da matéria e da energia.

Não é minha intenção realizar uma revisão das diversas abordagens dos filósofos e cientistas sobre o assunto atra­vés dos tempos, mas tão somente discutir algumas idéias concernentes ao tema, dos principais filósofos que viveram e escreveram no período compreendido entre a segunda metade do século XVI (Montaigne) até a segunda metade do século XVIII (Kant). Ten­to também avaliá-Ias à luz de alguns dos principais achados da pesquisa recentes.

Foi naquele período, crucial para o desenvolvimento do conhecimento humano, que as Ciências começaram a deslocar a Metafísica de sua influência paralisante. Seria ainda nesse período que a Europa exploraria intensiva­mente os "outros mundos":
Copérnico tiraria a Terra do centro do Universo;

Galileu iniciaria a experimentação;

Newton demonstraria que os astros não necessitavam de nenhuma força fora deles mesmos para permanecerem em equilíbrio;

Descartes colocaria com o "cogito", a razão humana no centro de toda a filosofia ao demonstrar que a única certeza absoluta possível era a da existência de um ser pensante.

De Montaigne a Kant: as concepções acerca da Alma e da Razão

Se Descartes é considerado, e com justiça, o marco inicial da moderna filosofia, principalmente por haver colocado a razão humana no centro de toda investigação filosófica e pela valorização dada ao desenvolvimento de métodos de investigação filosófica e científica aplicáveis a qualquer campo do conhecimento, Montaigne, que o antecedeu de pouco, representa o enfeixe de toda a Filosofia Ocidental até então.

A diferença com que os dois tratam a cultura clássica é marcante. Enquanto Montaigne reverencia o co­nhecimento reunido pelos sábios gregos e romanos sen­tindo-se mesmo pequeno em relação a eles, Descartes, com uma certa arrogância, quase faz "tabula rasa" em relação ao que o antecedera, especialmente no que se refere ao estudo das paixões e sua relação com a alma e o corpo, chegando a afirmar:

"(…) Eis por que serei obrigado a escrever aqui como se se tratasse de uma matéria que ninguém antes houvesse tocado."(3)

Um breve olhar às citações em frontispício é suficiente, porém, para demonstrar o quanto Montaigne estava mais próximo do consenso atual. Descartes na sua defesa da independência total entre a alma e a razão, repetia as idéias de Platão no seu Fédon, onde são reproduzidos os diálogos que Sócrates manteve com os seus discípulos na prisão pouco antes de beber a cicuta. Em verdade tanto no Fédon quanto em Descartes há a idéia de uma oponência entre a alma e o corpo:

"(…) durante todo o tempo em que tivermos o corpo e nossa alma misturados a essa coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos de­sejos" (Platão).

"(…) Considero que não notamos que haja algum sujeito que atue mais imediatamente contra nossa alma do que o corpo ao qual está unida" (Descartes).

Quão diferente é a harmonia e interrelação entre a mente e o corpo pregada por Montaigne:

"(…) Que ela (a alma) o assista sempre e não se recuse a tomar parte nos prazeres naturais, contribuindo, além disso, com sua moderação para evitar o abuso que acarreta o desprazer (…) Por que desmembrar e divorciar tais elementos de uma associação tão fra­ternal? Apertemos, ao contrário, o laço que os prende e façamos com que se prestem mutuamente serviço. Que o espírito desperte e vivifique o corpo tão pesado em si e que este modere a leveza daquele e o torne mais estável (…)"

Nunca mais a filosofia encontraria o frescor e a sim­plicidade das páginas de Montaigne.

Nas suas investigações acerca da alma Descartes iria discutir ainda a sua localização no corpo e a sua perma­nência ou não depois da morte. Havia uma controvérsia quanto a se a alma localizava-se no corpo como um todo ou em certas partes do mesmo, como, por exemplo, o coração, considerado o centro das paixões, ou o cérebro, no qual se reconhecia a sede do entendimento. Descartes foi mais adiante ainda e em um juízo temerário julgou ser a glândula pineal (epífise) a responsável direta pela inserção da alma no corpo por duas razões principais:

    (1ª) Ela era única enquanto as demais estruturas eram na quase totalidade duplas;

    (2ª) Ela era móvel enquanto a pituitária (hipófise), por exemplo, era fixa.

Aqui certamente caberia a frase de Cícero citado por Montaigne:

"(…) Nada se dirá, por mais absurdo, que não tenha sido dito por algum filósofo".

Com relação à permanência ou não da alma após a morte, o raciocínio de Descartes foi bem elegante e enge­nhoso. Segundo ele a permanência da alma após a morte "(…) se confirma pelo fato de não concebermos qualquer corpo senão como divisível, ao passo que o espírito ou a alma do homem não se pode conceber senão como indivisível, pois, com efeito, não podemos conceber a metade de alma alguma (…) isto basta para mostrar muito claramente que da corrupção do corpo não decorre a morte da alma e assim há para os homens a esperança de uma segunda vida após a morte."(2)

Cerca de 50 anos antes Montaigne expressara idéia com­pletamente diferente e hoje certamente muito mais inte­ressante. Apoiando-se em Epicuro e Demócrito, defendeu que a alma nasceria, se desenvolveria e enfraqueceria com a decrepitude do corpo terminando com uma citação de Lucrécio:

"(…) Cumpre que a alma seja corporal, pois é sensível às sensações do corpo".

Já no que se refere à possível imortalidade da alma diz:

"(…) Quem empreenda sondar-se por dentro e por fora (…) e estude o homem sem o embelezar, nada verá em si, de certo, de provável, impelindo a outra coisa que não à morte como fim último."

É importante ao se avaliar algumas das sentenças de Montaigne ter em vista que por vezes elas não refletem uma idéia acabada e muito menos um sistema filosófico e que freqüentemente ele confessadamente emite idéias contraditórias. De qualquer forma, a perplexidade por ele causada nos pensadores foi enorme e ela pode ser vista em Pascal, profundo conhecedor de sua obra, principal­mente quando afirma:

"(…) É impossível que a parte raciocinante de nós mesmos não seja unicamente espiritual; e se pre­tenderem que somos tão-somente corporais mais afastarão ainda de nós o conhecimento das coisas, porquanto nada será mais inconcebível do que a matéria conhecer-se a si própria (…)"(9)

E também em Rousseau:

"(…) Concebo, no entanto, que o corpo se gasta e destrói pela separação das partes, mas não posso conceber semelhante destruição no ser pen­sante"(10).

A solução para tamanha perplexidade, ao menos do ponto de vista filosófico, seria dada por Kant ao demonstrar que a pesquisa daquilo que se chamava alma e o seu pleno entendimento estava para além da possibilidade humana, uma vez que ao nosso entendimento seriam acessíveis apenas os fenômenos e não aquilo que chamou "a coisa em si":

"(…) Não devemos considerar nada que logramos alcançar como o último sujeito e que o substancial nunca pode ser pensado por nosso entendimento, por mais profunda que seja nossa penetração."(4)

Nesse sentido, tentar investigar a permanência de uma alma independente de um corpo, ou seja, para além da experiência possível, seria tentar captar a "coisa em si", o que seria, por princípio, impossível para o entendimento.   

Daí a máxima kantiana:

"(…) A permanência da alma só pode ser provada na vida do homem, pois a morte é o fim de toda experiência no que se refere à alma como objeto da mesma."(4)

Também Montaigne cerca de 200 anos antes havia ex­pressado idéia semelhante:

"(…) Pelo seu estado presente (da alma) é que se deve reconhecer sua imortalidade, não sendo ela respon­sável senão pela vida do homem ao qual se une". (8)

O quanto as concepções religiosas e de fé podem se chocar com a evolução das idéias, todos nós sabemos e praticamente todos os pensadores a que nos referimos sofreram restrições de ordem religiosa.

Foi Kant ainda quem levou às últimas conseqüências a independência da filosofia em relação à religião. Em verdade ele foi mais além ainda ao inverter a tendência histórica de subordi­nar-se a filosofia à religião, que já vinha se perdendo (e que Pascal tentara desesperadamente resgatar) ao submeter a própria religião ao escrutínio da razão no seu trabalho A Religião dentro dos limites da mera Razão, o qual, não por acaso, foi censurado pelos poderosos da época. A intensidade dessa ruptura pode ser captada por um detalhe sutil da sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Nessa obra, preocupado em encontrar os princípios morais e as leis que regem a conduta dos seres humanos, e ao julgar tê-Ios encontrado, Kant diz serem eles válidos para todo ser dotado de razão. Ou seja, para ele a razão não seria, em princípio, exclusiva da espécie humana, antecipando a possibilidade do desenvolvimento de outras espécies ra­cionais na terra ou mesmo fora dela.

Desconsiderava com­pletamente a idéia da existência de uma alma à semelhança da figura humana (mesmo porque o estudo da evolução do homem até os nossos dias demonstra as diferenças marcantes que nos separam de nossos antepassados) e da criação do homem à imagem de Deus. Montaigne também havia ironizado a tendência dos homens a considerarem-se a obra-prima da criação e ci­tando Xenófanes escreveu jocosamente que se os animais criassem deuses eles também os conceberiam à sua própria feição.

Para os cientistas de hoje discussões desse tipo podem parecer extemporâneas, tendo em vista o desenvolvimento do conhecimento ocorrido em todas as áreas de investi­gação. Em verdade, porém, quanto mais evoluímos no conhecimento, mais vemos que os princípios kantianos são verdadeiros e que a nós resta muito mais estudar as características e o funcionamento das coisas do que as suas origens e causas últimas.

Poderíamos mesmo dizer que a filosofia, que um dia abriu e iluminou os caminhos para a investigação científica foi, no nosso século, completamente obscurecida por ela, a ponto de se pensar que seria da Física propriamente dita, e não mais dos metafísicos, que obteríamos as res­postas para todas as questões levantadas pelos homens desde os primórdios da civilização.

Na nossa área, por exemplo, assistimos a uma dissecação, não somente do cérebro, como também da mente humana. Foram demonstradas as correlações diretas entre certas estruturas, como por exemplo, lobo temporal, hipocampo, corpos mamilares, e a memória. Mesmo funções mais abstratas como o humor, a vontade e outros, demonstrou-se estarem relacionadas a certas estruturas e serem afetadas pela alteração das funções neuro-humorais. Ou seja, tudo aponta muito mais no sentido da confirmação da sentença de Montaigne do que da de Descartes e Platão/Sócrates.

Como se poderia sustentar hoje a idéia de uma alma ou mente totalmente desligadas e independentes de um corpo para o seu funcionamento, quando observamos a mudança completa de uma personalidade a partir de certas lesões cerebrais localizadas ou difusas? Mais do que isso, como explicar que por mais diferenciadas que sejam as perso­nalidades prévias dos indivíduos haja uma tendência a que desenvolvam certas características comuns a partir, por exemplo, da ocorrência de uma lesão fronto-orbital? Somente a partir da aceitação da relação íntima que existe entre a mente e o corpo. Quer isso dizer, porém, que o que preocupou e deixou perplexo Pascal, quanto à matéria conhecer-se a si própria, se realizaria? Significaria isso que todas as reações humanas poderiam ser explicadas a partir da função neuronal, pura e simplesmente?

Do risco da "despoetização" da vida, entretanto, não morreremos e quem nos socorre aqui é, paradoxalmente, um dos princípios mais elementares da neurofisiologia aplicado à observação do comportamento de animais diante de situações ameaçadoras. Qualquer aluno do pri­meiro ano de medicina ou psicologia ao estudar Biofísica aprende que em tais situações os animais, homens incluídos, "prepa­ram-se" do ponto de vista neurofisiológico de uma mesma forma para a luta ou para a fuga, mas a decisão quanto a uma ou outra conduta, vem de um julgamento quanto a qual das condutas seria mais adaptativa.

É verdade que uma série de fatores de origem corporal poderia in­fluenciar na decisão: o animal ser mais ou menos auto­confiante por estar mais ou menos saudável e forte; ser mais ou menos agressivo, ainda que isso esteja também na dependência de fatores orgânicos. Mas aquilo de que não conseguimos escapar é de que para uma mesma situação corporal podem decorrer juízos diferentes que se fará em fração de segundos. Poder-se-ia ainda argumentar que certas lesões cerebrais poderiam prejudicar tal juízo, fa­zendo com que o animal julgasse como ameaçadoras si­tuações corriqueiras.         

Ou que outras lesões poderiam torná-Io plácido demais. Isso, entretanto não abalaria em nada a argumentação anterior e a conclusão que dela podemos tirar: a de que dadas certas condições básicas orgânicas e especialmente cerebrais haveria uma certa autonomia e independência do funcionamento mental em relação às funções cerebrais que o originavam. Por isso mesmo, a idéia da existência de uma mente (ou alma), inexplicável apenas pelo movi­mento e ação da matéria e energia, pode se sustentar. Daí, poderíamos avançar a hipótese de que, ao contrário do que pensam os religiosos e muitos filósofos, a dita alma seria a única que verdadeiramente se perderia com a morte e decomposição do corpo, uma vez que os compo­nentes deste continuariam a interagir com a natureza. Aquela organização superior, entretanto, que um dia foi uma personalidade, nunca mais voltaria a se organizar da mesma forma ou dispor da mesma história. A ser isso verdade, teríamos encontrado algo para o qual não se aplicaria a Lei de Lavoisier, pois aquela forma de orga­nização se perderia simplesmente, sem transformar-se em nada. Evidentemente abstraímos aqui a "eternização" que algumas vidas podem alcançar pela sua influência nas demais, pela sua reprodução, e por seus efeitos na pro­dução artística, científica, política, militar etc. Mas esse não é o nosso tema.

Em certas passagens dos seus ensaios Montaigne diz que a filosofia não passa de uma poesia feita com sofismas e que os pensadores gregos obtiveram toda a sua auto­ridade a partir dos poetas da Antigüidade:

"Os primeiros filósofos foram poetas e filosofaram como versificaram"(8)

De fato não há idéia de pensadores que não tenha sido exposta anteriormente e quase sempre em muito melhor estilo por um poeta. Veja-se o Momento num café de M. Bandeira:

Quando o enterro passou

Os homens que se achavam no Café

Tiraram o chapéu maquinalmente

Saudavam o morto distraídos

Estavam todos voltados para a vida

Absortos na vida

Confiantes na vida.

Um no entanto se descobriu num gesto largo

e demorado

Olhando o esquife longamente

Este sabia que a vida é uma agitação feroz e

sem finalidade

Que a vida é traição

E saudava a matéria que passava

Liberta para sempre da alma extinta.

Referências bibliográficas

  1. DESCARTES R – Discurso do Método. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
  2.  ____ – Meditações. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
  3.  ____ ­- As Paixões da Alma. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
  4. KANT I – ­Crítica da Razão Pura. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
  5. ­____ – Prolegômenos. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
  6. ____ – Fundamen­tação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
  7. ­____ – A Religião dentro dos Limites da Simples Razão. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
  8. MONTAIGNE M de – Ensaios. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
  9. PASCAL B – O Homem perante a Natureza. São Paulo: Gráf. Ed. Bras., 1956.
  10. ROUSSEAU JJ – Émile. São Paulo: Gráf. Ed. Bras., 1956.
  11. PLATÃO – Fédon. São Paulo: Abril Cultural, 1972.

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