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Dora reaparece, 24 anos depois

Como uma publicação complementar ao meu artigo anterior sobre " Dora e a identificação Histérica", estamos trazendo aqui o encontro de uma das mais famosas pacientes de Freud, com aquele que teria sido o seu médico pessoal por um bom tempo.

Sabemos através da história do movimento psicanalítico, que o Dr. Felix Deutsch, foi médico pessoal de S. Freud, e que, por essas voltas do destino, acabou encontrando-se com Dora, a famosa paciente a quem Freud havia se referido há uns 24 anos. Penso que seria de extrema importância a leitura deste trabalho, como sendo uma complementação do anteriormente publicado por mim e, intitulado "O Caso Dora e a Identificação Histérica".

Ao final do outono de 1922, um otorrino pede a opinião do Dr. Deutsh, com quem mantinha uma amizade e relação profissional sobre uma de suas pacientes. Mulher casada de 42 anos, acamada em função de sintomas pronunciados da Síndrome de Menière: tinidos, hipoacusia do ouvido direito, tonturas, e insônia devido a zumbidos ininterruptos. Com o exame do ouvido interno, sistema nervoso e sistema vascular, não foi possível se encontrar nenhuma lesão. O otorrino solicitou um exame psiquiátrico, uma vez que a paciente apresentava-se "nervosamente" segundo ele.

A conversa teve início na presença de seu médico. O marido deixou o quarto, logo após iniciadas as queixas. Ela descreveu detalhadamente barulhos insuportáveis e tonturas, quando mexia a cabeça. Presença de enxaquecas periódicas sempre à direita. Rapidamente começou a fazer queixas sobre a sua vida conjugal. Seu único filho já não dava sinais de afeição. Ele saía freqüentemente tarde da noite e ela suspeitava sobre o seu interesse pelas meninas. Ela sempre o esperava, à orelha ligada, até que ele voltasse para casa. Falou de suas frustrações e de sua frigidez.

Uma segunda gravidez lhe pareceu impossível pela idéia das dores do parto. Expressou a convicção de que o marido lhe foi infiel. Pensou em divórcio, mas nunca chegou a se resolver.

Com lágrimas nos olhos, ela denunciou a mesquinharia e o egoísmo dos homens. Essa fala a levou de volta ao seu passado. Lembrou, emocionada o quanto foi próxima de seu irmão, que se tornou líder de um partido político e, que até hoje lhe acudia quando necessário. Diferente do pai que foi infiel à sua mãe. Censurava o pai por uma aventura com uma jovem mulher casada que era sua amiga e que, ela Dora, havia cuidado de seus filhos. O marido desta mulher lhe tinha feito propostas amorosas, às quais ela tinha afastado.

Esta história me pareceu familiar. Nesse meio tempo, o otorrino tinha deixado o quarto e ela começou a conversar graciosamente, me indagando se eu era psicanalista e se eu conhecia o Prof. Freud. Eu lhe devolvi a pergunta. Ela o conhecia e ele nunca tinha tratado dela? Pareceu-me que ela estava esperando essa "deixa" de minha parte e, apressadamente me revelou que era DORA. Acrescentou que desde o tratamento com Freud, ela não mais tinha visto nenhum psiquiatra. Meu conhecimento da obra de Freud criou um clima transferencial bastante favorável.

As queixas de uma paciente difícil:

Dali em diante, pareceu se esquecer de suas queixas, e se mostrou orgulhosa de ter sido objeto de um escritor tão famoso da literatura psiquiátrica. Depois se referiu à saúde fraca do pai. A mãe, tuberculosa, estava num sanatório. Imaginava que a mãe tinha contraído essa doença do pai, da qual ele sofria quando ela era pequena. Aparentemente, não guardava nenhuma lembrança da sífilis deste último, a qual Fred menciona, considerando-a como sendo uma pré-disposição constitucional na etiologia da constituição neuropática nas crianças. Referiu-se à inquietação que lhe causavam os resfriados, as dificuldades respiratórias, como os acessos de tosse matinal, os quais atribuía ao excesso de tabaco dos últimos anos, e acrescentou que seu irmão tinha o mesmo costume.

Pedi que se levantasse e andasse pelo quarto e notei um leve mancar da perna direita. Não me explicou, mas disse que era algo que remontava à sua infância, e, que aparecia ocasionalmente. Depois ela se pôs a discutir a interpretação que Freud havia feito de seus dois sonhos e queria saber a minha opinião.  Aventurei-me a ligar a sua Síndrome de Menière a seu filho, o qual ela espreitava continuamente. Pareceu aceitar isso, e me pediu uma outra consulta. Quando a vi novamente, ela tinha deixado a cama e disse que seus ataques tinham passado Os sintomas do ouvido tinham desaparecido. Novamente deu curso a uma grande hostilidade em relação ao marido, dizendo que a repugnava a vida conjugal. Descreveu-me suas dores pré-menstruais e os corrimentos pós-menstruação.

Falou de sua relação com a mãe, de sua infância infeliz, devido à limpeza exagerada dessa última, de suas insuportáveis compulsões à lavagem e de sua falta de afeição por ela. A única preocupação da mãe era a sua constipação, da qual agora sofria também Dora. Falou da brilhante carreira do irmão, mas que era pessimista em relação ao seu filho seguir os seus passos. Fui-me embora e ela me disse que voltaria a chamar caso achasse necessário. Nunca mais ela se manifestou. Seu irmão me ligou várias vezes, me demonstrando toda a sua satisfação com o restabelecimento da irmã. Admitiu que ela era de um convívio difícil, dada a sua desconfiança das pessoas e de sua maneira de jogar uns contra os outros.

A conversão histérica de idéias em sintomas corporais:

Tive vontade de comparar o quadro clínico da paciente com aquele que Freud, tinha traçado 24 anos antes, quando Dora tinha apenas 18 anos. É surpreendente constatar que o destino de Dora seguiu tal como Freud o havia previsto. Para Freud, ele reconhecia que o caso havia ficado com um resultado fragmentário, sendo possível só estabelecer hipóteses. Mas, isso em nada enfraquece a sua concepção de base, na qual "a maioria dos sintomas histéricos, no auge de seu desenvolvimento, representam uma situação imaginada de sua vida sexual". É indiscutível que a atitude de Dora frente aos relacionamentos conjugais, sua frigidez, sua repulsa frente à heterossexualidade, vem corroborar o conceito freudiano de deslocamento, o qual é assim descrito: "eu chego a traçar de novo assim a origem dos sentimentos de repugnância: eles bem parecem ter sido constituídos, originalmente em relação a odores e, depois, à vista de excrementos. Mas, os órgãos genitais podem agir como função excretora." Freud corrobora, mais tarde esse conceito em sua nota a respeito de um caso de Neurose Obsessiva, onde ele designa o paciente como sendo um "fungador", mais sensível às percepções olfativas que a maioria das pessoas. Acrescenta que o paciente tinha sido sujeito, na infância, a fortes propensões coprofílicas. Foi assim que o seu erotismo oral se tinha manifestado.

Em Dora poderíamos nos perguntar se certas tendências a percepções sensoriais outras que o olfato, o gosto e a vista, participaram do processo de conversão. É claro que o aparelho auditivo teve um papel central no aparecimento da Síndrome de Menière. Freud emite a hipótese de que a dispnéia de Dora pode ter sido provocada pela atenção que ela tinha, menina, aos barulhos provenientes do quarto dos pais. Ela reeditava esta mesma maneira de ligar (esticar) a orelha, ao ouvir os passos do filho voltando para casa, depois de haver suspeitado de seus interesses pelas meninas. Pelo que tem a ver com o sentido do tato, ela tinha feito prova de seu recalcamento com o Sr. K. Quando ele a tinha pegado nos braços, ela teria reagido como não tendo reparado em nada, sobre o contato de seus órgãos genitais contra o seu corpo. Não tinha podido negar o contato de seus lábios quando ele a beijou, mas se defendia contra o efeito desse beijo pela negação de sua própria excitação, assim como de sua percepção do sexo do Sr. K., o qual ela repelia com muita repugnância.

Não devemos nos esquecer que em 1894, é a um tipo de defesa que Freud designa sob o nome de "conversão", enquanto que ele elabora a idéia de que "na histeria, o pensamento insuportável, se torna inofensivo pela transferência da quantidade de excitação que lhe é ligada a uma forma de expressão corporal". Ainda antes, em colaboração com Breuer, ele formulava: "O acréscimo da soma de excitação usa vias sensoriais e a sua diminuição, as vias motoras (…) Se, no entanto, não se produz nenhuma reação frente a um trauma psíquico, a lembrança deste último fica ligada ao afeto original". Isto é verdade até hoje.

Teria havido um insucesso da psicanálise em Dora?

Com o passar dos anos, Dora teve que se esforçar para proteger seu ego contra a invasão dos sentimentos de culpabilidade. Ela tenta escapar a isso, se identificando com a mãe, a qual acometida de uma "psicose de donas-de-casa" se entregava a todo tipo de ritual de limpeza. Ela e sua mãe viam a sujeira em todos os lugares ao seu redor e, principalmente no interior de si próprias. Atormentadas, já à época do tratamento com Freud, com os corrimentos vaginais, os quais duraram até à época em que vi Dora.

Bastante notável essa maneira de arrastar o pé, observada por Freud, a qual persistiu durante 24 anos ("O MAL PASSO", numa equação simbólica). Dora havia um dia torcido este mesmo pé descendo a escada; o pé tinha inchado, tinham-no enfaixado, e Dora ficou acamada por várias semanas. Se esse sintoma corresponde a uma expressão somática de desprazer, pode durar toda uma vida. Freud sempre manteve suas concepções quanto às leis biológicas, e considerou o desprazer "como estando armazenado para a sua salvaguarda". A "complacência somática, ou facilitação somática", organicamente pré-determinada, asfalta a via de descarga de uma excitação inconsciente. Nós não saberíamos assinalar o quanto bem fundamentada é a proposição de Freud, segundo a qual "parece muito mais difícil criar uma nova conversão, do que formar caminhos associativos entre um pensamento novo que busca a descarga, e um pensamento antigo que não precisa mais".

Freud afirmou que não publicou este caso "para estabelecer sobre seu dia verdadeiro, o valor da terapêutica analítica". Afirmou também que a melhora efêmera de Dora, não poderia ser imputável à brevidade do seu tratamento (3 meses apenas). Dora não pôde se beneficiar das descobertas ulteriores de Freud, sobre a neurose de transferência, bem como da elaboração secundária, pois seu brusco rompimento foi "um ato de vingança incontestável, que, além do mais, veio a alimentar seu destino auto-destrutivo.

Doença e morte de Dora:

Mais de 30 anos se passaram depois de minha visita à Dora de cama. Sem a nota do Dr. Jones sobre a sua morte em Nova York, nada me teria permitido recolher outros dados. A evolução dos fatos, passo a relatar: seu filho levou-a da França aos Estados Unidos, e ele fez uma brilhante carreira de músico. Ela o atormentava com as mesmas reivindicações, com as quais  havia atormentado o marido que tinha morrido de uma doença coronária, assolado pela sua conduta quase paranóica. Ele tinha preferido morrer a se divorciar (???). Eis bem o tipo de homem que Dora podia escolher como marido, assim como teria ela declarado no tempo de sua análise: "Os homens são tão detestáveis que eu preferiria ainda não me casar – Eis a minha vingança". Seu casamento só servira para camuflar a sua repugnância pelos homens. Após a morte do pai, nos anos 30, começou a sofrer de palpitações, as quais ficaram atribuídas ao seu tabagismo exacerbado. Reagiu a isso, com crises de angústia, relacionadas ao medo de  morrer. Deixou as pessoas ao seu redor, sempre em estado de alerta e colocou uns contra os outros. Seu irmão, grande fumante, também morreu de uma afecção coronária, muito tempo depois em Paris. A mãe de Dora morreu num sanatório. Dora teria seguido a obsessão pela limpeza, mas orientada para o próprio corpo. Como os corrimentos vaginais persistiam, chegou a se submeter a algumas intervenções ginecológicas menores. Sua constipação, a impossibilidade de "limpar os intestinos", lhe ocorreu até o fim da vida. Assim, sua morte de um câncer de cólon diagnosticado muito tarde, caiu como uma bênção para os seus próximos. Dora teria sido das histéricas, uma das mais desagradáveis.

Esse suplemento é um elemento a mais no pós-scritum de Freud, o qual deverá nos propiciar a reflexão sobre a problemática da conversão e, de levar-nos a pensar sobre qual o grau de validade dessas concepções em relação às nossas concepções atuais.

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