RedePsi - Psicologia

Artigos

A substituição do consumo da droga, pelo consumo da “pessoa-droga” (Parte-II)

Por sugestão de uma colega a quem havia enviado a primeira parte desse trabalho, passarei agora a dar uma revisitada no texto à luz do processo transferencial, eixo principal e único, por onde é possível que um processo de análise ocorra.

Aliás, é exatamente este eixo que vai diferenciar uma análise de outras psicoterapias, ditas orientadas analiticamente, onde seus adeptos afirmam que tomam o referencial teórico da psicanálise, mas que tecnicamente, não ficam centrados no eixo da transferência.

Isso tudo poderia dar lugar, seguramente a horas de discussão, mas que escaparia o escopo daquilo a que me proponho no presente trabalho.

Retomando a paciente que utilizei como ilustração da parte I do trabalho, relembro que quando nos vimos pela primeira vez, isto é, na primeira entrevista, a paciente teria me dito que eu era a sua última tentativa, a sua última chance de sobrevivência, uma vez que já se havia consultado com neurologistas, psiquiatras e psicólogos, além de ter me procurado num estado de intensa impregnação (termo utilizado para um paciente que sofre o efeito colateral das drogas no corpo, por exemplo, apresentando intensa rigidez muscular; sabe-se que esse efeito é dose-dependente, porém se a dose não puder ser diminuída, existem outros medicamentos para controlar a impregnação indesejada).

Seu andar me parecia extremamente robotizado, sua fala muito trêmula, além de aparentar um alto nível de ansiedade, ou, segundo minha escolha, um alto nível de angústia (o termo ansiedade se refere mais ao exercício psiquiátrico, parecendo-nos estar mais correto, ao utilizarmos, em psicanálise, o termo angústia=angst.

Voltando ao eixo transferencial, o qual está orientando este trabalho, pudemos notar desde o início, considerando a correlação entre a paciente e a droga, que a mesma me passava a mensagem de que eu seria a última esperança em transformá-la de droga em um ser humano, o que implicava de minha parte, num reconhecimento a priori, dela na condição de droga, para que, a posteriori, se pudesse fazer a passagem para um ser humano.

Negá-la, na condição de droga, seria impossibilitar a possível passagem. Como chegar ao outro lado da ponte, se não reconhecermos, qual lado se encontra a paciente? Ocorre, que no matiz transferencial a paciente se oferece ao analista para ser consumida enquanto droga, propondo, em outras palavras, que o analista adquira uma adição em relação a ela.

Notem a complexidade da situação, na medida em que, o analista se torna um adito em relação à paciente, inexoravelmente, também acabará por se tornar uma outra droga. Como uma droga poderia tratar a outra?

 A encruzilhada que se apresenta me parece que poderia ser ilustrada da seguinte forma: o analista "consumindo" a paciente-droga, e, esta, por sua vez, consumindo o analista-droga.

Freud em seus escritos citou, por várias vezes, o fato de que o analista só pode destruir uma coisa em presença da mesma, ou seja, sem que toda essa droga possa se fazer presente, bem como seu consumo compartilhado, evidenciado, nada se poderá mover no processo de análise.

Quero ressaltar que tudo isso só faz sentido, se puder ser visualizado no eixo único e sem par da transferência.

Dando continuidade aos acontecimentos que permeavam a análise, declaro que a paciente vinha no início regularmente, no ritmo de duas sessões por semana. Com o passar do tempo, já que ela vinha uma sessão à noite, após o trabalho e a outra pela manhã, antes do trabalho, pude notar que nas sessões da manhã começaram a ocorrerem faltas e quando a interpelei sobre esse fato, me respondeu que embora pusesse o despertador para acordar, sua mãe desligava-o e sempre acabava por lhe dizer que achava oito horas da manhã, não ser horário de ninguém fazer análise.

Por outro lado, estávamos numa época em que nos era obrigatório fazer correções nos honorários para que pudéssemos diminuir o impacto da alta inflação, e cada vez que assim eu procedia, ela ficava furiosa, dizendo que não aceitava o aumento. Embora lhe explicasse que não estava aumentando, apenas fazendo uma correção de valores, também insistia em lhe dizer que eu achava muito curioso, no mínimo paradoxal, que alguém reclamasse de um possível aumento de honorários, jogasse, por outro lado, todo o dinheiro relativo às sessões da manhã, pela janela, uma vez que pagava sem vir.

Chegava, inclusive a questionar o porquê dela trabalhar já que não se achava obrigada a executar esse procedimento. Freud disse por várias ocasiões, que um ser humano deveria ser capaz de duas coisas principais durante a sua vida, a saber, amar e trabalhar.

No contexto encenado anteriormente das drogas envolvidas no processo de análise, talvez aqui, também, no âmbito transferencial, houvesse a proposta de que pudéssemos, ambos, ficar sem trabalhar, no idílio das drogas, numa viagem interminável, que pudesse fazer com que prescindíssemos das lides do mundo, como todos os mortais.

Nesse ponto do desenvolvimento do trabalho, gostaria de fazer uma pequena digressão no sentido de me desviar por um momento da transferência e pegar a trilha da pulsão de morte, claramente envolvida na problemática das drogas.

Na verdade não seria bem um desvio, mas sim uma complementação, uma vez que a pulsão de morte age e se faz presente também no eixo transferencial. Além disso, temos aqui também, envolvida a nuance da identificação projetiva, no melhor emprego do termo.

A paciente coloca no analista os emblemas da droga e da pulsão de morte, os quais estão constantemente permeando a sua existência. Onde residiria então alguma possibilidade de ajuda, se alguém tão necessitado, coloca  naquele que potencialmente poderia ajudá-lo, a mesma condição incapacitante da qual é possuidora?

Aqui, me parece estarmos diante de uma excelente oportunidade para sublinhar que não poderemos, desde a óptica da consciência, ser capazes de responder a essas questões.

Precisamos, isso sim, ressaltar que os paradoxos, as idiossincrasias existentes na lógica da consciência, não o são, da mesma forma desde a lógica do inconsciente. Dessa maneira, da mesma forma que a paciente ao me conhecer, havia dito que eu era a sua última possibilidade de sobrevivência, também e simultaneamente, tinha a necessidade de me jogar no limbo da destruição.

Mas notem não ela como um todo, e sim, uma parte sua doentia é que queria ou necessitava me jogar no limbo da destruição. Entre outras coisas que temos a nosso favor, como um arsenal teórico-técnico, no qual nos embasar, temos também a parte mais saudável da paciente que procura colaborar, vindo às sessões, respeitando o setting analítico, etc.

Portanto, além de Thanatos, temos felizmente também a presença de Eros, o qual devemos considerar como um excepcional aliado em nome do processo analítico da paciente.

É obviamente com esse aliado que temos que trabalhar, para fazer frente à parte doente da paciente. Quando falamos em transferência, podemos dividi-la em dois grupos: a transferência positiva, que é exatamente essa que colabora com o tratamento, e a transferência dita negativa, a qual se subdivide em, transferência agressiva e transferência erótica.

É preciso que fique muito claro que essas divisões não ocorrem de forma estanque, isto é , isoladas, na verdade muito pelo contrário. Numa mesma sessão, podemos estar sucessivamente diante de várias nuances da transferência. Uma sessão pode começar de maneira, aparentemente muito amigável e afetuosa, mas não nos iludamos, uma vez que num momento subseqüente, podemos ser alvo de raios e trovões.

 Aliás, de forma bastante coloquial, Freud chegou a escrever que aqueles que resolvessem dedicar-se à exploração da mente humana, não deveriam esperar se deparar com anjinhos tocando violino, mas sim com monstros, bruxas e outras coisas do tipo. Quando aceitei o desafio, sim é essa mesma a palavra, desafio, de acompanhar a paciente que me procurava como se eu fosse a sua única saída, há muito já havia ficado atento a esse conselho de Freud, e assim, de forma alguma eu estava esperando por anjos tocando violino, muito pelo contrário.

Lembro-me inclusive, a propósito do assunto das drogas, que a paciente, antes de me procurar, havia procurado um neurologista, uma vez que tinha absoluta certeza de ter um tumor cerebral, hipótese que foi descartada.

Aqui, poderíamos pensar em uma somação de drogas, isto é, uma droga dentro da cabeça de outra droga. Portanto, os leitores desse trabalho podem imaginar a dimensão do desafio que eu tinha diante de mim.

Se alguma mensagem eu posso deixar registrada para aqueles que, como eu se dedicam ao acompanhamento de pacientes que sofrem e que nos procuram, muitas vezes como minha paciente, vendo em nós a sua tábua de salvação, eu diria que devemos nos aliar à parte mais saudável do paciente e, jamais subestimarmos o potencial destrutivo e devastador da parte doentia. Devemos ter claro também que, dependendo da gravidade da patologia em questão, como era o caso citado, temos que saber trabalhar, como no dizer de W. Bion, com uma atitude "sem desejo nem memória na técnica analítica", sabendo valorizar cada micropasso conquistado pelo par analítico, como fruto de um trabalho hercúleo, do ponto de vista inter e intrapsíquico.

Acesso à Plataforma

Assine a nossa newsletter