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A insólita história da Síndrome da Fadiga Crônica e o Poder Persuasivo dos Gigalaboratórios Farmacêuticos – Parte I

Introdução

George Beard (1839-1883) utilizou pela pri­meira vez o termo neurastenia (astenia = fraqueza; neurastenia = fraqueza dos nervos) numa con­ferência apresentada em 1868 na New York Medical Journal Association e publicou-o, posteriormente, no Boston Medical and Surgi­cal Journal como uma doença peculiar aos norte-americanos, principalmente do Leste e Nordeste do país. Desde então, iniciaram-se dis­cussões e polêmicas, que atingiram o clímax nos primeiros anos do século XX.

A concepção de neurastenia por Beard foi in­fluenciada pela teoria da irritabilidade e exaus­tão do sistema nervoso, criada por John Brown (1735-1788), na qual ele supunha que o tônus do sistema nervoso poderia variar de um estado es­tênico para um estado astênico.
 

Histórico

A astenia nervosa foi objeto de descrição mui­to tempo antes de Beard. Já na Grécia antiga, Hipócrates descreveu a doença de Scythes, que se constituía de uma astenia geral ligada a le­sões dos órgãos genitais pela equitação. Mais tarde, Galeno denomina esta doença de hipo­condria, e Boissier de Sauvage, ampliando a teo­ria de Galeno, faz uma separação entre a hipo­condria e uma entidade clínica astênica. Tam­bém Esquirol, Baillarger e Falret descrevem as­tenia na melancolia e Brachet, a astenia decor­rente de traumatismo. Em 1764, foi descrita na França, por Bouchut, uma doença com sintoma­tologia equivalente à da neurastenia; foi chama­da de neuropatia.

É, no entanto, com Beard que a doença é di­vulgada e ganha popularidade. Ele escreveu, em 1866, EIectricity as a tonic; em 1871, Stimulants and narcotics; e o seu clássico American ner­vousness with its causes and consequences, em 1881, que foi traduzido para o alemão por Neisser quase imediatamente após o seu apa­recimento nos Estados Unidos. Concomitante­mente, Silas Weir Mitchell's (1829-1914) desenvolve o chamado rest treatment (tratamento pelo repouso), que requeria do paciente o isolamento completo, temporário e em silêncio absoluto. Es­se tratamento teria uma relação com a neuras­tenia de Beard, isto é, o desenvolvimento des­te tipo de tratamento existiu dentro da mesma concepção que influenciou a criação do concei­to de neurastenia por Beard. Em 1880, publica A practical treatise on nervous exhaustion (Neu­rasthenia) e desde então o termo neurastenia fi­ca indissoluvelmente ligado a esta síndrome de exaustão nervosa.

A descrição clínica da neurastenia por Beard foi muito ampla, comportando mais de 50 sin­tomas e sinais que podem ser agrupados em se­te principais categorias:

1) exaustão geral com cansaço e sensação de peso nas pernas;

2) espasmos musculares, cefaléias e dores mus­culares;

3) medos mórbidos;

4) insônia;

5) desinteresse;

6) diferentes manifestações do sistema nervo­so autônomo;

7) sintomas isolados como impotência sexual, frigidez, irritabi­lidade, dispepsia, náuseas, alterações visuais, e por aí vai.

Charcot reclassifica os sintomas descritos em Beard isolando os mais importantes, aos quais confere o status de patognomônicos (sinais e sintomas específicos, necessários e suficientes para designar uma determinada doença). São eles: astenia neuromuscular, as raquialgias com to­pografia cérvico-lombar, as cefaléias permanen­tes, as dispepsias com sonolência, a presença de certa distensão abdominal, constipação e, fi­nalmente, um estado mental mórbido onde se destacava uma astenia intelectual com falhas de memória e uma afetiva, tristeza e irritabilidade. Para ele, a presença dos sintomas secundários dependia dos órgãos dos sentidos afetados, as­sim como, dos aparelhos respiratório, cardiovas­cular e genital.

No fim do século XIX, alguns autores come­çam a dividir a neurastenia e criar outros con­ceitos a partir dela. Chaslin cria a noção de con­fusão mental; Pierre Janet descreve a psicaste­nia, uma espécie de viver sentimental da neu­rastenia; Barnheim distingue uma psicastenia, depressiva, uma psiconeurastenia e uma neu­rastenia simples, enquanto Hartenberg separa as neurastenias constitucionais das neuraste­nias adquiridas. Estes últimos conceitos tiveram uma grande aceitação entre vários autores. Fleu­ri (1905) considera a neurastenia uma doença acidental provocada por uma intoxicação, uma decepção moral ou um surmenage (estafa, fadiga, esgotamento, astenia) físico. Gilber­to Ballet descreveu quatro formas clínicas da neurastenia: genital, traumática, cérebro-espi­nhal e feminina.

Freud, que já em 1884 utilizava os conceitos de neurastenia, destaca-a da neurose de angús­tia. Para Freud, a neurastenia teria uma clara etio­logia sexual. Apontava a masturbação habitual como uma alteração da vida sexual que condu­ziria à neurastenia do homem, não só por uma fraqueza sexual, mas, sobretudo pela incapaci­dade de tolerar o aumento da tensão sexual. O orgasmo, constantemente renovado ao nível dos órgãos periféricos, empobreceria o sistema psíquico numa tensão sexual, provocando ce­faléia, astenia, impotência etc. Um outro aspec­to importante seria o coito interrompido (onanismo), que acabaria por levar a uma frustração do orgasmo, frustração esta que desenvolveria não a neuras­tenia, mas a neurose de angústia.

Durante a guerra de 1914, inúmeras observa­ções de neurastenia foram constatadas nos sol­dados. Reich, em 1926, admite uma base con­flitual como causa da neurastenia. Os sintomas neurastênicos seriam resultantes de um meca­nismo de conversão. À mesma época, Benon, conservando as características da neurastenia, através de uma analogia com a fadiga muscu­lar, considera a astenia psíquica como um resul­tado do acúmulo cerebral de catabólitos.

Podemos dizer que 1920 é a data que marca o início da diminuição do prestígio da neuras­tenia, aumentando concomitantemente o inte­resse pelos estados ansiosos. Curiosamente, es­te desinteresse pelos conceitos de neurastenia existiu principalmente nos USA, pois na Europa ainda era possível encontrar inúme­ras descrições da parte de diversos autores (clí­nicos, em geral) de estados neurastênicos, ape­sar de algumas vezes estas descrições existirem sob outras rubricas. Runderson (1950) observa que o desaparecimento da neurastenia dá-se através da substituição deste conceito pelo con­ceito de estados de fadiga (cansaço) relacionados com si­tuações complexas que criam dificuldades afe­tivas mais ou menos inconscientes, além de uma série de alterações funcionais menores.

Um dos últimos autores a abordar a questão da neurastenia, numa tentativa de conciliação de tese orgânica e psicogenética, foi Brun, em 1956. Para ele, a "fraqueza irritável" (heredo-constitucional) é a matriz da neurastenia e se traduz por uma fadiga inte­lectual e afetiva. A alteração fundamental, de­vido a um desequilíbrio neurovegetativo (melhor dizer, autonômico) , é acompanhada de uma disfunção na barreira he­mato-encefálica, a partir da qual o quadro clíni­co pode evoluir para uma forma psíquica mais elaborada de uma neurose do tipo hipocondría­ca. Brun distingue a neurastenia constitucional, revelando uma predisposição mórbida inata ou adquirida, devido a conflitos infantis e à neuras­tenia de surmenage, com diferentes formas clí­nicas.

Nos USA, berço do conceito de neurastenia, este termo desaparece da primei­ra edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM I) da American Psychiatric Association (APA). Esta classificação enfocava as doenças como um processo "dinâ­mico", ao invés de doenças "estáticas". Nesta classificação, os sintomas de fadiga e peso nas pernas, os quais tinham sido considerados pre­viamente como característica central da neuras­tenia, foram incluídos na categoria de "Psycho­physiology nervous system reaction".

O curioso é que, na segunda edição do Diag­nostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM lI), a neurastenia ressurge, sendo encon­trada da seguinte forma: "A neurose neurastênica (neurastenia) é caracterizada por queixas de fraqueza crônica, fatigabilidade fácil e, algumas vezes, exaustão. Diferentemente da neurose his­térica, as queixas dos pacientes são verdadei­ramente perturbadoras para eles, e não há evi­dência de ganho secundário. Difere da neuro­se ansiosa e dos distúrbios psicofisiológicos pe­la natureza da queixa predominante. Difere da neurose depressiva pela moderação da depres­são e pela cronicidade de sua evolução."

Na Classificação Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (OMS = WHO), na sua 9ª revi­são (CID-9), o termo neurastenia é mantido en­tre os transtornos neuróticos, no dígito 300.5: Neurastenia ou Debilidade Nervosa. No draft da 10ª Revisão da Organização Mundial de Saúde, o termo neurastenia é mantido, vide abaixo.

"F48.0 Neurastenia – síndrome de fadiga (o mais correto é síndrome de fraqueza)

Variações culturais consideráveis ocorrem na apresentação deste distúrbio, e dois tipos prin­cipais ocorrem com considerável superposição. Em um tipo, o principal aspecto é uma queixa de fatigabilidade aumentada após um esforço men­tal, freqüentemente associada a uma diminui­ção no desempenho ocupacional ou a proble­mas de eficiência em tarefas do dia-a-dia. A fa­tigabilidade mental é tipicamente descrita co­mo uma desagradável intromissão de associa­ções ou lembranças perturbadoras, dificuldade de concentração e, geralmente, pensamento ineficiente. No outro tipo, a ênfase é em sensa­ção de fraqueza corporal ou física e exaustão após um esforço mínimo, acompanhado de uma sensação de dor muscular e da incapacidade de relaxar. Em ambos os tipos, uma variedade de outras sensações físicas desagradáveis são co­muns, tais como, tontura, tensão, cefaléia e sen­timento de instabilidade geral. São também co­muns: preocupação sobre diminuição do bem-estar físico e mental, irritabilidade, anedo­nia (incapacidade de ter prazer) e vários pequenos graus tanto de depres­são quanto de ansiedade. O sono está freqüen­temente perturbado em suas fases inicial e mé­dia, mas pode ocorrer também hipersonia (sono em demasia).


Orientação diagnóstica

Para um diagnóstico definitivo, são necessá­rios os seguintes requisitos:

a) queixas per­sistentes e perturbadoras de aumento de fati­gabilidade após esforço mental; ou

b) queixas persistentes e perturbadoras de fraqueza corpo­ral e exaustão após o mínimo esforço, acompa­nhadas de sensações físicas desagradáveis (do­res musculares) e incapacidade de relaxar;

c) au­sência de sintomas de ansiedade ou depressão suficientemente persistentes e severas que ve­nham a preencher os critérios que caracterizam quaisquer desses distúrbios especificados nesta classificação."

Na DSM III como na DSM IlI-R, o termo neu­rastenia não aparece citado diretamente, mas aquilo que era considerado neurastenia apare­ce distribuído em diversos itens como dysthimic disorder e chronic depressive disorder, entre ou­tros.

Muitas críticas foram feitas ao conceito de neurastenia, e podemos entender o fato de ter dado origem a diversas outras síndromes como resultado de uma definição clínica sem consis­tência suficiente. Por exemplo, como se expli­ca a existência de sintomas tão variados, atuan­do em sistemas diferentes, fazendo parte de uma mesma doença? Esta relação da neuraste­nia com outros distúrbios clínicos já havia se re­velado no Practical Treatise, incluindo, entre as doenças que poderiam ser relacionadas com a neurastenia, a nevralgia, a opiomania, a melan­colia, a histeria, a histeroepilepsia, o alcoolismo e por aí vai longe.

Nemiah entende que talvez os modernos clí­nicos do Campo Psi, influenciados pelas teorias psicodinâmi­cas envolvidas com sintomas fóbicos, obsessi­vos e afins, tenham voltado sua atenção e aprofundado seus conhecimentos nestes sinto­mas, ignorando praticamente processos mais elementares envolvidos em fraqueza, cansaço e exaustão. Conclui: "Qualquer que seja a resposta a es­tas questões, o fato é que, à medida que a no­sologia (estudo das doenças) psicopatológica evolui, a neurastenia foi pro­gressivamente desnudada de sintomas até ao ponto de desaparecer inteiramente do cenário clínico. Agora, ela retorna numa forma acentua­damente atenuada e limitada, como se vê pela de­finição oficial, à fraqueza, fadiga e exaustão. Al­guém pode perguntar o quanto de útil tem esta catego­ria diagnóstica. Com que freqüencia são en­contrados os sintomas especificados (tão co­muns como sintomas concomitantes a outros fenômenos neuróticos) como uma síndrome isolada, em forma pura? É difícil responder com qualquer grau de certeza. O interesse recente pela neurastenia tem sido tão pequeno que es­sencialmente não existe, assim como não exis­tem estudos clínicos modernos que forneçam informação confiável sobre suas características como síndrome. Talvez, o valor de refocalizar-lhe a atenção esteja na possibilidade de que um renovado interesse científico para o fenômeno da fadiga, da exaustão e da fraqueza neurótica pro­porcionará uma compreensão das relações psi­cossomáticas envolvidas – relações acerca das quais é conhecido muito menos do que acerca da ansiedade e da depressão. No que se segue, portanto, deve-se ter em mente que qualquer ge­neralização clínica pode ser, na melhor das hi­póteses, tentativa e deve ser considerada um ponto de partida para posteriores investiga­ções."

Contudo, do ponto de vista clínico é in­dubitável, como afirma Brawn em seu trabalho sobre neurastenia no Tratado de Neurologia de Bunke & Forster, que existe uma grande quan­tidade de pessoas nas quais episodicamente se apresenta uma perturbação das funções nervo­sas originadas por causas que conduzem, em última instância, a uma fadiga exagerada e a um esgotamento (Erschöpfung) da força funcional, manifestada por uma síndrome cujas notas es­senciais são a vivência de fadiga, irritabilidade, mal-estar geral com insônia e desinteresse ob­jetivo. Esta é, em definitivo, uma síndrome vital na qual os casos leves tendem a uma espontâ­nea e rápida compensação com repouso e vi­da rústica. Dentre as causas mais freqüentes de seu aparecimento, ressalta este autor o exces­so de trabalho, a falta de repouso, infecções e outras somatoses, conflitos amorosos e matri­moniais, dificuldades e prejuízos econômicos, traumas de acidentes, conflitos jurídicos e eco­nômicos, alimentação defeituosa etc.

Quadro clínico

O início do distúrbio pode ser súbito ou gra­dual, assim como os sintomas podem ser epi­sódicos ou persistentes, sem remissão por um longo período de tempo. A característica cen­tral da síndrome como um todo é sua tendên­cia para a cronicidade e, freqüentemente, à se­vera incapacitação do paciente. Em função dos inúmeros sintomas descritos na neurastenia, torna-se muito difícil estabelecer um quadro clí­nico específico, principalmente pelo fato de que muitos desses sintomas, como já foi citado, aca­baram por ser absorvidos por outras rubricas. No esforço de agrupar estes sintomas, Mirou­ze, baseado numa tipografia aproximativa em que Beard descrevia uma série sintomática ("sín­drome de fraqueza irritável"), relaciona:

1) Uma sensação profunda de fadiga matinal, o que pode ser muitas vezes confundido com a angústia e o mal-estar geral que acometem o paciente com depressão maior, em função da variação circadiana desta doença (o ritmo biológico da serotonina). Os pacientes acusam uma fatigabilidade corporal e psíquica com diminuição da sua vontade de fazer coisas, ficando com o desejo de ficar entregue ao can­saço na cama;

2) Alterações do sono, com insônia noturna e a presença de sonolência diurna. Esta insônia é favorecida por um temor à insônia, que leva o indivíduo a uma pro­gressiva excitação à medida que chega o mo­mento do repouso noturno;

3) As alterações sexuais encontradas são, a im­potência e a frigidez. É importante destacar que a impotência nem sempre vem acompanhada da perda do desejo sexual. Freud vê precisamen­te no excesso de poluções masturbatórias a gê­nese da neurastenia. Porém, segundo outros au­tores, parece que o que ocorre é o oposto, isto é, que o mal-estar que estes pacientes apresen­tam provoca secundariamente uma reativação do desejo masturbador, já que esta manobra quase automática, além de um gozo compen­sador, conduz a uma lassitude e sedação mo­mentâneas do mal-estar inicial (que se observa, por exemplo, nos presos que se encontram for­çosamente reclusos em celas de isolamento;

4) Cefaléia, principalmente do tipo constritiva, chamada crânio-neurastênica, onde há um au­mento da sensibilidade do couro cabeludo, do­res na nuca e na coluna vertebral, as chamadas raquialgias neurastênicas;

5) Alterações sensoriais diversas que vão des­de dimetrias com presença de pontos lumino­sos que se deslocam diante dos olhos, até uma astenopsia neurastênica, que é o chamado "olho irritável", com queixas de dores nos olhos durante a leitura. Pode existir também sensação de voz abafada ao falar, além de outras manifes­tações neste campo;

6) As alterações psíquicas são caracterizadas por dificuldade de concentração intelectual, sen­timento de tristeza e desespero, instabilidade afetiva geral, angústias fóbicas numerosas (es­paço, doença, luz, meio de transporte etc.). A di­ficuldade de concentrar a atenção no trabalho mental e a impressão de perda da memória, im­pressão esta, na realidade, produzida por um du­plo mecanismo: estreitamento do campo dos interesses perceptivos que origina diminuição da capacidade de fixação de estímulos e, por ou­tro lado, aumento dos fenômenos de inibição cortical que dificulta enormemente a tarefa evo­cativa das recordações, constituem queixas muito freqüentes deste tipo de paciente. Não obstan­te, essa suposta dificuldade mnêmica não é efe­tiva, já que os enfermos conservam bem todos os dados referentes à evolução de uma doen­ça, inclusive com detalhes, medicamentos to­mados, conselhos, propostas, orientações dos médicos etc. Porém, realmente chama a atenção, a freqüência de queixas insistentes sobre difi­culdades mnêmicas, sendo estas talvez das mais comumentes encontradas nas consultas aos clínicos em geral. Nos casos mais severos de síndrome neurastênica, foram descritos também a falta de sentimento do eu, que, chegando a extremos, provoca no paciente a sensação de despersonalização, co­mo se sua própria pessoa lhe fosse estranha. Apesar da síndrome de despersonalização po­der apresentar-se também, como elemento mór­bido integrante de outros quadros clínicos, es­pecialmente de feição psicótica, algo como esquizo­frenias, melancolias, epilepsias etc., acredita-se que a presença mais freqüente desta síndrome ocorra nos estados neurastênicos, o que coin­cide com diversas parestesias e algias cefálicas, impressão de alheamento da realidade, pobre­za autoscópica, exacerbação da angústia com tendência à auto-agressão para comprovar que "ainda é possível sentir o corpo" ou com as cha­madas espelhofobias, ou seja, o horror à visão de sua imagem física que permite comprovar que o paciente não é mais quem era anterior­mente. Nos casos em que a impressão de des­personalização ocorre de uma forma crítica, de­ve-se pensar que pode se tratar de um equiva­lente comicial devido a um espasmo vascular talâmico. Outras vezes, a base fisiopatológica pode ser uma disorexia central, indo da anorexia à bulimia, os dois extremos deste transtorno (GD Stockings), ou mes­mo pode se tratar de um quadro hipoglicêmi­co. Mas, se o sentimento de haver perdido o eu persiste, sem existir uma típica síndrome de Cot­tard, coincidindo com os restos dos sintomas neurastênicos, teremos de pensar preferencial­mente em uma explicação psicogênica (suicí­dio simbólico da personalidade frente a uma si­tuação difícil ou intolerável – Mira y Lopes);

7) Alterações da motricidade: agitação psico­motora, pseudo-ataxias, tremores e fibrilações musculares, paralisias temporárias etc.

8) Alterações da sensibilidade: hipersensibili­dade da gengiva e dos dentes com precocida­de de cáries dentárias, formigamento, nevralgias erráticas e vagas, hipersensibilidade freqüente­mente paradoxal dos mecanismos. Sobressai a presença de hipersenbilidade da coluna verte­bral, constituindo a "síndrome de irritação espi­nhal", com raquialgias variáveis e sensação de pe­so lombar;

9) Alterações autonômicas: alterações car­díacas que dão o chamado "coração irritável ou erético" com taquicardia e desequilíbrio vasomotor. Es­tas alterações encontradas no "coração irritável" deram Iugar a outras denominações conhecidas como "coração de soldado", "síndrome de Da Costa". Atualmente, estão mais detalhadamente descritas dentro do transtorno do pânico (ataque de pânico). Hiperidrose palmoplantar, alterações da sede, hipersalivação, secura da pele e das ar­ticulações, hipersensibilidade geral ou local em função das variações de temperatura;

10) Alterações digestivas: nota-se muitas vezes uma disfagia caracterizada por dificuldade à de­glutição – os pacientes relatam não poder en­golir. Existem também queixas de uma dispep­sia astênica que costuma provocar dores variá­veis, acalmadas pela alimentação e por ansiolíticos.

11) Alterações biológicas: naquela época descri­tas como a presença, na urina, de oxalatos, ura­tos e fosfatos. Hoje, uma série de dados bioló­gicos têm identificado a presença de fadiga crô­nica como sintomatologia principal neste gru­po de pacientes.

Para George Beard, a doença seria resultado de um enfraquecimento da força nervosa, o que geraria no sistema nervoso central um funcio­namento caótico, sendo a causa desta fraque­za energética o "surmenage físico e mental" criado pelo modo de vida do povo americano, submetido a uma industrialização rápida que o forçava a despender brutalmente energia ner­vosa, cuja possibilidade de recuperação era in­suficiente. Frente a esta sucessão de descargas energéticas, o fluxo constante de movimentos seria criado, distinguindo-se um grupo de indi­víduos não-nervosos, que, com uma resistência maior à propagação deste fluxo, teriam tendên­cia a localizar alteração em uma afecção funcio­nal por vezes somática, e os indivíduos nervo­sos, cujo influxo seria responsável por alterações funcionais variadas e generalizadas, George Beard descreveu algumas variedades de neuras­tenia, entre as quais: a neurastenia cerebral ou cérebro-astenia, com desgaste cerebral e sinto­matologia psíquica, afetiva ou intelectual; uma neurastenia espinhal ou mielastenia, bastante dependente da anterior, cuja sintomatologia principal seria a raquialgia; uma neurastenia trau­mática, devido a traumatismos físicos como de­sastre de trânsito, de avião etc., ou psíquicos (traumas psicológicos). Também descreveu uma neurastenia digestiva ou dispepsia nervosa, com cortejo sintomatológico gástrico acompanhan­do o processo digestivo; uma hemineurastenia, com sintomatologia que predominava em ge­ral em um lado do corpo, principalmente o es­querdo. A histeroneurastenia atingia principal­mente as mulheres, e a neurastenia sexual, pre­ferencialmente o sexo masculino, gerando im­potência, ejaculação precoce, poluções súbitas e doenças prostáticas.

Este quadro clínico foi a seguir modificado na França por Charcot e conservado nas últimas descrições de Montassut (1938) e Raclaut (1955) sobre aspectos da trineurastenia, com astenia matinal, cefaléia e raquialgia, às quais se junta­riam alterações funcionais diversas e um esta­do mental particular, basicamente do tipo de­pressivo, com tristeza, desinteresse, sentimen­to de impotência até o extremo do chamado ma­rasmo neurastênico.


Etiologia

No final do século XIX, quando Beard ela­borou a sua doutrina da neurastenia, o mundo científico vivia sob a influência do movimento da física orientado pelas leis da termodinâmica. Como efeito do pensamento dessa época, a es­sência da natureza passa a ser a distribuição e redistribuição da energia que, em suas suces­sivas formas, deveria ter o seu equilíbrio manti­do. Com o aparecimento da Segunda Lei da Ter­modinâmica (relativa à Entropia), toda explicação mecânica que su­punha que os seres atuavam entre si por conta­to, vai originar um novo espaço, o da distribui­ção espacial da energia, que seria uma força. O modelo energético substitui então o modelo da matéria em ciência. Assim, este poder ao qual a física dos últimos decênios do século XIX ou­torga o papel da verdadeira realidade, é a ener­gia. Este modelo influi em todo o pensamento de Freud na construção da teoria psicanalítica, na existência de impulsos e na teoria das pul­sões. Como também já citei no início deste artigo, as hipóteses de John Brown sobre a teoria da irritabilidade e da exaustão do siste­ma nervoso influenciaram as concepções de neurastenia e psicastenia. Assim, podemos ob­servar uma hipótese nascida no século XVIII so­frer a influência do crescimento da física do sé­culo XIX e ser adaptada nas teorias de Beard.

O próprio termo que Beard escolheu, neuras­tenia, no grego significa "falta de força do ner­vo" (fraqueza). Para ele, a neurastenia seria a resultante de uma diminuição da energia nervosa, uma subs­tância concebida de um termo físico, mas que não era passível de definição ou de medida di­reta. Este aspecto, a impossibilidade de medir e quantificar a fadiga, ainda hoje é um proble­ma sem solução para pesquisas, sejam epide­miológicas, químicas, biológicas ou terapêuti­cas que poderiam contribuir com a compreen­são do assunto. As demais explicações teóricas para a neurastenia na realidade constituíram va­riações em torno das idéias originais de Beard. Tomemos como exemplo o próprio Pierre Janet, que também se inspirou na mesma concepção de diminuição de energia mental constitucional.        

Um outro aspecto de relevância em termos etiológicos seria o motivo da ocorrência de di­minuição de energia nervosa. Na época de Beard (segunda metade do século XIX), as teo­rias de degeneração e as teorias genéticas ga­nharam importância. As hipóteses de constitui­ção e de transmissão genética são também apli­cáveis na neurastenia. O que poderia ser levan­tado como hipótese seria uma herança negativa de má constituição apontada como fator que predisporia ao aparecimento dos sintomas, des­de que alguns fatores atuassem em cima deste terreno. As outras hipóteses estariam ligadas ao excesso de trabalho, de esforço físico ou à pre­sença de emoções prolongadas que desgasta­riam a energia nervosa, levando a uma diminui­ção que chegasse a níveis muito abaixo daque­les requeridos para um funcionamento normal.

Freud e a escola psicanalítica propõem expli­cações diferentes. Como já citei, para ele a etiologia da neurastenia seria sexual; existe em todo o seu trabalho uma constante reafirmação deste fato, que norteia, inclusive, sua teoria geral da etiologia sexual das neuroses. Para ele, os sintomas neurastênicos, seria resultado de uma excessiva dissipação da libido (energia se­xual) pela masturbação ou pelas poluções no­turnas. Em função desta causa estritamente se­xual, as práticas sexuais inadequadas conduzi­riam a uma sintomatologia neurastênica que não era, para Freud, de forma alguma relacionada a fatores hereditários ou ao excesso de trabalho, pois ele achava que estes jamais poderiam pro­vocar o quadro clínico da neurastenia. Outros autores da psicanálise seguiram Freud, como, por exemplo, Fenichel, Reich e outros.

Na vertente das versões psiquiátricas, muitos autores escreveram sobre a possível etiopato­genia da neurastenia, no sentido de procurar ex­plicar o complexo problema das relações mór­bidas do indivíduo com os seus órgãos. Pode­mos distinguir entre esses autores duas posi­ções antagônicas: as neurastenias constitucio­nais e as acidentais. Dentre os autores que de­fendiam as neurastenias constitucionais, desta­ca-se Kurt Schneider, que deixou uma impor­tante obra sobre as personalidades psicopáticas, como já vimos em outro artigo nosso da RedePsi, onde ele descreve uma personalidade astênica (fraqueza constitucional), que possui como característica central uma au­to-observação ansiosa no domínio somático (a vertente neurastênica) ou mental (a vertente psi­castênica). Ele distinguia personalidade psico­pática verdadeira (auto-observação ansiosa que altera o funcionamento somático) das constitui­ções somatopáticas que poderiam estar asso­ciadas aos traços mentais patológicos.

Apesar da grande importância do seu traba­lho e relevância incontestável dentro do campo da Psiquiatria, suas idéias não foram totalmen­te absorvidas por inúmeros outros autores, que procuraram expandir as explicações sobre a na­tureza da neurastenia em função de fatores ad­quiridos atuais e acidentais. As explicações me­canicistas diziam que em alguns aspectos pa­togênicos teríamos uma alteração de um órgão que geraria uma alteração nutricional do siste­ma nervoso. Vários autores se sucederam nes­ta explicação, dentre os quais M. Bouchard, atri­buindo à auto-intoxicação; Hayem, a um vício de nutrição de origem dispéptica; Loeven, a ações reflexas de origem gastrintestinal; Fr. Gle­nard, à enteroptose; G. Tumas, às alterações va­somotoras (em sua tese sobre a melancolia); Fé­rét, a um excesso de vibrações nas células ce­rebrais; Erb, a uma alteração íntima da nutrição dos elementos nervosos; Régis, à arterioescle­rose em fase inicial; e, para o próprio Beard, a um defeito de equilíbrio entre o uso e a repara­ção da célula cerebral. Para a maioria das pes­soas do mundo e para muitos neurologistas, a responsabilidade era devida a alterações da ima­ginação ou a uma doença do espírito (a sensa­ção de fadiga do neurastênico seria imaginária e dependeria de uma idéia fixa), Charcot, Rey­mond, Brissaud e Gilbert Ballet persistiam com a hipótese do esgotamento da energia nervosa. Para Tinel (1941), a neurastenia seria uma forma menor de psicose melancólica. Begoim, em 1956, tenta explicar a neurastenia baseado nas concepções de Pavlov sobre o funcionamento da atividade nervosa superior e nas teorias ór­gano-dinâmicas de Henri Ey (que foi mestre do Autor em Paris). Bugard, que estu­dou de maneira bastante ampla a fadiga, a ex­plica como uma reação do organismo à soma­tização esgotante de agressões diárias. J. Mi­rouz, 1962, destaca na fadiga patológica a im­portância da participação hormonal na produ­ção dos quadros clínicos análogos em todos os pontos dos estados neurastênicos. Ele distingue as etiologias supra-renais, tireoidianas, insulíni­cas, hipofisárias (pituitárias), que induziram síndromes dife­rentes segundo o hiper ou hipofuncionamento glandular. Acoplada a este distúrbio hormonal, uma etiologia psicossomática constituída de conflitos, tensões, frustrações e agressões do cotidiano seria responsável pela síndrome astê­nica, através da via diencefálica.

Para Fleurry, que propunha uma teoria mecâ­nica na neurastenia, o mecanismo da fadiga se­ria organizado a partir do esgotamento nervo­so e seria composto de quatro fases que se su­cederiam. Na primeira, existiria a causa, como, por exemplo, uma intoxicação pelo álcool, por ve­nenos alimentares, uremia, albuminúria, ou até um gasto exagerado da atividade motora e es­gotamento por excesso de emoções, desenca­deando em um segundo tempo alterações celu­lares nervosas, principalmente sobre as células da matéria cinzenta, gerando um estado de hi­poatividade, meio funcionamento, estado inter­mediário entre a atividade e o sono. Em um tercei­ro tempo, haveria uma ptose, que seria um hi­potônus muscular e glandular onde ele dizia que se baseava todo o quadro sintomatológico, co­mo também toda a anatomia patológica da neu­rastenia. A neurastenia seria uma doença da fra­queza, essencialmente constituída por um en­fraquecimento muscular, uma pobreza de secre­ções e um desgaste da nutrição. Ele acrescen­tava ainda que a todo desgaste do sistema ner­voso correspondia uma sensibilidade geral por toda a parte uniformemente diminuída: não co­mo zona de anestesia dos histéricos. Ele relacio­nava todos os sintomas somáticos e estados mentais que decorreriam de uma hipotonia muscular dos músculos de fibra lisa (visceral) ou de fibras estriadas (cardíacas e esqueléticas). Cada hipotonia muscular correspon­deria a um sintoma somático, de acordo com o órgão a que esse músculo pertencia. Desta mes­ma forma, relacionava a hipossecreção glandu­lar gástrica, pancreática, hepática, salivar, cutâ­nea e testicular, os sintomas daí decorrentes e o estado da nutrição com uma diminuição da atividade da redução do sangue arterial e veno­so, um abaixamento por vezes apreciável da temperatura, um excesso de ácido úrico, dimi­nuição da uréia e um abaixamento dos coefi­cientes de oxidação. Em um quarto tempo, fase que ele atribuía às modificações do estado men­tal, haveria, como conseqüência de toda esta sintomatologia, uma alteração nos pacientes que se tornariam tímidos, medrosos, preguiço­sos, melancólicos. E, assim, ele concluía a neu­rastenia e todo o conjunto de sintomas que apre­senta dizendo que estes pacientes dependeriam de um desgaste nervoso, sendo primitivamen­te uma doença do tônus e secundariamente doença da nutrição, ocasionada seja por uma in­toxicação, por um gasto excessivo de energia ou por um abuso de irritação emocional. Enve­nenado ou desgastado, o cérebro passaria a fun­cionar em um estado de meia atividade vital, não comandando mais os órgãos e gerando um abaixamento funcional dos músculos, das glân­dulas, dos sistemas de nutrição, se refletindo por seu turno na consciência (espírito) que é o que propriamente se constituiria no estado men­tal neurastênico.

Em definitivo, a fadiga comporta uma noção complexa que não pode ser fidedignamente es­tudada, senão pela análise dos diversos elemen­tos que a compõem. Entretanto, seu conheci­mento preciso em domínios tão diversos como a Psicologia, a Sociologia, a Biologia, a Psiquia­tria, a Medicina, a Filosofia etc. não permite repudiar a no­ção de energia nervosa global, que, por mais hi­potética que seja, possui um valor incontestá­vel na clínica, segundo Mirouze.

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