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Neuroquímica correlata aos transtornos do humor

Considerações iniciais

Os transtornos do humor podem ser conside­rados como uma das primeiras formas do adoecer mental a merecer descrições verazes em todas as culturas, uma vez que o paciente de depressão é capaz de se manter em conta­to com outros membros da comunidade, da família e, assim, comunicar seu sofrimento, porém, na maioria das vezes para não ser entendido.

Dentro do conceito de estados mórbidos de Jaspers é grande a importância dada àqueles que determinam as transformações do estado afetivo aos quais se somam outras transformações primárias:

(a) Fenômenos de despersonalização, estranhamento do percebido, excitabilidade, hiperestesia psíquica. Tais fatores au­mentam a "extensão" do quadro psíquico;

(b) Os fenôme­nos se apresentam de forma mais acentuada: o alentecimento caminha para o estupor, a alegria com fuga de idéias se transforma em confusa excitação ma­níaca;

(c) tais situações patológicas são enriquecidas por resíduos e hábitos desenvolvidos em fases anteriores, dando caráter individual a cada caso; por exemplo, o de se sentir o paciente responsável pelas desgraças do mundo inteiro.

Isto é, os fenômenos que descrevem a profundidade da vida afetiva desempenham importan­te papel na formação da síndrome depressiva, melancó­lica ou maníaca.

Tanto a euforia quanto a depressão são fácil e errone­amente compreendidas como simples alterações quan­titativas da alegria e da tristeza e, dentro desta "compreensibilidade", os que padecem de transtornos do humor são freqüentemente "encorajados" a vencer sua falta de vontade de voltar a viver normalmente o que sobremaneira agrava os sentimentos de culpa e aprofunda ainda mais a perda de auto-estima vivenciadas pelo indivíduo deprimido.

Nas mesmas condições, são os maníacos exortados a se com­portarem de forma adequada, a reprimirem seus impul­sos, a respeitarem os limites impostos pela convivência o que é uma impossibilidade prática, uma vez que a alte­ração afetiva é de natureza "qualitativa".

Mesmo especialistas são por vezes confundidos pe­las nuances dos sintomas e se esquecem que os trans­tornos do humor surgem sob forma de fase e que, em sua vigência, uma seqüência de fenômenos acima mencio­nados e que se traduzem na transformação do estado afetivo que exprime as alterações havidas no humor vi­tal: fenômenos de despersonalização, hiperestesia psí­quica, excitabilidade, estranheza do percebido, altera­ções cognitivas e mnêmicas de tal forma que o deprimi­do passa a ser o seu "outro", aquele que tem um humor pesado, para quem o tempo se arrasta e se dilata, enquanto o espaço vital se retrai, e cujos sentimen­tos não são entendidos nem em sua intensidade ou, e principalmente, em sua qualidade. A qualidade do ex­perimentado pelo indivíduo que sofre uma alteração patológica do humor vital é radicalmente diferente não apenas das vivências de seus circunstantes não-depri­midos, como de suas próprias experiências interfásicas.

Esta situação tem tornado os estudos epidemiológi­cos sobre os transtornos de humor extremamente difí­ceis e muito pouco dignos de crédito. A falta de conheci­mentos psicopatológicos dos entrevistadores diminui consideravelmente o alcance dos achados e, se somar­mos a este um dado adicional, o de que a vasta maioria de nossos epidemiologistas desconhece psicopatologia e apenas trabalham com "instrumentos operacionais", fica fácil de se entender as enormes vari­ações registradas: de 4 a 25% dos entrevistados nos grandes estudos epidemiológicos sofrem de transtornos do humor, transformando-os em uma coisa tão comumente observável como a cárie dentária. Os estudos de prevalência situam-se entre 15% entre os homens podendo chegar aos 20% entre as mulheres enquanto a incidência é tam­bém bastante elevada, situando-se entre os 10% da população geral e podendo atingir os 15% da população hospitalizada.

Parece-nos haver certo desvio nestes dados epi­demiológicos. Diversos fatores têm contribuído para a diminuição de sua confiabilidade:

(a) a já mencionada ausência de conhecimentos especializados dos entrevistadores;

(b) a ignorância, proposital ou não, na construção de questionários epidemiológicos pretensamente ateóricos, confundindo a abordagem científica com o senso co­mum: "depressão é uma grande tristeza";

(c) a maior difusão de conhecimentos médicos pelos meios de comunicação, contaminando as respostas ob­tidas;

(d) o aumento da expectativa de vida incluindo fato­res psicossociais no quadro geral de isolamento e de anomia a que estão submetidos aqueles que atingiram a terceira idade;

(e) o mais importante de todos os fatores complicadores, que é representado pelos atuais sistemas taxonômicos em psicopatologia que, ao se pretenderem "ateóricos", causaram uma verdadeira pulverização no diagnóstico passando acriticamente por cima de classificações psicopatologicamente estabelecidas, visando criar entida­des clínicas puras e que se adeqüem às exigências de pes­quisa clínica ou aos propósitos securitários ou de prescri­ção psicofarmacológica.

A situação criada pelos critérios a serem preenchidos para inclusão em dada categoria diagnóstica transformou a pesquisa epidemiológica em uma BabeI, totalmente desvinculada da realidade cotidia­na de práxis clínica: situações antes consideradas "adaptativas" foram patologicizadas e condições observa­das todos os dias em hospital-geral que mereceriam uma classificação diagnóstica de depressão "não preenchem os critérios de depressão" e são deixadas sem atenção e/ou tratamento. Tal situação criou um monstro de duas cabeças – o transtorno misto de ansiedade e depressão que fará com que os índices de prevalência e de incidência dos transtornos de humor se tornem absolutamente imprevisíveis, causando uma verdadeira impossibilidade de se diagnosticar corretamente e de tratar adequadamen­te os que padecem de transtornos do humor; e

(f) a única forma de se evitar o caos é a intensificação de estudos etiopatogênicos e/ou, na sua ausência, a cri­ação de marcadores biológicos com elevada proprieda­de discriminatória que serviriam para complementar os dados epidemiológicos e "descontaminá-Ios".

Hipóteses etiológicas da correlação cérebro/mente

Como acontece com a maioria das formas do adoecer psíquico, a etiopatogenia dos transtornos de humor nos é ainda desconhecida. Lembrando-se sempre que, no máximo, podemos cogitar em correlações da díade cérebro/mente. Porém, isto não tem impedido que diver­sas hipóteses etiológicas tenham sido e continuam sen­do formuladas, reformuladas, revistas e abandonadas.

A mais elaborada dentre as antigas se deve a Bartholomeus Anglicus que, fiel às tradições hipocráticas, vinculou a melancolia à bile negra – melon em grego é negro e colin significa bile. Esta bile negra acumular-se-ia no organismo, indo se concentrar no cé­rebro, fazendo com que o paciente começasse a confun­dir sua família, tornar-se odiado por seus amigos, afas­tando-se de tudo e de todos, recusando-se a viver.

Claro que depois da bile negra, diversas outras hipó­teses humorais se sucederam entre as quais merece cita­ção a que, vez primeira, envolveu os nervos periféri­cos na gênese das depressões: um humor gasoso invadi­ria os nervos periféricos e através destes "canais nervo­sos" chegaria ao cérebro perturbando seu funcionamento, causando desespero e lançando o indivíduo até mes­mo à própria morte.

Na Antigüidade, as hipóteses etiológicas se vincula­vam preferencialmente à depressão uma vez que a mania era incluída entre as loucuras vesânicas. A união sindrômica entre depressão e mania só vai aparecer na psiquiatria francesa através de Falret e seu conceito de "folie circulaire", e de seu contemporâneo da metade do século XIX, Baillager, que descreveu a alternância de mania e de depressão como "cyclothymie". A partir de 1899, Kraepelin retomou estes conceitos e os categorizou como "psicose maníaco-depressiva". A conceituação pro­posta por Kraepelin em seus trabalhos desenvolvidos nos primeiros decênios do século XX é tão consistente que tem servido de guia para todos os esforços classificatórios desenvolvidos até a atualidade.

Esse esforço classificatório não foi seguido pelo aumento dos conhecimentos etiopatogênicos. Nesta área, apenas os estudos de Thudichum ofereceram a possibilidade de que pudessem existir mediadores químicos para atividade nervosa su­perior.

O período entre as duas grandes guerras viu sur­gir um substancial conhecimento sobre química, microquímica e bioquímica, criando a primeira revolu­ção terapêutica desde Galeno, e possibilitando que se desenvolvessem outras áreas como a fisiologia, a farma­cologia e permitindo que surgissem os primeiros conhe­cimentos sobre os modos de atuação das substâncias que agiam sobre o sistema nervoso central levando à criação de medicamentos mais seguros e específicos.

Como corolário natural deste progresso, diversas subs­tâncias foram identificadas e isoladas no cérebro, per­mitindo a elaboração de hipóteses psicofisiológicas que aumentaram as especulações sobre a causalidade das doenças mentais e dos desvios de funcionamento do sis­tema nervoso central que poderiam, ou não, caracterizar alguma alteração patológica.

Com a identificação e isolamento da noradrenalina no sistema nervoso central por von Euler no final da década de 40, e a posterior verificação que a infusão ve­nosa desta substância desencadeava "reações de ansie­dade", criou-se o primeiro vínculo entre neuroquímica e comportamento adaptativo. Em 1954, M. Vogt e I. Page isolaram a serotonina no tecido nervoso, oferecendo a Brodie a base teórica para sua hipótese sobre as psico­ses delirantes, que poderiam ser devidas ao bloqueio do receptor serotoninérgico no cérebro, a exemplo do que ocorre com os efeitos da dietilamida do ácido 1-metil lisérgico (LSD-25) que é um potente bloqueador dos recep­tores triptamínicos centrais e periféricos, e reconhecida­mente "alucinogênicos" desde as auto-experimentações de Hoffman feitas no início da década de 40 na Suíça.

Estas descobertas propiciaram a aparição de diver­sas hipóteses que explicavam os mecanismos de ação dos diferentes medicamentos antidepressores então exis­tentes: os inibidores da monoaminoxidase (IMAO) e os tricíclicos (imipramina e amitriptilina). Estes dois grupos de medicamentos deveriam sua ação por promoverem uma melhor utilização fisiológica dos neurotransmissores mais diretamente envolvidos no funcionamento normal do cérebro, como a serotonina e a noradrenalina.

A partir do conhecimento dos possíveis mecanismos de ação das substâncias que tratavam eficazmente as fases depressivas da psicose maníaco-depressiva e que desencadeavam uma fase eufórica em pacientes antes deprimidos, passou a ser extremamente tentador vincu­lar-se a depressão a uma ou mais alterações da utiliza­ção fisiológica de noradrenalina e/ou de serotonina.

Ao final da década de 50, Pare e Sandler demonstra­ram que a administração concomitante de um precursor da serotonina, o 5-OH-triptofano potencializava os efei­tos terapêuticos de inibidores da monoaminoxidase ou da imipramina enquanto Lusa e Trovato demonstravam que os sintomas nucleares da síndrome melancólica res­pondiam precocemente a esta associação.

Como conseqüência de tais observações, A. Copen, no inicio da década de 60, propôs serem as depressões devidas a uma falta absoluta ou relativa de serotonina nas sinapses centrais.

À mesma época, o grupo do NIMH nos USA trabalhava com a vertente noradrenérgica implicada na gênese das depressões e em 1964, J. Schildkraut apre­sentou a hipótese das catecolaminas: a ausência abso­luta ou relativa de noradrenalina nas sinapses do siste­ma nervoso central seria responsável pela eclosão da síndrome depressiva em oposição ao excesso deste neurotransmissor que desencadearia uma fase manía­ca. Medicamentos que possibilitassem um melhor apro­veitamento da noradrenalina cerebral seriam anti­depressores (lMAO e tricíclicos) e os bloqueadores catecolaminérgicos seriam antimaníacos (neurolépticos).

Apesar de extremamente simplista, esta hipótese foi a primeira a correlacionar as duas fases – maníaca e depressiva – com uma determinada e provável altera­ção neuroquímica que estava diretamente vinculada aos mecanismos de ação das substâncias utilizadas em seu tratamento. A hipótese das catecolaminas foi a primeira tentativa unificadora surgida para explicar a etiopatogenia da psicose maníaco-depressiva. A outra utilidade da hipótese foi a de melhor orientar a pesquisa para a obtenção de medicamentos mais eficazes ou mais específicos para o tratamento destas condições clínicas como, por exemplo, a desmetil-imipramina e a protriptilina, inibidores quase exclusivos da recaptação de noradrenalina nas sinapses centrais.

Apesar do avanço representado por esta hipótese unificadora, novas explicações se impunham, uma vez que diversos fenômenos escapavam à simplicidade de que a correlação de uma única alteração neuroquímica englobasse toda a constelação sindrômica representada nos transtornos do humor.

Assim, em 1965 os trabalhos de Bueno e Himwich apontavam para uma nova perspectiva: os mecanismos de ação dos antidepressores estariam diretamente vin­culados ao equilíbrio entre as funções noradrenérgicas e serotoninérgicas do que às alterações relativas ou ab­solutas de cada um dos neurotransmissores analisados isoladamente.

Estas experimentações levaram os auto­res a apresentarem em 1969 uma hipótese dualista para as alterações neuroquímicas observadas nos transtor­nos de humor: o desequilíbrio entre as funções serotoninérgicas e noradrenérgicas seria o responsável pelas diferentes facetas exibidas pela doença maníaco­-depresssiva. Segundo esta hipótese, o núcleo depressivo e melancólico seria representativo de uma disfunção das vias mediadas pela serotonina e o restante das manifes­tações sintomáticas, principalmente as somatizações, seriam devidas às alterações noradrenérgicas. Esta hi­pótese representou a primeira tentativa de se juntar em uma mesma situação clínica disfunções de dois neurotransmissores que poderiam desempenhar funções regula­doras sobre outros sistemas mediados por outras subs­tâncias sintetizadas no cérebro.

As possibilidades abertas pela hipótese de Bueno e Himwich ficaram adormecidas até a descoberta dos inibidores seletivos de recaptura de serotonina e de noradrenalina.

Neste meio-tempo, diversas constatações foram feitas; entre elas a de que os cérebros de suicidas têm menos de um terço da quantidade normal de serotonina quando pareados com cérebros de indivíduos de mesmo sexo e mesma idade que faleceram por outras causas que não o suicídio. Esta constatação corrobora a postulação de Bueno e Himwich de que o núcleo da doença depressiva seria de responsabilidade serotoninérgica e que a mo­dulação sintomática seria resultante de disfunções no­radrenérgicas.

Estas indagações prontificaram Van Praag a propor uma classificação "neuroquímica" das depressões, incluindo uma série de orientações terapêuticas oriundas desta taxonomia baseada na correlação de disfunções neuroquímicas e efei­tos terapêuticos dos diferentes medicamentos utilizados no tratamento dos transtornos de humor.

Com a síntese dos primeiros inibidores seletivos de recaptura de serotonina (ISRS) na década de 70, começando com a indalpina e a zimelidina, tornou-se bastante tentador implicar-se a serotonina na gênese dos sintomas depressivos e na eclosão das diversas fases depressivas nas chamadas depressões recorrentes. Tanto a indalpina como a zimelidina foram retiradas da prática clínica em virtude de sua toxicidade neurológica.

Continuava a ser um mistério a importância da serotonina ou de outros neurotransmissores na gênese dos sintomas das ma­nias unipolares ou os episódios maníacos de curta ou de longa duração observados nos transtornos de humor em sua forma bipolar. Importante é notar-se que os sinto­mas depressivos, após um período da latência variável, remitiam com o uso clínico destes medicamentos.

A partir da introdução da fluvoxamina em clínica psiquiátrica a situação se inverteu: era possível conse­guir-se um efeito antidepressor com uma substância ISRS, sem a toxicidade da indalpina ou da zimelidina e que é melhor tolerada que os outros antidepressores, princi­palmente os heterocíclicos. A partir da metade da déca­da de 80 os ISRS passam a ser os medicamentos de pri­meira escolha para o tratamento das diferentes formas de depressão.

Este resultado clínico faz com que todas as hipóteses sobre possíveis mecanismos de ação dos antidepressores sejam sujeitas a uma completa reavaliação, não mais se aceitando sub-hipóteses ou aquelas que vinculassem tais ações às alterações havidas em um único sistema neurotransmissor.

Paralelamente, as novas classificações de transtornos mentais: DSM-III, DSM-IV, CID-10, que são difundidas nesta época, começam a descrever novas categorias diagnósticas como os transtornos de pânico, as fobias simples e mistas, ao passo que o transtorno obsessivo-compulsivo substitui a antiga neurose obses­siva e o próprio conceito de neurose é pulverizado en­quanto classificação de transtorno psíquico, passando a fazer parte da imprecisa linguagem laica.

O espectro sindrômico das depressões passa também a ser subdividido, indo do classicamente descrito trans­torno afetivo bipolar – psicose maníaco-depressiva – ao trans­torno ciclotímico, passando por depressão maior, trans­torno depressivo recorrente, transtorno distímico e ou­tras subcategorias que foram impostas pelas exigências da pesquisa clínica e básica, mas que possuem pouca utilidade na prática clínica diária.

Interessante é notar-se que três condições clínicas clas­sificadas como pertencentes aos transtornos de ansie­dade – as fobias, o transtorno de pânico e o transtorno obssessivo-compulsivo – respondem igualmente bem aos antidepressores que inibem a recaptura de serotonina pelo neurônio pré-sináptico: monocloroimipramina, fluoxetina, paroxetina, sertralina, citalopram e fluvoxamina.

Claro está que todos estes medicamentos atuam em diferentes áreas do cérebro e em outros sistemas periféri­cos, tornando difícil selecionar-se um único mecanismo para descrever seus efeitos antidepressores ou ansiolíticos. Entretanto, a ponte sintomática que sempre existiu entre os transtornos de ansiedade e os de humor fica bastante reforçada com estas observações, obrigan­do os investigadores a reverem suas hipóteses explicativas. Esta situação clínica houvera sido anteri­ormente contemplada com categorizações diagnósticas variadas, como "depressão ansiosa" muito eficazmente tratada com antidepressores como a imipramina e os modernos ISRS.

Parece inegável que o transtorno depressivo maior, como presentemente concebido, constitui-se de uma mis­tura de duas condições clínicas distintas: depressão unipolar e depressão neurótica, independentemente do nome que se escolha para a segunda condição. Conseqüentemente, não é de se estra­nhar que medicamentos com possíveis igualdades em seus mecanismos de ação possam ser eficazes no trata­mento de sintomas depressivos e ansiosos. Ou, por ou­tro lado, as fobias, o pânico e o transtorno obsessivo­-compulsivo constituam-se apenas em "máscaras" dife­rentes para o mesmo transtorno de humor primário e subjacente. Sem dúvida, isto representaria o reconheci­mento e a validade de antigas descrições sindrômicas como, "neurastenia" (Angst, 1977), "timopatia ansio­sa" (Lopez Ibor, 1966), "equivalentes depressivos" (Fon­seca, 1963) ou "depressão mascarada" (Angst, 1973 ). Em outras palavras, os diagnósticos mistos de antes traduzir-se-iam nas modernas "co-morbidades" ainda que respondendo a uma única intervenção terapêutica medicamentosa, não exigindo a combinação de trata­mento "antidepressor" e "ansiolítico".

Esta situação torna obrigatório que se busquem multi-­causalidades neuroquímicas que paralelem às já obser­vadas em genética, com os fatores ambientais e de desenvolvimento, levando-nos a admitir um "transtorno depressivo de personalidade" onde poder-se-ia sobre­por tanto transtornos ansiosos como os de humor. Pare­ce-nos que o presente "furor classificatório" que se pro­põe "operacional" tem gerado condições clínicas "artificiais", e de operacional tem se transformado em "confusional". Da mesma forma, seria ingenuamente pretensioso tentar classificar qualquer condição psíqui­ca baseado em pretensos mecanismos de ação de substâncias psicoativas uma vez que medicamentos com mecanismos de ação mistos pré e pós-sinápticos (nefazodone, mirtazapina) ou que inibem a recaptura neuronal inicialmente de noradrenalina e, posteriormen­te, de serotonina (venlafaxina) não teriam seus efeitos explicados por hipóteses "monolíticas" que tentam vin­cular os transtornos de humor a uma única alteração neuroquímica. Seria impossível o entendimento da efi­cácia destas substâncias se julgarmos que apenas um sistema neuronal, que responda a este ou aquele neuro­transmissor possa ser responsabilizado por todos os efei­tos observados.

A situação está longe de ser resolvida e mais recente­mente tem se demonstrado a eficácia clínica de substân­cias que diminuem o período de latência exigido pelos antidepressores de 3 a 5 semanas para 5 a 7 dias, abalando ainda mais o estabelecido de que tal período de latência seria devido à sub-regulação do receptor de tipo alfa-2, pré-requisito para a existência de efeitos terapêuticos. O exemplo já testado de tal substância é a reboxetina que é um inibidor seletivo de recaptura pré-sináptica de noradrenalina.

Hipóteses mais abrangentes, como a proposta por Bueno e Himwich, parecem se adequar melhor à reali­dade presente.

A idéia original era a de que a noradrenalina fosse responsabilizada pelos sintomas ditos "somáticos" da depressão, além de interferir diretamente nas alterações de vigilância, de atenção e na capacidade de iniciar as tarefas cotidianas e manutenção de um nível de esforço compatível com estas exigências: o chamado "drive" ou "élan vital", ou "apetite para vida". Estas alterações res­ponderiam mais rapidamente aos efeitos das substân­cias antidepressoras. Por outro lado, a serotonina esta­ria mais relacionada com as alterações mais propria­mente depressivas, "melancólicas" do quadro sendo que a diminuição ou ausência de função serotoninérgica desembocaria no "vitale Traurigkeit", no "Schwermul", a tristeza vital, a melancolia, o pesadume descritos pela psicopatologia alemã, isto é, naquilo que poderíamos chamar de – sintomas depressivos nucleares -, na per­da do interesse pela vida vindo daí os pensamentos de auto-aniquilação, as idéias prevalentes de suicídio, o sentimento de eternidade dos sintomas vivenciados, a ausência de perspectivas, a aniquilação do tempo vivi­do, o desespero e, por fim, a desesperança. Estes sinto­mas, por serem nucleares, demandariam um tempo mai­or para responder aos efeitos das substâncias anti­depressoras.

O conceito central desta hipótese é o da existência de um equilíbrio nos papéis desempenhados pelos neuro­transmissores na manutenção de uma normalidade psicofisiológica. Alterações funcionais, para mais ou para menos de quaisquer dos dois neurotransmissores, ao romper o equilíbrio, traduzir-se-iam em disfunção psicofisiológica levando aos distúrbios de humor. Uma vantagem adicional da hipótese dualista seria a possi­bilidade de as diminuições simultâneas, transitórias ou permanentes de serotonina e de noradrenalina, fornece­rem explicação para os transtornos depressivos de per­sonalidade, depressões leves e moderadas, de curta du­ração e de outras alterações correlatas do "humor vital".

Com a já demonstrada interferência da noradrenalina e da serotonina sobre a função gabaérgica, os transtor­nos de ansiedade podem entrar facilmente na constela­ção sintomática dos transtornos de humor.

Um outro fator complicador na associação de efeitos medicamentosos com psicopatologia de transtornos de humor e de ansiedade é a existência de subgrupos de receptores, ou, melhor dizendo, de efeitos diferentes po­derem se originar da mobilização de um circuito de even­tos quando da interação de um neurotransmissor libe­rado na fenda sináptica com um receptor pós-sináptico ativando um segundo mensageiro que, acoplado à proteína G irá produzir uma ativação enzimática que mo­dulará a conseqüência final destes eventos ao efeito que estará modulando a atividade nervosa superior. Isto é, dependendo dos acontecimentos pós-sinápticos, a re­sultante da liberação de um dado neurotransmissor ati­vando um ou mais tipos de receptores pré ou pós­-sinápticos que lhe são sensíveis poderá variar em fun­ção do tônus psicofisiológico, da necessidade de adap­tar-se esta ou aquela função aos estímulos recebidos. Um exemplo destas interações entre neurotransmissores é fornecido pela diminuição da função inibitória sobre a liberação de dopamina nos gânglios basais, o que resul­tará no desencadeamento da sintomatologia obsessivo­-compulsiva. Uma outra demonstração das múltiplas possibilidades existentes é o fato de a inibição da recaptura de serotonina na fenda sináptica promover sua interação tanto com receptores de tipo 1 (efeito antidepressor) como com os do tipo 2 (que causa au­mento de ansiedade e disfunção sexual). Conforme pode ser deduzido desta rápida avaliação sobre a influência dos neurotransmissores na gênese e/ou eclosão de sin­tomas afetivos e da regularização da normalidade psico­fisiológica com o emprego de medicamentos eficazes que interferem com sua utilização, há uma confirmação de nossa ignorância sobre a etiopatogenia correlata dos transtornos de humor.

Além disso, outros fatores como os psicossociais, os psicodinâmicos pré-morbidos, ou os de aprendizagem, são relevantes para a compreensão da patogenia e do tratamento dos transtornos de humor.

A contribuição dos fatores correlatos genético-hereditários tem se revelado bastante útil no esclarecimento da etiopatogenia destes transtornos de humor. Parece ha­ver uma linhagem familiar de pacientes com depressão de tipo unipolar e que seria mais comum entre mulheres enquanto os transtornos bipolares distribuir-se-iam igualmente entre os dois sexos.

Assim, a partir de estudos feitos em gêmeos mono ou dizigóticos, a existência da história familiar de transtor­no de humor do tipo bipolar demonstrou ser o risco de ocorrência de doença de humor na descendência de 8 a 20 vezes que a expectativa na população geral, dita nor­mal. Para os transtornos depressivos recorrentes pre­sentes na ascendência direta, o risco da aparição de transtorno de humor na descendência é de 2 a 10 vezes maior que a expectativa habitual.

Essas pesquisas genéticas esclarecem que a probabi­lidade de transmissão vai se espraiando dos descen­dentes diretos para os indiretos, como os primos.

Até o momento não foi possível determinar-se o gene ou os genes implicados na transmissão destas caracte­rísticas. Os cromossomos mais diretamente envolvidos são o 5 e o 11. Mesmo não ocorrendo a transmissão hereditária direta dos transtornos de humor, ao menos uma predisposição para sua ocorrência parece ser gene­ticamente determinada.

Finalmente, pode ocorrer que todas as possibilidades que foram analisadas sejam apenas fatores acessórios ou fenômenos periféricos do complexo sindrômico clas­sificados como transtorno de humor e que sua etiopatogenia esteja realmente vinculada a fatores presentemente desconhecidos.

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