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Entendendo a realidade em psicanálise

“Na vida mental individual o outro aparece sempre integrado, como modelo, objeto auxiliar ou adversário e, deste modo, a Psicologia individual é ao mesmo tempo e desde sempre, Psicologia social num sentido amplo, mas plenamente justificado” (S. Freud – “Psicologia das Massas e Análise do Ego”).
Se a psicanálise é uma viagem para o interior do sujeito psíquico, tenderemos a nos indagar como será sua relação com a realidade, com fatos e contextos sócio-políticos e históricos. Ou, ainda, para onde tenderão as psicanálises nesse lidar com “dados de realidade”? Partiremos inicialmente da noção que a prova de realidade* é algo que já foi conceituado por Sigmund Freud, dando-lhe lugar de destaque entre as funções do ego.

Abordar esse tema, algo muito complexo, exige que para isso tenhamos que inscrevê-lo em alguma ordem. Utilizaremos, então, basicamente, uma leitura em Freud e conceitos importados dos institucionalistas no livro “Questionamos a psicanálise e suas instituições” e dicionários de psicanálise. Tal método se impõe para que não corramos o risco de perdemo-nos em emaranhados conceituais diversos. Se a tarefa mostrar-se insatisfatória, poderemos abordá-lo em outros textos da coluna, em datas subseqüentes.

* “Processo postulado por Freud que permite ao indivíduo distinguir os estímulos provenientes do mundo exterior dos estímulos internos…”(Laplanche e Pontalis – “Dicionário de Psicanálise”)

Em sua obra, Freud, desde muito cedo, diferenciou realidade interna de realidade externa, embora o atravessamento de uma em outra seja sempre uma constante, algo quase indissociável, sem que com isso se perca partes fundamentais de uma ou de outra. Mas, devemos entender também uma conceituação do que se denominaria de realidade e que estará próximo, sendo ainda assim diferente do que na obra freudiana se conceituará como mundo exterior e todas suas representação que aparecerão também como constituintes do psiquismo. Levaremos em conta aqui o real como aquilo que fornece dados pela “prova de realidade”.

Os sentimentos sociais repousam em identificações com outras pessoas, na base de possuírem o mesmo ideal do ego**”.(“O Ego e o Id” in “Obras Completas – vol XIX- Sigmund Freud)

** “Instância da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com seus substitutos e com os ideais coletivos”(Laplanche e Pontalis – “Dicionário de Psicanálise”). Diferenciado de ego ideal, objeto de outra conceituação.

Entenderemos, então, em primeiro lugar, que essa noção de realidade é algo dado também a partir de uma subjetividade. Não há uma oposição bem demarcada entre o que está inscrito no que o senso comum entende como o real daquilo que foge a ele. Entretanto, caberá também esclarecer que, em nenhum momento, se concluirá pela total relatividade do que é real comparativamente com o que está no imaginário ou no ilusório. Há também no que conceituamos como real uma “concretude” presente em sua avaliação, embora nem sempre isso possa ficar tão claramente posto, ainda mais quando cogitamos de situações de excepcionalidade ou de patologias psíquicas. Fato é que só podemos estabelecer alguma realização e satisfação se conseguirmos transportar nossos impulsos e realizá-los no real. Sonhar, fantasiar e “imaginar” são tarefas que poderão ser deliciosas, mas que gerarão nos sujeitos desejantes a necessidade de efetuar uma descarga em objeto anaclítico, ou seja, encontrar no real(aqui entendido como mundo externo) uma situação ou alguém onde realizar suas aspirações, longe e afastado de seu núcleo narcisista. Isso é condição intrínseca daquilo que chamamos psicanálise.

É preciso que se resgate a questão da realidade dentro dela, mesmo que isso, no momento, nos confunda pela atualidade da discussão sobre a virtualidade.

A questão de sublinharmos a instância do real dentro da psicanálise reveste-se de um caráter que ultrapassa uma preocupação teórica; ela nos remete a salvaguardar a psicanálise de usos políticos e alheios à ela. Ou ao uso adaptativo que se vê presente em alguns movimentos que dela querem se apropriar.

“Assim sendo, a psicanálise pode ser considerada como fato científico, como acontecimento histórico-social, como ideologia em si mesma ou como integrante de uma ideologia. E isto é válido para todas e para cada uma de suas componentes: a terapêutica, a investigação e a teoria.” (in “Questionamos a Psicanálise e suas Instituições” – José Bleger – “Psicanálise e Marxismo”)

E, se assim o é para seu corpo teórico, assim também será para o sujeito psicanalista, para o sujeito analisando e a realidade onde se inscrevem na relação transferencial/contra-transferencial. Esse sujeito que algumas correntes dentro da psicanálise desejam pinçar, deixar alheio a tudo que o cerca, e, nessa forma, termina por se apresentar como uma hipótese de difícil comprovação.

Sob roupagem tão peculiar uma nova corrente da Medicina o vem fazendo de maneira radical, com a tentativa de debitar todo o sofrer humano às causas de natureza bioquímica, e não como resposta as situações de conflito e inerentes à gênese daquela angústia que tem nascedouro no embate entre a demanda pulsional e os impedimentos civilizatórios. Mas, se muitos querem restringir o antagonismo apenas a tais abordagens (neurociências X psicanálise), deveremos estar alertas de que muito há dessa movimentação, dentro da própria psicanálise, dela constituinte, como algo que implica em certo impulso próprio da destrutividade pulsional inerente a todo “fazer” humano.

“Na análise o conhecimento da realidade se faz a partir da realidade transferencial. Suas dimensões virtuais estão em função da forma em que a mesma é trabalhada. Entre a realidade transferencial e a realidade ‘exterior’ existe um contínuo e não um corte” (“Realidade e Violência no Processo Psicanalítico”, in “Questionamos a Psicanálise e suas Instituições”).

Trataremos em outra oportunidade, dentro dessa coluna, do tema da neutralidade do psicanalista, quando abordada dentro da leitura contextualizada desse real. Por ora, deixaremos isso apenas lembrado e sublinhado.

É preciso situar primeiramente esse real, que é também instância, dentro da psicanálise(Realidade). Apoiar esse psiquismo no planeta onde habita, interage, atua e realiza suas ações motoras que lhe fornecem a possibilidade corpórea de satisfação.

“É necessário redefinir o que se entende por realidade.

Concebemo-la como algo dado? Como fato consumado, como ordem estabelecida?

Ou como conexão e construção sempre móvel de nossa práxis?”ª

“A realidade humana é uma realidade psicológica e esta é sempre uma realidade social”ª

ª(in “Questionamos a Psicanálise e suas Instituições”- “Violência e Agressão ou Violência e Repressão?” – Gilberta Royer de Garcia Reinoso)

Embora a psicanálise, em muitos momentos e em alguns recortes feitos por correntes dentro de sua história, tenha sido incontáveis vezes avaliada como desligada de uma capacidade de inserção desse homem que estuda e seu aparelho psíquico na realidade que o circunda, ela, na verdade, desenvolveu-se sempre trazendo para dentro de seus constructos teóricos, dentro deles e deles fundadores, toda a questão da realidade. Terá em seu desenvolvimento esse aparelho psíquico a chamada prova de realidade operada pelo ego e todas as identificações que se construirão a partir do complexo de Édipo e de seu herdeiro, o superego, tão responsável pela inserção desse homem no mundo que o acomoda, como sublinhamos anteriormente. Essas serão sempre questões intrínsecas ao método psicanalítico, não podendo dele ser retiradas, sob pena de que a desfiguremos significativamente. Os chamados textos antropológicos de Freud nos fornecem a dimensão exata dessa importância. Mesmo que atualmente se discorde de alguns de seus postulados, há muita compreensão contida neles que hoje são mais importantes que nunca dentro do processo de apreensão do real pelo campo psicanalítico.

“Originalmente, com efeito, tudo era id; o ego desenvolveu-se a partir dele, através da influência contínua do mundo externo” (in Freud – “Obras Completas” – vol XXIII – “Esboço de Psicanálise”)

Hoje se entende essa realidade como preenchendo os requisitos para ser abordada enquanto instância do aparelho psíquico. Teremos também o conceito de “prova de realidade” que determinará a direção do investimento ou a retração da libido, modificando, dessa maneira, toda a economia do funcionamento mental. Inevitável que nos perguntemos o que essa “realidade”, representada pelo “mundo externo” com seus vínculos afetivos e seus laços sociais, pedirá a esse sujeito psíquico e, conseqüentemente, o quanto que a psicanálise compactuará ou não com distorções perversas que poderão estar se originando do tal conceito de real.

Como esse sujeito lida com seus dados de realidade falará muito de como se organiza internamente; ou falará tudo, eis que seu mundo interno acontece e atua dentro de uma realidade extra-corpórea e fundamentalmente composta por vínculos sociais “normais” ou “patológicos”, “neuróticos” ou “psicóticos”, objetais ou narcisistas etc

“O indivíduo deve ser pensado como um ser cuja existência é social desde o primeiro dia de sua vida: seu ambiente não é um ambiente natural, mas social; seu intercâmbio com este vai estruturando a realidade como uma realidade psíquica, realidade simbólica na qual toda experiência é experiência ‘objetal"(“Questionamos a Psicanálise e suas Instituições” – Gilberta Royer de Garcia Reinoso – “Violência e Agressão ou Violência e Repressão?”)

Então, se queremos hoje pensar a psicanálise em atuação perante a realidade na qual se inscreve o sujeito que a procura, teremos que pensar, no mínimo, em “libertá-la do divã”, sem torná-la um produto ou um bem de consumo, que é seu outro grande risco – talvez mais grave que o de cair na obsolescência. Porque se há algo ao qual ela deve “resistir”, em nome de uma razoável autonomia do desejo, esse se traduz exatamente em que não sucumba ao ato de “curar”. Curar quem e para quê? E de quê? Essas são formulações que têm que estar presentes no campo onde ela trava seu combate. Libertar tem um significante bem diferente de adaptar. E dar voz nem sempre é acolher e acomodar.

Esse sujeito, nesse nosso tempo, busca a escuta psicanalítica porque a realidade o assombra tanto que todo seu corpo desobedece à lógica da intenção de objeto, apontada pela formulação psicanalítica. Entre a criança hiperativa e o adulto em pânico há uma fala que precisa ser amplificada, dita, encontrada. Para tanto busca-se a psicanálise. Quem a busca e quem tem a função de operacionalizá-la estão obrigados a saber disso já em seu primeiro olhar, como o olhar da mãe que nomeia aquele que nasce, que surge enquanto existência – condição sem a qual não se alcançará construir o caminho para a “escuta psicanalítica”. Assim não seja e transformaremos a existência da psicanálise em prática curativo-normatizadora dos conflitos postos em andamento pela tarefa de viver. Sob tal aspecto teremos que concordar com Wilhelm Reich, quando supõe que cada tratamento é único e intransferível, embora saibamos que mesmo com sua genial obra “Analise do Caráter”, não é ele tido mais, ou lido, como psicanálise, mas apenas como a um dissidente desta.

É por tal prisma que se pode afirmar que não haverá leitura de um real sem que entendamos, como Freud já havia feito desde os primórdios da Psicanálise: que este real, funda e atualiza esse sujeito em análise e as situações aonde ele vivencia seus sintomas, conflitos e gratificações. Todas essas questões também dizem respeito ao outro sujeito pretensamente suspenso de seu desejo, o psicanalista, que não deverá ter em mente outra busca que não seja a de ler aquele inconsciente, favorecendo-lhe uma descoberta da saída da sua conflitiva dinâmica. Isso será o que estará posto como função, na figura do psicanalista, que deverá atuar sem interferir ou encaminhar, como constitui a formulação do conceito de “atenção flutuante” (“Recomendações ao médicos que exercem a psicanálise” – in “Obras Completas” – vol XII – Sigmund Freud)

Entender sem querer dar a saída aliviadora e urgente, não tendo como única intenção a remissão dos sintomas de seu paciente, como se somente isso importasse – e sim buscar o mergulho na angústia, para sua elaboração e transformação em ação modificadora. Embora, deixemos bem claro, que tal seja a meta de todo profissional enquanto desejo presente no setting, diminuir e retirar o sofrimento de quem o procura. Há nesse busca uma construção de uma ética sem a qual ficará prisioneiro do medo de fracassar. Esse fracasso tem uma característica de elaboração para o psicanalista, como bem explica Nahmann Armony em sua obra, que deixo aqui a recomendação de leitura, “Psicanálise – Da Interpretação à Vivência Compartilhada”:

“Neste nível o temor de fracasso refere-se a uma situação de desprestígio profissional, entrando em cena a sociedade, o conjunto de pessoas que têm uma opinião sobre o trabalho do terapeuta”

Se falha e há a colisão, as feridas também o alcançarão. Porque, antes de tudo, há o desejo do psicanalista, aquele que possibilitou a existência desse setting.

Por outro lado:

"É fundamental que a relação analítica se assente em um chão de humanidade, sem que o que as palavras ficam vazias de afeto e, portanto, vazias de sentido. É preciso que haja uma ligação autêntica, verdadeira, embora os limites que o trabalho analítico impõe."(N.Nahman- citado acima).

Contornar a tentação de parecer aos olhos de seus vínculos sociais como “eficiente” no sentido de suprimir rapidamente os efeitos provocados pelo ato de viver com suas necessárias angústias e graus variados de ansiedade como resposta aos vínculos com o mundo externo – ainda que seja também constituinte do desejo do psicanalista o ajudar a retirar o sofrimento e sintomatologia de seu paciente. E, afinal, dar-se conta que sofrer de ansiedade em Bagdá ou em Viena terão respostas diante da realidade, significadas de maneira e gradação diferenciadas, embora aconteçam e partam de um mesmo aparato psíquico.
E mesmo com essa disposição lembrar daquilo que Freud sempre fez questão de ressaltar ao longo de toda sua obra, quer em seus textos mais teóricos, quer naqueles vivamente técnicos. Freud nos faz lembrar:

"Recusamo-nos, da maneira mais enfática, a transformar um paciente que se coloca em nossas mãos em busca de auxílio, em nossa propriedade privada, a decidir por ele o seu destino, a impor-lhe os nossos próprios ideais, e, com o orgulho de um Criador a formá-lo à nossa imagem* e verificar que isso é bom" (“Obras completas” – vol XVII – artigo: "Linhas de progressos na terapia psicanalítica" – p 207)

*Imagem essa que poderá estar representando aquilo que introduz no setting e na “atuação” profissional enquanto o que seja procurado como sua meta, assentada naquilo que entenderá como a tarefa da psicanálise.

Levar em conta a realidade, no que se refere às exigências do mundo exterior, onde se origina essa relação transferencial, será dar voz e chão, no sentido próprio do caminhar juntos ao encontro de:

“Pensar, realmente pensar, é pensar o novo: o novo emerge sempre como angústia; o que me falta, aquilo de que estou separado e necessitado de integrar; totalmente separado não, senão não sentiria a falta, não sentiria o desgarrar.
Emerge como meu, mas em grave conflito; estendo a mão e apenas o toco. Tenho de fazê-lo sentir que eu também lhe faço falta, tenho de me entregar a ele, correr o risco”

(J. Carlos Pla – “El Grupo Familiar”, citado em “Questionamos a Psicanálise e suas Instituições”, pág.184)

Obs.:Agradeço pela revisão, leitura e considerações mais que pacientes,da amiga Lisete L. de Sílvio

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