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Fenomenologia : Psicanálise : : Água : Azeite

                       Fenomenologia : Psicanálise ::  Água : Azeite

                                                                                             Adalberto Tripicchio, Ph D

"Não podemos permanecer nessa alternativa de nada compreender no sujeito ou de nada compreender no objeto. Convém que reencontremos a origem do objeto no coração mesmo de nossa experiência, que descrevamos a aparição do ser e que compreendamos como, paradoxalmente, há para nós o ser em si."

(Merleau-Ponty)

Uma pessoa cai dentro de um poço; sobrevive. Lá de dentro, grita por ajuda. Ouvindo-a, um passante indaga: "Como caiu?" O quase-afogado replica: "Em vez de indagar como caí, não deveria estar imaginando uma forma de eu sair?"

 (Anônimo)

Resumo

A análise da relação sujeito-objeto proporciona demonstrar flagrante distinção entre Fenomenologia e Psicanálise. Movida por princípios filosóficos diversos, uma e outra adotam posturas divergentes diante do objeto de estudo. Neste artigo apresento sucintamente algumas diferenças e procuro demonstrar as conseqüências no resultado do conhecimento.

Quero deixar claro que no continuum que eu admito existir entre a compreensão e a interpretação, estou tomando como referência os pólos extremos do mesmo.

O modo de se considerar a relação sujeito-objeto, em dicotomia ou não, ou seja, a metodologia utilizada no desenvolvimento do conhecimento, traz implicações no resultado deste conhecimento.

Diversas posturas filosóficas partem da dicotomia sujeito-objeto, adotando o princípio de que todo conhecimento necessita estar assentado em objetividades, seguindo a norma do conhecimento natural. Outras posturas valorizam inteiramente o juízo, assim como acontece com a proposição cartesiana "cogito ergo sum". São óticas distintas, implicando, obviamente, em desenvolvimentos diversos no conhecimento de um mesmo objeto.

No início deste século, Husserl passou a desenvolver idéias buscando superar essa dicotomia sujeito-objeto, tendo em vista, principalmente, o domínio que o Determinismo exercia sobre ciências como História, Sociologia e Psicologia. O desenvolvimento das idéias de Husserl culminou na moderna fenomenologia, que deve ser entendida, não como teoria, mas sim, como atitude filosófica diante do mundo, visando a apreensão mais rigorosa da realidade dos fatos. Exatamente, a Fenomenologia nega haver dicotomia sujeito-objeto, e estabelece, originalmente, uma relação sujeito-objeto.

Partindo do princípio da relação original sujeito-objeto, define-se uma intencionalidade da consciência: toda consciência está voltada para um objeto, assim como todo objeto está voltado para uma consciência. Neste ponto, pode ser lembrado famoso exemplo a respeito da macieira: ao contemplar a macieira em flor no jardim, percebo este objeto (a macieira). Em seguida, sou capaz de re-apresentá-Ia, a partir de minha imaginação, em minha consciência. Deste modo, em princípio, há duas macieiras em flor: uma primeira macieira em flor no jardim, objetiva, ativa sobre minha percepção visual; e uma segunda macieira em flor re-apresentada em minha consciência, voluntariamente desenhada por minha imaginação. Pode-se fazer a seguinte indagação: qual das duas macieiras em flor é a verdadeira? A macieira em flor que está no jardim e me alcança através de meus órgãos sensoriais, estando eu receptivamente passivo, ou a macieira em flor que ativamente re-apresento em minha consciência? É possível conceber uma terceira macieira em flor para ser a verdadeira?

A proposta fenomenológica é: partir da macieira-em-flor-no-jardim-enquanto-percebida-por-determinada-consciência, para que se possa chegar à macieira mesma, à essência da macieira. A atitude que distingue a percepção-da-macieira-em-flor-no-jardim busca eliminar ao máximo, idealmente, todos os elementos que possam macular a consciência pura e turvar a essência do objeto.

Em primeiro lugar, é preciso trabalho intelectual objetivando despojar a consciência de pré-juízos ou pré-conceitos que possam impedir sua presença ingênua diante do objeto. Esta tarefa de depuração da consciência é conhecida como reflexão radical. Evidentemente, não se pensa alcançar inteiramente a eliminação dos pré-conceitos, porém, ao menos, colocá-Ios em suspensão, de modo que, em sendo deles consciente, não venha a consciência por eles ser maculada.

Em segundo lugar, é necessário despojar o objeto de tudo aquilo que não lhe é essencial. Esta operação de apreensão (ingênua) da essência do objeto se intitula intuição da essência.

Para exemplificar, rapidamente e de modo simples, o que significa essência de um objeto, recorramos ao objeto cadeira: cadeira é objeto composto de assento, pés e encosto. Consideramos uma cadeira com quatro pés, um espaldar com braços e o assento. Se retirarmos um dos pés, a cadeira continuará a ser cadeira: cadeira de três pés. Se, continuando, eliminarmos um dos apoios do braço, ou mesmo os dois, o objeto ainda resistirá e permanecerá sendo cadeira, cadeira de três pés e sem apoio para braços. Porém, se simplesmente retirarmos o assento, o objeto não mais será cadeira, a cadeira desaparecerá. O mesmo aconteceria se eliminássemos o encosto ou pés.

A depuração de um objeto pode ir até o ponto onde sua essência não é atingida; a depuração de um objeto necessita ser realizada até o limite máximo para alcançar a essência deste objeto. A essência vem a ser definida como consciência de impossibilidade: a essência é aquilo que, sendo atingido, faz perecer o próprio objeto. O processo de alcance da essência por meio da depuração se chama redução fenomenológica.

Na condição de entidade humana, não apenas apreendemos a essência do objeto, mas também atribuímos-lhe um significado. Assim, a cadeira é mais que objeto composto de pés, assento e espaldar; é objeto destinado ao sentar-se, é uma mobília. Ao mesmo tempo em que se intui a essência, apreende-se o significado do objeto. Esta operação de apreensão do significado da essência do objeto percebido se denomina intuição eidética.

Essas operações descritas devem ser consideradas simplesmente sob o ponto de vista didático, pois como forma de conhecimento intuitivo, o conjunto do processo fenomenológico se dá de modo imediato. A apreensão fenomenológica abarca tão-somente o que é dado à consciência naquele determinado momento. Deste modo, o presente adquire dimensão capital. No que diz respeito à Psicologia, são valorizadas as vivências acontecidas naquele momento: o passado existe enquanto passado aflorando no presente, assim como o futuro existe enquanto futuro surgindo no presente como pretensão. Ou mais precisamente, o que existe é o presente-presente, o passando enquanto presente-pretérito, e o futuro enquanto presente-futuro. Todas as dimensões temporais da existência do homem afloram em cada momento no presente. Existe o presente.

Ao propiciar o encontro da consciência pura com o significado da essência do objeto, a Fenomenologia busca atingir as coisas mesmas, e usufruir de conhecimento o mais próximo possível da realidade. Nesta apreensão fenomenológica há um compromisso epistemológico entre sujeito e objeto.

Um exemplo de atitude fenomenológica em Psicologia Social. Em nosso meio social, o senso comum atribui ao homem político, características socialmente desfavoráveis. Esta atribuição deriva do pré-conceito de que todo político tem baixa condição moral. As influências da cultura e do meio social atuam direta e constantemente sobre a consciência do sujeito, de modo a impedir que, agora, diante de um político (um novo político) possa considerá-Io originalmente, e obter conhecimento real deste específico homem político. A correção deste falseamento de captação da realidade imediata, feita através da atitude fenomenológica, obriga o sujeito eliminar, ou ao menos suspender esses pré-juízos, de modo a deparar-se limpidamente com o objeto, considerando-o como algo novo que lhe é dado à consciência a partir daquele momento, e naquele momento.

Outro exemplo. Deparamo-nos com uma pessoa chorando. O senso comum leva o sujeito, de imediato, a afirmar que esta pessoa se encontra triste. Porém, outro sujeito poderia refutar afirmando que, ao contrário, esta pessoa chora por se sentir alegre. Estas atribuições de significados, tais como outros que se possa imaginar, decorrem, como se vê, de algo inteiramente estranho ao objeto. Se quisermos nos aproximar da realidade da pessoa chorando, teremos de buscar a apreensão da vivência original desta pessoa chorando neste momento. A pergunta "por que está chorando?" implica direcionar a consciência do objeto a eventuais situações pretéritas motivadoras do estar chorando agora. Esta simples pergunta "por que…?" retira do objeto a originalidade e o conteúdo da vivência presente, transtornando-a com recordações. A atitude fenomenológica indica qual a pergunta a permitir que se conheça o que a consciência do objeto (da pessoa chorando) experimenta, do que se dá conta naquele momento. Uma pergunta possível: "O que sucede?"

A Fenomenologia propicia forma de pensamento intuitivo, holístico, e, portanto, imediato, onde é essencial a vinculação sujeito-objeto.

Consideremos, a seguir, outro modelo de conhecimento fundado na dicotomia sujeito-objeto.

A Psicanálise é fundada em princípios gerais da ciência da segunda metade do século XIX. Estes princípios têm como base a concepção científico-natural. Os elementos eram considerados sob ponto de vista objetivo, e relacionados a determinadas causas específicas. Procurava-se, a partir de experiências repetidas sob mesmas condições, a definição de causas, do desenvolvimento, conseqüências e resultados dos fatos. Essas experiências repetidas possibilitavam estabelecimento de leis e posterior elaboração de teoria. A repetição sistemática, sob mesmas condições, de determinada experiência, permitia previsibilidade sobre futuras experiências desenvolvidas nas mesmas condições que as anteriores de base. Este método científico-natural, explicativo-causal, propicia a generalização. Deste modo, a teoria construída passa a orientar o desenrolar do conhecimento do próximo evento.

Estória conhecida no meio filosófico ilustra a problemática desse tipo de postura científico-natural. Certo dia, um homem adentra em galinheiro, com porção de milho em sua mão aberta. Ao percebê-Io ao pé da porta, a galinha dispara a correr em sentido oposto. No dia seguinte, novamente o homem volta ao galinheiro trazendo milho na mão aberta. Ao vê-Io, a galinha corre, porém, após alguns metros, interrompe a fuga e se põe a observar o visitante. No terceiro dia, repetindo-se a chegada do homem, a galinha corre alguns poucos passos, e novamente observa-o parado com a mão aberta e cheia de milho. A galinha não corre, permanece parada, atenta ao milho na mão do homem. Agora a galinha se aproxima e ensaia bicadas no milho. Mais um dia, e encontramos a galinha na panela do homem que, até ontem, oferecia milho em sua mão aberta.

O que vale para um, não serve para outro. O que valeu ontem, talvez não tenha mais serventia no dia de hoje. Desde há muito não se procura mais confirmação de postulados de teoria. Ao contrário, hoje vinga o princípio de que determinada teoria científica é tanto mais verdadeira quanto mais refutada for (Popper).

A Psicanálise se apresenta como uma teoria do conhecimento psicológico do homem. A partir da investigação empírica de experiências psicológicas de  pacientes, Freud realizou seu arcabouço teórico. Interessa destacar a atitude do psicanalista diante do objeto de estudo. De posse dos conhecimentos psicanalíticos passa a investigar a experiência psicológica da pessoa, através da análise retrospectiva, visando estabelecimento de relações entre determinadas experiências-chaves anteriores e manifestações atuais. Em seguida, procura entender, ou melhor, explicá-Ias sob a ótica da teoria psicanalítica.

A par dos inúmeros desafios metodológicos da postura psicanalítica, como, por exemplo, pretender explicar por meio de leis o que é essencialmente de caráter compreensível (o psicológico movido por meio de significados), irei ater-me à questão da dicotomia sujeito-objeto. Ocorre esta dicotomia? Como se apresenta?

A relação sujeito-objeto é inteiramente mediada pela teoria psicanalítica. O investigador coloca-se diante do analisando de posse (e possuído) da teoria e técnicas por ela determinadas. A consciência do psicanalista é teorizada. Esta consciência se apresenta diante do objeto já alimentada e definida pelos postulados teóricos, ou seja, sua disposição e amplitude são predeterminadas. Neste caso, o objeto se torna objeto, não para a consciência, porém, objeto para aquela consciência teorizada. Não há, pois relação imediata, não-reflexiva, mas sim relação sujeito-objeto teorizada.

Em certo sentido, a utilização de concepção explicativo-causal para o conhecimento psicológico se mostra um conhecimento determinista, arbitrário e totalitário. Determinista porque indaga a respeito da causa já admitida e estabelecida pela teoria; arbitrário porque não concede ao objeto a possibilidade de revelação de seu próprio genuíno caráter; e totalitário porque impõe a todos os objetos uma única visão abarcadora.

Ao confrontar a forma de conhecimento psicanalítico com a atitude fenomenológica, podemos concluir que a Psicanálise, ao efetuar a dicotomia sujeito-objeto:

1. ignora a essência original do objeto, e a reduz a um elemento da teoria;

2. o significado do objeto é desconsiderado em função da pretensão de verdade fornecida por algum postulado da teoria;

3. o objeto não revela seu caráter original e se torna aquilo que a teoria concebe e concede;

4. o sujeito se apresenta frente ao objeto com a consciência nutrida e dirigida pela teoria;

5. a consciência preconceituosa não realiza a operação reflexiva, ou seja, a apreensão momentânea é mediada pela consideração de causas (pretérito);

6. e, por fim, a teoria se apresenta como objeto intermediário, prejudicando a consciência do sujeito e impedindo-o de ir ao encontro do significado do objeto, de modo ingênuo.

A teoria retira do objeto sua própria liberdade.

Ou, não! Estou ciente que muitos dizem:- "É melhor ter uma teoria, do que não a tê-la!"

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