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Nietzsche precursor da psicanálise

Resumo

Considero haver encontrado na obra de F. Nietzsche os fundamentos para os principais conceitos desenvolvidos por S. Freud que resultaram na psicanálise. Para demonstrá-Io são citados e discutidos trechos da obra do filósofo alemão versando sobre: o inconsciente, os sonhos, a sexualidade, o narcisismo, rudimentos do que se poderia chamar de um aparelho psíquico e da vontade de potência. São, por fim, assinalados os conselhos que Nietzsche faz aos psicólogos do futuro e sua apologia da psicologia a qual ele chamou de "a rainha das ciências".

"Que filósofo, antes de mim, foi psicólogo e não precisamente um grande "charlatão", "um idealista"? Antes de mim não havia psicologia de espécie alguma. Ser o primeiro neste ponto pode ser maldição; de qualquer forma é uma fatalidade, pois sou depreciado precisamente por ser o primeiro."

F. Nietzsche – "Ecce Homo"

Quando no seu trabalho "Múltiplos interesses da psicanálise" Freud fez a afirmação de que os filósofos até então tratavam o inconsciente como algo místico, identificando…"o psíquico com o consciente, deduzindo daí que algo que era incon­sciente não podia ser psíquico"(1), cometeu uma grande injustiça com os que o precederam. Mais do que isso, desconheceu aquela quase lei segundo a qual os pensa­dores são "filhos" do seu tempo e mais "colhem" certas idéias amadurecidas pelo trabalho de seus antecessores do que propriamente criam algo "do nada". Ninguém sintetizou tão bem essa idéia como o fez K. Marx ao dizer que os filósofos não brotam do chão como cogumelos da noite para o dia e aparentemente do nada.

Aquilo que tentarei demonstrar é que quando Freud iniciou os seus trabalhos no campo da psicologia, os quais resultaram na maior revolução na maneira da humanidade olhar para si própria, as bases para todo o "edifício teórico" por ele erguido haviam sido lançados por F. Nietzsche. É bom que se assinale que, em minha opinião, isso em nada diminui a grandeza e o alcance da obra do pai da psicanálise.

O inconsciente

"O homem era o animal que corria mais perigos, tinha maior necessidade de ajuda e proteção; tinha necessidade de seus semelhantes, necessitava exprimir seus desgostos, tomar-se inteligível e por tudo isso necessitava da Consciência. Precisava saber o que lhe faltava… saber o que pensava. Pois eu repito, o homem, como qualquer ser vivo, pensa ininterrupta­mente sem o saber e o pensamento que se torna cons­ciente é apenas a menor parte, digamos: a parte pior e mais superficial, pois esse pensamento só é consciente quando se efetua com palavras, isto é, em signos de comunicação.(4)

Na mesma obra Nietzsche desfechou um golpe terrível na "razão" tão engrandecida pelos pensadores idealistas ao dizer ser ela apenas uma… "determinada relação dos instintos entre si… Por muito tempo considerou-se o pensamento consciente como o pensamento por excelência. Somente agora co­meçamos a entrever a realidade… a maior parte de nossa atividade intelectual se efetua de um modo in­consciente e sem que nos apercebamos.(4)

Os sonhos

As referencias à importância dos sonhos são muitas na obra de Nietzsche, mas vamos nos limitar a um trabalho seu da juventude: "A origem da tragédia no espírito da música".

"Foi no sonho que, na expressão de Lucrécio, pela primeira vez se manifestaram as esplêndidas imagens dos deuses às almas dos homens… O artista examina minuciosamente os sonhos por que sabe descobrir nessa pintura a verdadeira interpretação da vida."(9)

"Ouvi também dizer que certas pessoas gozam da faculdade de prolongarem o mesmo sonho por três noites consecutivas ou mais. Esses fatos confirmam evidentemente que a nossa natureza mais íntima, o fundo comum de nosso ser, encontra um prazer indis­pensável e uma alegria profunda na imensa paixão de sonhar."(2)

"Do mesmo modo que das duas metades da vida, a vigília e o sono, a primeira nos parece incompara­velmente mais perfeita, mais importante, mais séria, mais digna de ser vivida, se não a única vivida, assim também desejaria eu sustentar (por mais paradoxal que pareça) que o sonho das nossas noites tem importância análoga para a essência misteriosa da nossa natureza para a intimidade de que somos a aparência exterior."(2)

A sexualidade e a sublimação

"Todos os antigos juízos morais estão de acordo neste ponto: é preciso destruir as paixões… A igreja combate as paixões através o método da extirpação radical; seu sistema, seu tratamento é a castração. Não se pergunta jamais: Como se pode espiritualizar, embelezar e dina­mizar um desejo?… Mas, atacar a paixão na sua raiz é atacar a raiz da vida; o processo da igreja é nocivo à vida… A hostilidade radical, o ódio votado à morte da sexualidade é um sintoma grave que dá margem para se fazer suposições sobre o estado geral de um ser que atinge esse excesso."(6)

"Platão diz com uma inocência para a qual se ne­cessita ser grego, que não haveria filosofia platônica não tivessem existido formosos mancebos em Atenas, posto que sua contemplação é que transporta a alma dos filósofos a um delírio erótico e não lhe deixa ponto de repouso."(6)

"Pregar a castidade é um incitamento público a atos contra a natureza. O desprezo da vida sexual, a sua associação com o conceito de "impureza", é um ver­dadeiro delito contra a vida; constitui um verdadeiro pecado contra o espírito santo da vida."(7)


O aparelho psíquico e a "economia" psíquica

Nesse ponto as associações tomam-se necessariamente mais sutis, uma vez nos aproximamos talvez da mais sofisticada elaboração teórica de toda a obra de Freud.

É ainda na sua: "Origem da tragédia"… que Nietzsche discute como os gregos superaram a barbárie dionisíaca dos asiáticos onde…

"Quase por toda parte o objeto dos seus regozijos era uma licença sexual desenfreada, cujo fluxo exube­rante não se detinha respeitoso perante a consangüinidade e transpondo os limites da moral, submergia as leis veneráveis da família… Contra o desregramento febril dessas festas… estiveram eles protegidos durante algum tempo pela brilhante estátua de ApoIo, orgu­lhosa, altiva… Esta resistência tornou-se, porém, mais difícil e acabou por ser impossível quando, das raízes mais profundas do helenismo, começaram a surgir se­melhantes instintos. Então limitou-se a ação do deus do Delfos a tirar das mãos do seu terrível inimigo as armas mortíferas, concluindo uma aliança no momento oportuno. Esta aliança é o momento mais importante da história do culto grego… Foi uma reconciliação dos dois adversários, com a delimitação rigorosa das fron­teiras que, de futuro, nenhum poderia transgredir; uma reconciliação seguida de trocas periódicas e solenes de presentes; no fundo, o abismo permaneceu.(2)

Nietzsche demonstra ainda o quanto nas festas dioni­síacas buscava-se a desindividualização através a disso­lução do eu para a qual lançava-se mão do álcool, das máscaras, ou, para usar uma expressão sua, eram orgias que simbolizavam o retorno ao Uno Primordial (o "Inde­terminado" de Anaximandro ou aquilo que teria dado origem a todas as coisas).Teria sido ainda naquelas festas que… "pela primeira vez o alegre delírio da arte invadiu a natureza. Pela primeira vez nelas, o aniquilamento do princípio de individualização tomou-se um fenômeno ar­tístico". Mas, por mais apolíneos que os gregos se sentis­sem, e disso não estamos livres nós, seus herdeiros…"

"Com uma estupefação tanto mais profunda quanto mais um arrepio de pavor se imiscuía no seu pensa­mento de que, afinal, tudo isso não lhe era inteiramente estranho; sim, na idéia de que a sua consciência apolínea não era mais do que um véu que cobria esse mundo dionisíaco."(2)

O paralelo entre o "id" e o "superego" freudiano e o dionisíaco e o apolíneo de Nietzsche é óbvio, até por que como disse certa vez… "E que diremos do eu! O eu chegou a ser uma lenda, uma ficção, um jogo de palavras."(6) Além disso a idéia de que por baixo de tudo e fornecendo a energia para todos os processos da mente humana estaria o dionisíaco de todos nós, também foi desenvolvida por Freud que atribuiu papel parecido ao id no seu "O id e o ego".

Narcisismo e resistência contra crescimento

"Agora tu vês como erro alguma coisa que estimaste como uma verdade, ou pelo menos, como uma proba­bilidade. Rejeita-a para longe de ti e imaginas que tua razão logrou uma vitória. Mas pode ser que então, quando eras ainda um outro – sempre se é um outro – aquele erro te fosse tão necessário quanto todas as ''Verdades'' atuais, como uma espécie de pele que te envolvesse e velasse muitas coisas que não deverias ver ainda. Foi tua vida e não tua razão quem matou por ti aquela opinião. Não mais necessitas dela e ela submerge em si mesma… Quando exercemos nossa crítica e nisso não há nada de arbitrário e impessoal ­é pelo menos uma prova de que existem, com freqüência, em nós forças vivas e ativas que nos liberam de uma crosta. Negamos e é preciso que neguemos, pois alguma coisa em nós quer viver e se afirmar, algo que não conhecemos, que não vemos, talvez, ainda."(4)

"A aprendizagem nos transforma; da mesma forma que a alimentação que não apenas conserva… Mas, no fundo de nós, lá embaixo, existe algo que não aprende um granito de fatum (destino) espiritual de decisões e respostas predeterminadas a seletas pergun­tas predeterminadas. Em todo problema cardinal fala um inevitável sou eu."(5)

Para se utilizar uma linguagem atual, talvez se pudesse dizer que o "granito" a que se refere Nietzsche seria uma espécie de Hard disk" o qual daria a marca de cada personalidade e cuja alteração implicaria na sua "morte" seja por lesão orgânica, esquizofrenia ou outras causas possíveis.

Os processos assinalados por Nietzsche nas duas ci­tações seriam válidos para o desenvolvimento normal das personalidades em geral, e as suas considerações certa­mente ajudam a alertar para as resistências naturais ao crescimento verificadas na educação e também nas psi­coterapias. Além disso, tanto o amadurecimento, como a resistência, a ele poderiam dever-se a experiências de vida ou modificações do corpo, sejam as decorrentes da evo­lução natural do organismo ou as patológicas.

Instinto de vida x Vontade de potência

Chegamos agora a um tema no qual seria impossível, em minha opinião, a superação dos conceitos defendidos por Nietzsche, e em torno do qual podemos mesmo dizer que Freud deu um passo atrás ao embrenhar-se em uma discussão insolúvel e talvez pouco produtiva, quanto ao choque entre o instinto de vida e um possível instinto de morte, cuja existência, muitos dos seus seguidores, nega. As citações de Nietzsche que faço dispensam comentários.

"A vontade de conservação é a expressão de um estado de desespero, uma restrição ao verdadeiro ins­tinto fundamental da vida que tende à extensão de potência e que, por essa vontade, põe em questão e freqüentemente sacrifica a auto-conservação. É preciso ver um sintoma no fato de certos filósofos, Espinosa por exemplo, tuberculoso, terem considerado o instinto de preservação como causa determinante. Eram homens em pleno estado de desespero… A luta pela vida é uma exceção, uma restrição momentânea da vontade de vi­ver. As grandes e pequenas lutas que se desenrolam por toda parte são em torno da preponderância, do crescimento, do desenvolvimento e da potência que é precisamente a vontade de viver."(4)

"Os fisiólogos deveriam refletir antes de estabelecer o impulso de auto-conservação como impulso cardinal de um ser orgânico. Uma criatura viva quer, antes de tudo, dar vazão à sua força – a própria vida é vontade de poder -, a auto-conservação é apenas uma das mais freqüentes e indiretas conseqüências disso."(5)

Onde encontrei vida, ali encontrei vontade de Potên­cia(3).

É verdade que Nietzsche também reconhece a existência de um impulso à destruição nos seres humanos, mas aqui, à maneira de um semiólogo, classifica-a de duas maneiras fazendo avançar a sua compressão:

"O desejo de destruição, mudança, vir a ser, pode ser expressão da força repleta, grávida de futuro (… "dionisíaca"), mas pode ser também o ódio do malo­grado, do desprovido, do enjeitado, que destrói, tem que destruir, porque para ele o subsistente… revolta e irrita – para entender este sentimento, vejam-se de perto nossos anarquistas."(5)

Se se tivesse atentado um pouco para as palavras de Nietzsche quantas palavras ocas ter-se-ia evitado, espe­cialmente nos meios psiquiátrico e psicanalítico onde era de uso corrente classificar aqueles que lutavam contra a opressão do governo militar, como "doentes", indiscrimi­nadamente, e a luta e seu risco inevitável como fruto do instinto de morte! Nós diríamos com Nietzsche… "Crede-­me! O segredo para colher a existência mais fecunda e a maior fruição da vida é viver perigosamente! Construí vossas cidades perto do Vesúvio!(4)

Por fim gostaria de assinalar a exaltação que Nietz­sche faz da psicologia, trazendo de novo o lema do Oráculo de Delfos "Conhece-te a ti mesmo" (a exemplo de Sócrates e Montaigne) para o centro da filosofia:

"… Toda a psicologia, até o momento, tem estado presa a preconceitos e temores morais; não ousou descer às profundezas… A força dos preconceitos morais pe­netrou profundamente no mundo mais espiritual… de maneira inevitavelmente nociva, inibidora, ofuscante e deturpadora… Uma autêntica fisiopsicologia tem de lutar com resistências inconscientes no coração do in­vestigador… Por outro lado, se o seu navio foi desviado até esses confins, muito bem! Cerrem os dentes! Olhos abertos! Mão firme no leme! Navegamos diretamente sobre a moral e além dela… Jamais um mundo tão profundo de conhecimento se revelou senão para na­vegantes e aventureiros audazes… Que a Psicologia seja novamente reconhecida como a rainha das Ciências, para cujo serviço e preparação existem as demais ciên­cias. Pois a psicologia é, uma vez mais, o caminho para os problemas fundamentais.(5) (grifo meu)

O quanto de profecia há nessas palavras chega a im­pressionar. Freud foi aquele navegador aventureiro e au­dacioso.

Referências bibliográficas

1. Freud, S. – Obras Completas. 3v. Madri: Biblioteca Nueva, 1968.

2. NIETZSCHE FW – A Origem da Tragédia no Espírito da Música. São Paulo: Editora Moraes Ltda., s/d.

3. ____ – Assim falou Zaratustra. São Paulo: Editora Abril, 1974.

4. ____ – A Gaia Ciência – São Paulo: Hermus, s/d.

5. ____ – Além do Bem e do Mal. São Paulo: Editora Schwarcs Ltda., 1993.

6. ____ – Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Hermus , s/d.

7. ____ – Ecce Homo. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, s/d.

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