O conceito de "Bissexualidade"permeia a produção teórica freudiana, em especial quando Freud estava trabalhando nas questões referentes à problemática da Histeria e, mais própriamente, em relação às Identificações Histéricas.
Entendemos que a psicanálise e a mitologia encontram-se sempre numa relação de estreita conexão. Através da abordagem da bissexualidade, a qual tem sido debatida no Fórum, me animei a desenvolver algumas considerações sobre essa temática, à luz da psicanálise.
Apenas citaremos, a título de ilustração, os mitos de Narciso e Édipo; mas aqui vamos nos deter um pouco sobre o mito de Hermafrodito, o qual ilustra de maneira ímpar a noção de bissexualidade.
O mito nos conta que Afrodite estava casada com Vulcano, o mais disforme dos deuses do Olimpo, contudo não era apaixonada por ele. Quando Vulcano se ausentava, Afrodite se aproveitava de sua ausência, para concretizar as suas aventuras amorosas, como, por exemplo, com Hermes, assim como com outros deuses. Sabemos que Hermes é considerado o deus dos ladrões, também dos comerciantes e da eloqüência.
A história se desenrola e desses encontros fortuitos entre Afrodite e Hermes, acaba nascendo um filho do qual ambos não querem ter que se ocupar, mesmo porque, sua existência seria a prova contumaz do adultério praticado por eles. Decidem entregar o filho às ninfas do monte Ida. As ninfas, contudo observam no menino, os traços de seus genitores e decidem chamá-lo como eles, acabando por realizar apenas uma adaptação, a qual resultou em Hermafrodito.
Queremos fazer notar que esse processo de "condensação", acaba encobrindo e, ao mesmo tempo, denunciando Hermes e Afrodite.
O bebê cresce e torna-se um formoso adolescente. Sabe-se que obtinha muito prazer em caminhar e explorar lugares novos, talvez como um deslocamento sobre a problemática da busca pelas suas origens pessoais.
Ao completar quinze anos de idade, deixa para sempre a região de Ida. Em suas andanças subseqüentes, acaba por chegar num lago de transparente limpidez que o fascina, exercendo sobre ele uma atração irresistível.
O lago pertencia a Salmácia, uma Náiade que se destacava pela sua ociosidade. Só tinha interesse por adorar e exaltar a sua figura. Quando Salmácia avistou Hermafrodito, acendeu nela uma intensa paixão e a decisão de vir a possuí-lo. Ele, por sua vez, ignora os segredos do amor e solicita que ela se afaste dele ou ele o fará. Ela acaba deixando-o em liberdade, embora inconformada. Ele, acreditando que estava só, sucumbe à tentação de banhar-se no lago, tirando as suas roupas e atirando-se no lago. A Náiade fica extasiada e seus desejos se reavivam; correndo em sua direção abraça-o, beija-o e, embora ele tentasse escapar, ela o envolve com seus braços e com suas pernas.
Os dois corpos assim reunidos, agora formam um só, resultando por ter uma forma que não mais é de homem, nem de mulher, mas sim parecem não ter sexo algum e ter todos.
O que nos chama especialmente a atenção é que em Hermafrodito, como nos demais relatos míticos, a infância está ausente, fato que nos leva por associação, a lembrarmos da amnésia infantil dos neuróticos. A história começa com os fatos que antecederam o nascimento, existe depois um longo hiato, sendo que o personagem só reaparece após passada a puberdade.
Aqui, com toda certeza cabe a pergunta: não seria exatamente nesse hiato, que ocorreriam os momentos decisivos para a identidade sexual do indivíduo?
Qual seria a função no mito de Hermafrodito, representada por Salmácia? Pensamos num possível desdobramento da figura materna, em que a fonte e as águas aludiriam ao útero e, ao período de gestação, quando o feto encontra-se imerso no líquido amniótico. Assim, esse mito se refere à uma modalidade de relação narcisista mãe-filho, de forma mais freqüente do que seria desejável, onde a criança não estaria importando como um sujeito que chega, mas sim como um ideal sexual cuja função é a de completar a falta (falo imaginário).
Incluiremos aqui uma citação de Freud de 1910, em "Uma Lembrança Infantil de Leonardo da Vinci": "Assim, do mesmo modo que todas as mães insatisfeitas, tomou ao seu filho (Leonardo), como um substituto de seu marido e, pela maturação demasiado precoce de seu erotismo, privou-o de uma parte de sua masculinidade". Em seguida, referindo-se às pinturas de Leonardo, Freud nos diz: "As figuras são ainda andróginas. (…) É possível que nestas figuras Leonardo tenha negado a infelicidade de sua vida amorosa e triunfado sobre ela em sua arte, representando, nessa bem-aventurada união das naturezas masculina e feminina, a satisfação dos desejos do menino apaixonado por sua mãe"
Dando continuidade ao nosso percurso, diríamos que esse narcisismo materno dar-se-ia em dois momentos: quando o filho é visto como alguém que vem para perturbar o equilíbrio afetivo do casal, e quando do ato de livrar-se dele.
As mornas e transparentes águas não aludiriam só ao líquido amniótico, mas também à projeção retroativa que os seres humanos podem fazer sobre o período fetal, de um amor idealizado (narcisista), em que cada um encontra a outra metade que o completa. Mais do que amor a um objeto, teríamos aqui, uma ânsia de fusão narcisista com um ideal, com o qual se alcançaria a perfeição e a completude.
Quando vemos Hermafrodito penetrar na fonte e Salmácia fundir-se com ele, poderemos inferir que ela não deseja, em sua vida, um homem que possa separar a relação mãe-filho. Esse lugar do homem, rechaçado pela mãe, é o do pai, que é o representante da lei da proibição do incesto, ou a lei da cultura.
Se partirmos da ótica de Hermafrodito, poderíamos dizer que todo homem que se deixe aprisionar pelo amor narcisista de sua mãe, fique, assim como ele, castrado, no sentido de ter impossibilitada a partida para uma relação exogâmica.
Freud, em 1914, em "Introdução ao Narcisismo", chega a afirmar que "quem tenha sofrido uma perturbação no desenvolvimento libidinal, posteriormente realizará uma escolha de objeto narcisista e, trará como exemplo, o resultado das perversões."
Realmente, dessa forma estaríamos mais inclinados a pensar em perversão do que em psicose. Não vemos Hermafrodito identificar-se maciçamente com uma mãe narcisista, mas isto sim, lutar para tentar livrar-se dela. Teríamos então, a indicação da existência de um conflito, muito embora a sua resolução se dê pelo caminho perverso e não pelo caminho neurótico. Mais didaticamente falando, diríamos que o perverso atua os mesmos impulsos que os neuróticos reprimem, de onde derivou a famosa frase emblemática da psicanálise: "A neurose é o negativo da perversão".
Se encararmos a problemática pela ótica da psicose, diríamos que não se vê a mãe lutar para restabelecer uma fusão e o filho nunca teria deixado de atuar, como sendo uma espécie de "órgão" da mãe. Além do que, a indiscriminação, a despersonalização, não acabaria restrita á identidade sexual, vindo a abarcar a identidade total do sujeito.
O Fantasma da Bissexualidade
Iniciaremos afirmando que esse fantasma é comum a todos os seres humanos. Esse mesmo fantasma pode atuar inconscientemente, às vezes como uma fantasia consciente e até, como um projeto materializável ao nível da realidade. Em outras palavras dir-se-ia que todos nós vivemos, em nossas origens e durante algum tempo, como parte do ser – e do ser sexual – de nossa mãe e a experimentamos como se fosse uma parte nossa, até que chegue o momento da dolorosa separação.
Também sabemos pelas "Teorias Sexuais Infantis" (Freud), que quando crianças, chegamos a desejar que não houvesse diferenças, sendo possível sermos o homem amado por nossa mãe e a mulher amada pelo nosso pai. Na puberdade, a identidade sexual se define, assumindo de forma manifesta, uma ou outra forma e o que queremos também ressaltar, é que a forma complementar submerge no inconsciente.
Destacamos que para assumir uma identidade sexual, deverá haver a substituição do objeto sexual incestuoso, por outro exogâmico, porém não se pressupõe o desaparecimento da inclinação sexual oposta.
O fantasma da bissexualidade procura encontrar uma realização simbólica, pois, a partir do reconhecimento da diferença e da incompletude sexual, cada um buscará no outro sexo, não apenas o chamado da pulsão, mas também o seu complemento simbólico. Notamos também que quando o complexo de castração não é elaborado adequadamente, o fantasma da bissexualidade se intensifica ao mesmo tempo em que diminuem as suas possibilidades de realização simbólica no meio social. Quanto maiores forem as fixações narcisistas, o outro contará cada vez menos como ser sexual diferenciado que se deseja e cada vez mais como instrumento que se necessita, para renegar a diferença sexual.
A partir desse estado de coisas, são múltiplas as variantes clínicas que podemos observar: a inibição genital, a fascinação amorosa em que há uma dependência extrema do parceiro, a escolha de objeto homossexual com desvalorização do sexo oposto, o travestismo, o transexualismo, etc.
Assim, se anteriormente falávamos de uma bissexualidade apenas fantasmática nos neuróticos, passamos para uma bissexualidade consumada na realidade externa, cujos casos mais extremos transcendem o marco da perversão, acabando por ingressar na psicose.
Quais seriam, portanto as variáveis que facultariam o seguimento de um outro caminho?
A Freud foi realizada essa pergunta e ao respondê-la em "O ego e o Id", não pôde simplesmente remeter a questão apenas às identificações masculinas e femininas no Édipo e foi obrigado a recorrer à disposição constitucional. Esta pode ser interpretada do ponto de vista que se refere à Biologia, até aquele que a concebe como sendo uma determinação narcisista, a qual envolve a pré-história de cada um, a qual se constitui na relação de seus genitores com o sujeito.
Podemos verificar que existe também uma tendência cultural à renegação da falta. Vemos com relação às mulheres, por exemplo, o que estas exaltam como parte da sedução, são as saliências do corpo feminino (seios, nádegas), porém algo fica sempre oculto como se se tratasse de uma espécie de buraco, isto é, como um significante da falta.
Dessa forma, verificamos que é no processo edípico, que o ego do menino se coloca tanto no lugar da mãe, como objeto do desejo paterno; como, no lugar do pai como objeto do desejo materno. Ressaltamos que esse processo não ocorre de maneira direta e definitiva, sendo que pode vir a ser obstaculizado por diversos influxos, os quais são provenientes dos fantasmas parentais. Como ilustração, citaremos a falta de reconhecimento materno do lugar do pai, como um lugar valorizado ou mesmo a intolerância dele frente à rivalidade do filho.
O Édipo, seja ele direto ou invertido, acaba culminando em uma identificação com cada um dos genitores, bem como com uma relação de objeto proibida (incestuosa ou agressiva).
A bem da verdade, a mensagem que queremos deixar registrada, ao concluir essa exposição, é a de que a posse de uma genitália masculina ou feminina, não faz de ninguém um homem ou uma mulher, em termos da aquisição de uma identidade sexual psicogenicamente determinada. Essa psicogênese terá seu particular ponto de apoio, em como o sujeito virá a lidar com o Complexo de Édipo, com o Complexo de Castração, além da problemática referente às identificações.
Além disso, gostaríamos de retomar que, a nosso ver, o fato deste ou daquele indivíduo tomar um determinado caminho, o qual será o vetor resultante das variáveis acima expostas, fará com que a possibilidade oposta, fique direcionada ao inconsciente. Contudo, não nos iludamos com relação ao fato de que estará para todo o sempre no inconsciente, podendo vir a aflorar em qualquer outro momento da vida do indivíduo, o que ficaria fundamentado pela possibilidade do "retorno do recalcado".
Gostaríamos que essas coisas fossem compreendidas desde uma ótica dinâmica e não estática.
Bibliografia Auxiliar
Mayer, H. Histeria. Porto Alegre: Editora Artes Médicas.
Green, A. El gênero neutro. Em Bissexualidad y diferencia de los sexos.