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Delírio Cintilante

Vou tentar frear um tanto os exageros acadêmicos nas inferências dos colegas das neurociências. É certo que não vemos ou manipulamos um cérebro do mesmo modo que o fazemos com um rim, um fígado, um pulmão, sem desmerecê-los até porque qualquer um deles pode nos levar ao óbito. Mas o cérebro esconde enigmas para a pesquisa científica, seja por sua morfofisiologia difícil de ser discriminada, seja por sua, digamos assim, interface com a mente.

Seria um erro grosseiro repetir a falácia que foi a "cranioscopia" dos alienistas entre os séculos XIX e XX. Mesmo com a sofisticação das máquinas de hoje, mapear o cérebro seria um equívoco equivalente. Parece até que, de repente, o cérebro perdeu sua incrível plasticidade e foi freezado. Estão fazendo com os dados funcionais, essencialmente dinâmicos, o mesmo que já se observava nas imagens de antes. Cada coisa no seu lugar, cada lugar com a sua coisa. Ora, agora que temos, enfim, algo em movimento na intimidade do parênquima nervoso, mostrado pelas imagens dos elementos de substâncias com átomos marcados por radioisótopo sendo captado e colimado no seu trajeto.

No entanto, quando entro em salas de radiodiagnóstico, meus colegas "nervosos" mostram-me imagens estáticas, com um ponto iluminado (cintilando). Infalivelmente aparece alguém que me pergunta:- "No que este paciente estava pensando na hora do exame?" "Tinha muita emoção, ou pouca emoção?" Respondo:- "Sei lá!" "Os bruxos aqui são vocês". Claro que estamos atentos com as manchetes marqueteiras da mídia e com a ficção científica. Mas, cá entre nós e o mundo, os neurocientistas estão dando certa margem a que isto aconteça.

Para mim o desafio central que se apresenta à Filosofia da Mente, é o de  se entender a Relação Cérebro-Mente, e que parece que os colegas das neurociências já teriam elucidado totalmente. Embora eles usem o eufemismo de "correlatos neurais", ao longo dos textos de seus artigos, estes correlatos se transformam em relação de causa e efeito mesmo, partindo para a mais desenfreada Teoria da Identidade, isto é, de que "estados cerebrais são iguais a estados mentais". Ou, do mesmo grupo de pesquisadores australianos, os "materialistas eliminativos", que esperam um dia transformar toda linguagem do mental em pura linguagem científica, dando uma rasteira na psicologia popular. Ledo engano.

Cintilou uma dada região, pronto, já temos CIC, RG, CEP etc. daquilo que o examinando estava trabalhando no campo de sua consciência enquanto recebia a carga eletromagnética e era percorrido por radiações ionizantes em seu cérebro. Isto me parece, no mínimo, muito ingênuo.

E, paradoxo dos paradoxos, apesar de toda maquinaria futurista em uso, fica-se ainda hoje a depender-se da "introspecção" do examinando. Na entrevista com o examinando-voluntário, podemos nos perguntar:- "Mas, o que foi que ele pensou, de fato, durante o exame?" "Ele foi sincero, ou seria algum subversivo da ordem?" E, apesar dos problemas propostos para as experiências com neuroimagem funcional serem padronizados:- "Quais as reais e profundas reverberações conscientes e inconscientes que estariam sendo criadas, de algum ponto central, como um movimento ondulatório, por toda aquela massa encefálica, pelo estímulo proposto?"

Ou, então, sob outra óptica, os neurocientistas levaram ao pé da letra a belíssima metáfora que o biólogo inglês Richard Dawkins fez criando a concepção do "meme", para rimar e fazer um paralelo de grande utilidade prática com o gene. Assim, gene: partícula herdada biologicamente pelo filho dos pais; meme: partícula culturalmente adquirida pelo filho dos pais. Ora, cérebro não é gônada. Não produz partículas realmente herdáveis como os genes. E nem mitocôndria citoplasmática. O cérebro veio em socorro às gônadas para possibilitar, diante do absurdo crescimento de informações recebidas, para o indivíduo poder processar, associar e armazenar todos os bits culturais, pois os cromossomos já estariam no seu limite de replicação das informações biológicas.

Quando lemos:- "Foi encontrada a região de Deus no cérebro", ou "A religião do cérebro" – desculpe-me, Prof. Raul Marino Jr., ou "Descobriram-se os centros de justiça e ética no cérebro", é absolutamente similar quando os geneticistas encontram o locus de algum gene em dado cromossomo. Como se Deus e Ética preexistissem na circuitaria neural, bastando-se amadurecer para acessá-la. E, seja por Criação ou por Evolução:- "Será que já encontraríamos primórdios divinos e éticos no Sistema Nervoso Central de peixes, anfíbios, répteis, aves e mamíferos não-humanos?"

Isso me lembra dois autores de peso: Chomsky que acredita que nasçamos geneticamente programados para uma linguagem, e Lévy-Strauss que também acreditava em comportamentos sociais orientados geneticamente. No primeiro caso, esqueceu-se Chomsky das experiências feitas pelo rei egípcio Psamético e pelo Imperador alemão Frederico II: colocaram recém-nascidos isolados e aos cuidados de pastores que estavam proibidos de emitir qualquer palavra perante estas crianças. Depois de alguns poucos anos se deram conta que estas crianças não falavam absolutamente nada, frustrando a idéia de que recém-saídos do mundo dos deuses pudessem deixar vazar algo da linguagem deles espontaneamente.

Lembremos também de Kamala, achada com uns 8 anos presumidos, e Amala, com 1,5 ano presumido, quando foram encontradas em meio aos lobos na selva da Índia. Apesar de todo o cuidado dispensado ao crescimento de ambas, posteriormente, a menor logo morreu. Tentou-se "domesticar" a mais velha por vários anos. Kamala chegou a usar somente poucas palavras num inglês quase incompreensível, mantendo os hábitos aprendidos com a matilha, como uivar, mostrar os dentes agressivamente quando outras crianças se aproximavam para brincar, farejar tudo, lamber os alimentos, comer com as mãos, andar de quatro, visão noturna e audição aguçadas etc.

Quanto a Lévy-Strauss, seu equívoco foi, por exemplo, com a interdição genética do incesto. Ora, é só sairmos uns 100 km de uma grande metrópole para encontrarmos famílias de lavradores em pequenos sítios onde o pai dorme com todas as filhas.

Retomando as neuros: certas regiões cerebrais, como a face ventro-medial do lobo pré-frontal, estão cotadíssimas para serem as grandes estrelas no tapete vermelho das descobertas deste início de século. Pudera, foram buscar exatamente as áreas de emergência mais recentes e nobres dos hemisférios cerebrais. Foi no processo de frontalização, que, de fato, distanciamo-nos dos primatas superiores, sendo um novo espaço neural para o alojamento das funções que garantem a humanidade do Homo sapiens. "Quantos milhares de idéias luminosas, de sentimentos generosos e de valores não estariam passando por aí?" Ou, muito pelo contrário.

O mesmo se dá com a amígdala e o hipocampo. Ora, a amígdala é a porta de entrada do Sistema Límbico, sede anátomo-funcional que, ao que parece, aloja nossas emoções no cérebro. Todo material mental que contenha emoção – e algum poderia não conter? – passa por ela. É a amígdala quem faz a primeira apreciação:- "Isto é bom, isto é mau". Portanto, a amígdala não funcionaria somente para identificar Deus ou o que é Ético. E o hipocampo? A não ser que seja um paciente já demenciado sem memória, ele registra tudo. É o grande historiador de nossas vidas. Portanto, não haveria como alocar funções específicas no seu trabalho.

Seria bom insistirmos com os neurocientistas que hoje os filósofos da mente trabalham com a hipótese do Holograma. O cérebro funcionaria sempre como um todo englobando suas partes. Partes estas onde, cada uma delas, reproduz o todo. Esta parte seria como uma mônada de Leibniz, isto é, a menor porção de um todo sem perder as características do todo.

As neuroimagens funcionais são uma maravilha a mais na História da Humanidade a partir da Década do Cérebro. Mas, para a Neurologia Clínica e Cirúrgica. Para a Patologia Orgânica. Suas informações do encéfalo são surpreendentes. O erro está em querer transformá-las em uma espécie de Endoscópio Cerebral. Como se bastasse espetar uma fibra óptica no seu parênquima para visualizarmos numa tela o filme que está sendo levado, transformando-se o laboratório em um cinema.

Isto seria de fato um delírio frankensteiniano.

PS: Este artigo foi publicado pela revista Ciência&Vida, Filosofia Especial: "Filosofia da Mente", ano I, n. 3, pp. 46-50, julho 2007.

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