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Humanitas de Machado de Assis

Introdução

"Só o fim da vida dá sentido a toda a vida". Assim Mauriac sim­plificaria o estudo de Quincas Borba. A facilidade de partir do final trágico, da partida de Barbacena, do agasalho em casa de Brás Cubas, da carta a Rubião, da morte em delírio, para concluir que o autor do humanitismo é um maluco.

O clínico psi não deve abandonar seus instrumentos de análise, mas tem que evitar o desvio profissional de esta­belecer fronteiras rijas entre a saúde mental e a loucura, entre o normal e o patológico, o bem-pensante e o delirante, para adotar uma atitude abrangente que mer­gulhe nas raízes biográficas para trazer à tona a história de uma vida, mesmo quando fruto de uma construção literária, sobretudo se tecida com excepcional intuição psicológica. 


A história de Quincas Borba

Assim o faremos com Quincas Borba, como nas re­constituições para fins periciais. Levantemos os dados relativos à sua história pessoal e vejamos se é possível esboçar um perfil de sua persona­lidade pré-mórbida, e armarmos a investigação da doença mental aparente.

Ele é apresentado na escola, onde seu comporta­mento se caracteriza pelas peças que pregava ao calvo e obscuro professor Ludgero Barata (os nomes de Machado são bizarros). Insetos homônimos do professor eram colocados, mortos, pelo peralta colega de Brás Cubas nas algibeiras do mestre, nas gavetas e dentro do tinteiro, para provo­car no professor uma reação de repúdio, expressa em im­propérios aos alunos. Quincas Barba deixava-se ficar "quieto, com olhos espetados no ar"; era um anjo por fora, pois era "gracioso", "a flor, não já da escola, mas de toda a cidade".

Apresentava-se "amimado, asseado, enfeitado" e era guardado por um vistoso pajem, que permitia ao seu jovem amo e companheiros gazetear, quando desejassem.

Esses traços que, segundo os critérios psicológicos modernos (nos USA o faltar às aulas no curso primá­rio constitui delito, do qual são responsáveis os pais), mostram uma personalidade infantil, rebelde, reforçados os deslizes da conduta escolar por tendências persecutórias, inculcadas pelo ambiente escolar. Escolhiam-no para Imperador nas festas do Divino. Daí ser coerente que, nos jogos, escolhesse o papel de Rei, ministro, general. E o fazia com "garbo" e "gravidade, certa magnificência nas atitudes, nos meneios".

É singular essa descrição de Quincas Borba menino. Mesclam-se atitudes de rebeldia (contra o professor, o re­gulamento escolar) e um gosto pela evidência, pelas situa­ções de privilégio, ostentosas.

Passam-se os anos. Quincas Barba surge no Passeio Público e dirige-se ao seu antigo colega Brás Cubas.

O Dr. Cubas custa a reconhecê-Io. Vinha andrajoso. Apa­rentava trinta e oito ou quarenta anos. Era o puro con­traste com "o gracioso menino do outro tempo". "Figura esquálida, a barba pintada de branco". Em suma, apre­sentava-se como um decaído, um marginal.

Brás Cubas anota que os olhos conservaram "certo ar escarninho" e que "ele suportava com firmeza o meu espanto". Julgou-o até contente.

Essa nota do humor é preciosa. Mostra como a trans­formação do exterior não afetara a antiga personalidade vaidosa, como se brincasse com a trombada da vida, que o derrubara de rei a mendigo.

De igual modo Quincas Borba se comporta ao pedir ajuda a Brás Cubas; alegra-se com a cédula de cinco mil-réis, mas não deixa passar o benfeitor que quer ter­minar o encontro. Promete ensinar-lhe sua filosofia da miséria (vide Proudhon).

Quando Quincas Borba toma-lhe o pulso e encara o anel de brilhante nos dedos do amigo, Brás Cubas já sus­peita de sua condição mental. Somara-se em seu espírito: a miséria, a ausência de domicílio, o repúdio ao trabalho, os ares de cobiça pelas jóias e pelo traje, o humor contras­tante, a perda do relacionamento social entre os antigos colegas. A suspeita era justificada e logo confirmada, quando, ao voltar para casa, Brás Cubas sente falta de seu relógio, furtado num abraço intempestivo.

Essa descrição completa, com anos de intervalo, o quadro esboçado do menino problema. Somam-se os dados evolutivos de uma personalidade psicopática.

Sabemos hoje que muitas doenças mentais podem ter início por distúrbios da conduta, desde os mais leves até a delinqüência. Muitos quadros psicóticos fazem estágio em um escalão que a antiga Classificação da Associação Psiquiátrica Americana designava por Desordens primá­rias do comportamento.

Nesse momento, se atuado e enviado pela Justiça a um psiquiatra para esclarecimento, Quincas Borba teria sido diagnosticado personalidade psicopática e hoje em dia seu delito seria julgado com o benefício do Parágrafo único do artigo 22 do Código Penal.

Não nos é informado quanto tempo passara desde o encontro desagradável do Passeio Público até o dia em que Brás Cubas recebeu de Quincas Borba uma carta, acompanhada de um bonito relógio, em substituição ao anteriormente tomado de empréstimo.

Brás Cubas leu a carta sem a entender. Nela o antigo companheiro dos anos escolares lhe anunciava a melhoria de vida e pedia licença para visitá-Io, a fim de expor-lhe uma teoria filosófica que elaborara. Introduz as linhas gerais do sistema. Pretendia explicar a origem e a con­sumação das coisas. Dava passo à frente do velho estoi­cismo. Afirmava suas virtudes práticas: ratifica o espí­rito humano, suprime a dor, assegura a felicidade e, numa linha acentuada em nossos dias, promete encher de imensa glória o nosso país. Declinava-lhe o nome: Humanitismo, pois Humanitas é o princípio de todas as coisas. Poderia tê-Ia chamado borbismo, mas isto seria uma manifestação vaidosa, inconveniente para quem tinha na palma da mão a verdade e a felicidade.

Esperemos a visita prometida e uma exposição mais circunstanciada do sistema, para discuti-Io.

Quincas Borba surgiu imponente, "como um desem­bargador sem beca". Trajava sobrecasaca bem talhada, camisa alva e botas de verniz. A voz mudara e voltara à primitiva sonoridade. A gesticulação não perdera a viva­cidade, não era desordenada, estava sujeita a certo mé­todo. Herdara alguns pares de contos de réis de um pa­rente.

Contou a Brás Cubas sua história, que não pareceu ao memorialista necessário repetir. Este último referiu-se a tropos relacionados à nova concepção de vida de Quin­cas Borba, cujo talento de observação gabou, tanto no descrever a gestação e o crescimento do vício, como na verificação das lutas interiores, das vagarosas capitula­ções ao uso da lama.

De como se adaptou a dormir na escada de São Fran­cisco é explicado em uma teoria condutista e progressiva. Cada comportamento se prende ao seguinte como um elo natural numa cadeia.

Brás Cubas recusou ouvir, naquela primeira visita, a exposição da filosofia borbista. Na despedida, Quincas Borba arruma-lhe um tropo de entusiasmo pelo Humanitismo, mar imenso no qual convida o amigo a, com ele, mergulhar. Ultrapassara os gregos, os subgregos e os antigregos, que antes desciam aos poços, como se a ver­dade de lá pudesse sair. Os mais felizes voltaram com um sapo. Era ir diretamente ao oceano do Humanitismo.

Não dizem as Memórias quando Quincas Barba pôde, afinal, expor a Brás Cubas o Humanitismo. Forçoso é tentar uma síntese, que implica em um expurgo dos enxertos romanescos e irônicos que amenizam o texto.

Humanitismo é a doutrina que proclama Humanitas como o princípio de todas as coisas. Humanitas (usado por Quincas Borba no significado latino stricto sensu) é o mesmo homem repartido por todos os homens.

Não é dito, mas cumpre supor que Humanitas é um princípio ativo, uma força vital, que evolveu em três fases:

1 – estática, anterior a toda criação;

2 – expansiva, começo das coisas, e

3 – dispersiva, aparecimento do homem.

Essa energética obedece também à Segunda Lei da Termodinâmica, e contará uma quarta fase, a contrativa: absorção do homem e das coisas.

A expansão sugeriu a Humanitas o desejo de gozar; daí a dispersão em que se processou a multiplicação per­sonificada da substância original.

Neste ponto, o filósofo comenta as superficiais seme­lhanças com sistemas filosóficos anteriores e focaliza o bramanismo (panteísmo vitalista). Mostra a amplidão da sua doutrina, que não se limita a aspectos religiosos e rituais. Mas incorpora disfarçadamente a doutrina das castas ao distribuir os homens originados das partes for­tes do corpo (rins e peito) e os das menos dignas (cabe­los e ponta do nariz). Daí passa, sem mais, à apologia do músculo (tão atual) e eleva Hércules à posição de sím­bolo antecipado do Humanitismo. Incidente alude ao fra­casso do paganismo (nesse particular em oposição a Fer­nando Pessoa que propôs retomá-lo como religião oficial) – afastado da verdade pela parte "galante" (delicioso vitorianismo machadiano) dos mitos pagãos.

Nesse passo, carrega nas cores estóicas e no Huma­nitismo, do qual ficam fora: aventuras fáceis, quedas, tristezas e alegrias pueris.

A reprodução é um ritual que "longe de ser um ga­lanteio é a hora suprema da missa espiritual". "Daí só haver uma desgraça: é não nascer". A miséria é assim forçosamente superior à morte.

O homem é ao mesmo tempo: veículo, cocheiro e pas­sageiro de Humanitas (feliz expressão artística de um mecanismo de condensação).

Surge, então, o elogio da inveja, na verdade senti­mento pouco estóico. Para essa demonstração usa a téc­nica dos sofistas, identifica carrasco e vítima, a agressão com uma manifestação de força de Humanitas, cujos senti­mentos bélicos são os mais adequados à sua felicidade. Há um descarrilamento na argumentação: a guerra é comparada ao estalar dos dedos de Humanitas.

O ciclo energético (biológico-vitalista) é apresentado a partir de uma asa de frango e caminha até a consta­tação do sistema agrário baseado na escravatura.

E surge um grande objetivo: a destruição da dor. Há aqui um lampejo genial. Quincas Borba profetiza a doutrina dos reflexos condicionados. Ela tem aqui o nome de predisposição. O medo da paulada provoca na criança uma atitude defensiva (fecha os olhos) e cria a condição para a dor, que, em seguida, se torna a base de uma ilusão humana, herdada e transmitida. (Convém ressal­tar o significado dessa passagem para a apuração dos conhecimentos científicos de Machado. O texto tem um embasamento darwinista. Não há uma evolução no sen­tido seletivo no mecanismo exposto, mas ele obedece às estritas leis da transmissão dos caracteres adquiridos. No mesmo sentido fala a conclusão do parágrafo: para essa evolução serão precisos milhares de anos. Um século de­pois, talvez Machado de Assis temperasse o caldo darwi­nista com um ainda mais picante pseudo-otimista tomado a Teilhard de Chardin).

E o humanitismo pode eliminar a dor.

Eis o método: "Uma vez que o Homem se compe­netre bem de que ele é o próprio Humanitas, não tem mais do que remontar o pensamento à substância original para obstar qualquer sensação dolorosa".

Finalmente somos informados que a obra consta de 4 volumes, cada qual contendo umas cem páginas, escritas com letra miúda e com citações latinas. O último deles é um tratado de política. Aí se prevê que uma vez im­plantado o Humanitismo "ficavam eliminadas a guerra, a insurreição, o simples murro, a facada anônima, a mi­séria, a fome, as doenças". Contudo, por serem "movi­mentos externos da substância interior", destinada a não influir sobre o homem, senão como simples quebra da monotonia universal, claro está que a sua existência não impediria a felicidade humana.

No entanto, na espera da aceitação do Humanitismo, cada indivíduo deveria achar a maior delícia do mundo em sacrificar-se ao princípio de que descende, porque não diminuiria o poder espiritual do homem sobre a terra, inventada unicamente para seu recreio.

Até aqui a exposição da doutrina, que dias depois era aplicada por Quincas Borba (para consolar Brás Cubas abalado com a morte inesperada de D. Eulália) a propósito das epidemias – uma das manifestações da ação de Humanitas – duplamente benéfica porque deixa sobre­viver o maior número e dá aos sobreviventes a satisfação de haver sido poupados.

A presença de Quincas Borba junto a Brás Cubas faz-lhe adquirir autoridade sobre o deputado. Previne um escorregão de Brás Cubas, na ladeira fatal da melancolia, com uma exortação a gozar a vida aos 50 anos. No episó­dio da barretina, o filósofo se manifesta na forma e no conteúdo do discurso parlamentar e vai mais longe ao advogar a supressão desse complemento da indumentária militar.

Cubas perde a cadeira de deputado e pretende desis­tir da luta política. Em uma lição peripatética, em um passeio para os lados do Engenho Velho, Quincas Borba convence o amigo a não recuar. Se perdera uma tribuna devia abrir um jornal. "O essencial", pontificava, "é que lutes. A vida é luta". Cubas anota: "A palavra daquele grande homem era o cordial da sabedoria".

Momentos após, presenciam os dois passeantes uma briga de cães. O filósofo faz o amigo parar e observar. Dois cães e um osso – o motivo da guerra. Ainda mais: osso sem carne. Quincas Borba, de bengala debaixo do braço, se extasia ante a beleza do espetáculo. Ao terminar a luta, pois um dos animais mordido abandonou o campo de batalha, Quincas Borba "sinceramente alegre", embora contivesse, como convinha a um filósofo, a sua alegria, começou a discursar sobre a luta mais dura, noutras pla­gas, onde os homens, com a sua sabedoria acumulada, disputam os ossos aos cães. Prosseguiu nesse tom, a mos­trar as exigências da fome e os efeitos da luta pela vida. Preferia a luta ao ascetismo.

Chegam de volta a casa. Brás Cubas ocupa-se em ler uma carta de Virgínia. Quincas Borba examina uma es­tante de livros, tira daí um volume. Era a obra de Pascal, a quem proclama um de seus avôs espirituais. Guardava, dentro de casa, o chapéu na cabeça, sobraçava a bengala e apontava um trecho no livro aberto. Julgava-se maior que Pascal, pois saber que se tem fome é mais significa­tivo que saber que se morre, e concluía "a fórmula de Pascal é inferior à minha".

Aprofunda-se em Brás Cubas a influência de Quincas Borba. O programa do jornal a ser fundado era uma apli­cação política do Humanitismo. Embora não publicado o livro, foi combinada uma referência ao mesmo. Borba recebeu "uma declaração, autografada e reservada, de que alguns princípios novos aplicados à política eram tirados do livro dele, ainda inédito".

'Voltam considerações subpascalianas e humanitistas, com as alusões às guerras de Napoleão e uma contenda de cabras.

Sentindo induzida a sua sabedoria, Quincas Borba exclama para Cubas: "Tu és o meu discípulo amado, o meu califa" e promete seguir sem receios, pois é o dono "da verdade eterna, anterior aos mundos, posterior aos séculos".

A união dos amigos permanecia perfeita. Certa noite, Brás Cubas sonhou que era nababo, e ao acordar sentiu desejos de ser nababo. Revela-se o memorialista inclinado a devaneios. Conta um deles a Quincas Borba. Julgava-se com poderes capazes de mudar de suas funções e lugares o Arcebispo de Cantuária e um simples coletor de Petró­polis e acompanhar as conseqüências desse duplo deslocamento. Comunicou esse pensamento a Quincas Borba que o estranhou, olhou o amigo com cautela e, afinal, trans­mitiu-lhe sua suspeita de Cubas estar doido.

No dia seguinte, Borba mandou um alienista visitar o amigo. Cubas, que o conhecia, ficou aterrado. Mas a entrevista é favorável e a conclusão do especialista foi: "Raros homens terão juízo como o senhor". E, do diálogo entre eles, surge a opinião do alienista sobre Quincas Borba, cheia de evasivas.

– "Se é amigo dele… peço-lhe que o distraia…" que, à objeção de Brás Cubas que julgava o amigo um homem de tanto espírito, o alienista retrucou: "A loucura entra em todas as casas".

Na saída, com atitude muito profissional, procura diminuir a impressão e afirma "um grãozinho de sandice, longe de fazer mal, dava certo pico à vida".

Para maior consolo relembrou a história de Trasilau (Camões Oitava I dedicada a Don Antonio de No­ronha), que no Pireu se acreditava dono dos navios anco­rados no porto e passava o dia a vê-Ios manobrar, entrar e sair, e afirmou que também ele se acreditava, de quando em quando, proprietário de dois ou três patachos. E na linha do alienista da Casa Verde diagnostica imediata­mente a mesma mania no criado que limpava os salões da residência de Cubas. Quincas Borba discordou e apli­cou a hermenêutica do Humanitismo para afirmar que o criado apenas sentia o orgulho do servilismo.

Brás Cubas, depois de comprometer-se a impedir que entrassem no cérebro de Quincas Borba maníacos de outras plagas, acaba, em um arroubo, com os braços lança­dos ao pescoço do filósofo, que exclamou: "Sublime és tu". Depois do abraço, afirmando-lhe que julgava impos­sível que um homem tão profundo chegasse à demência ­forma que encontrou para comunicar-lhe a suspeita do alienista. Quincas Borba estremeceu e ficou pálido ao saber desse veredicto.

Segue-se a promessa de anexação ao Humanitismo de uma parte dogmática e litúrgica. O Humanitismo (como o positivismo então dominante) seria a religião do futuro. "A fase contrativa é a reconstituição da substân­cia, não o seu aniquilamento, etc.".

É então que Quincas Borba volta para Minas Gerais, de onde regressa passado, ao todo, dez meses. Cubas o vê novamente demente (grifo do comentador), tal como o encontrara no Passeio Público.

 No entanto, em Barbacena, Quincas Borba cortejara Maria da Piedade e com ela pretendia casar-se. A moça não concordou, morreu de pleuris. Rubião, irmão dela, uniu-se assim ao pretendente sem notar que ele trazia o grãozinho de sandice, diagnosticado pelo alienista da Corte, que não se desprendera do seu cérebro, "nem antes nem depois da moléstia que lentamente o comeu".

Dessa amizade nasceu o desempenho de enfermeiro que retém Rubião ao pé de Borba, "cinco meses, perto de seis". A doença era fatal, disse o médico ao amigo-enfer­meiro.

Quincas Borba, fiel à doutrina do Humanitas, adota um cachorro, que crisma com o seu nome – pretendia, assim, sobreviver.

Pouco a pouco, caminha Quincas Borba "nos subúrbios da morte". "Os olhos pensar o cérebro".

Quincas Borba tenta ensinar a Rubião a doutrina do Humanitas, através do exemplo da morte da avó, a dono da sege que a esmagou tinha fome. O cocheiro fustigou as mulas. No caminho, um obstáculo: a avó de Quincas Borba. Derrubou-a. Humanitas tinha fome; Humanitas precisa comer.

O ex-professor de meninos não percebe o alcance dessas filosofias. Quincas Borba, paciente, promete ensi­nar-lhe aos poucos. Rubião é instituído discípulo.

Aperfeiçoa-se a formulação do conceito de Huma­nitas. "Humanitas é o princípio. Há nas coisas todas, certa substância recôndita e idêntica, um princípio único, universal, eterno, comum, indivisível e indestrutível". "Assim lhe chamo, porque resume o universo, e o universo é o homem".

Prossegue em uma doutrina que contém a filosofia bio­lógica de Bichat: "Não há morte, há vida, porque a su­pressão de uma é a condição de sobrevivência da outra". Ilustra agora com a guerra das batatas. "Ao vencedor, as batatas". E continua na apreciação da fervura e do des­tino das bolhas d'água. À ingênua objeção de Rubião, opõe: bolha não tem opinião. "Nada se perde tudo é ganho".

O esforço do longo discurso deixara Borba exausto. Nem por isso se calou. "Misturou idéias próprias e alheias, imagens de toda sorte, idílicas e épicas". Ainda saiu a passear.

No dia seguinte, amanheceu com a resolução de ir ao Rio de Janeiro, sem levar em conta a opinião do mé­dico – um charlatão. "Moléstia e saúde eram dois caro­ços do mesmo fruto, dois estados de Humanitas".

Antes de partir registra o testamento.

Partiu e apareceu em casa de Brás Cubas, nas con­dições já referidas.

Sete semanas depois escreveu a Rubião – "Quem sou eu, Rubião? Sou Santo Agostinho". "Descobri isso anteontem: ouça e cale-se". Encontrara uma perfeita coincidência nas duas vidas. Acaba com ameaças e pi­lhérias, sem esquecer recomendações no trato do cachorro, que deixara aos cuidados de Rubião.

O mineiro impressionou-se com o teor da missiva. "Não havia dúvida, estava doido". "Morria antes de morrer".

Na casa de Brás Cubas, o filósofo revela que quei­mara o manuscrito. Ia reescrevê-Io. No entanto, uma realidade se impunha: "estava doido, mas sabia que estava louco". Restos de consciência afloravam no comportamento e no olhar – "um raio persistente de razão, triste como uma lágrima".

Quincas Borba manteve-se ligado às suas idéias e interpreta seu mal como uma "prova de Humanitas, que assim brincava consigo mesma".

Recitava "longos capítulos do livro, e antífonas, e litanias espirituais; chegou até a reproduzir uma dança sacra que inventara para as cerimônias do Humanitismo".

"Morreu pouco tempo depois, pisando e repetindo sempre que a dor era uma ilusão".

Uma notícia no jornal resume a história de Quincas Borba e sua filosofia, que negava a dor e afirmava que Pangloss não era tão tolo como Voltaire o pintara… E, dado raro, nos comunicados fúnebres aos periódicos, fora acrescentado: "E já então delirava".

Brás Cubas manda um bilhete a Rubião: "O meu pobre amigo Quincas Borba faleceu ontem em minha casa, onde apareceu há tempos esfrangalhado e sórdido: frutos da doença". O mais será visto na biografia do legatário Rubião.

Mas esta é uma outra história.

A Psicopatologia em Quincas Borba

 

Estabelecida a história de Quincas Borba, seja-me permitido dela me aproximar como clínico psi. Um alienista o examinara um ano, talvez, antes da doença de que veio a morrer. Já então pôde formular uma suspeita de loucura. A notícia de sua morte publi­cada em um jornal assinalava que, antes da agonia, já de­lirava. Não é fácil, porém, a tarefa a empreender. Aqui não cabe a sabedoria da sentença de Mauriac: "Só o fim da vida dá sentido a toda a vida".

As loucuras terminais, mesmo sem nelas incluir as do processo agônico, não são raras em medicina. Assinale-se o transtorno mental da grave insuficiência hepática.

Importa é saber se há uma continuidade na história da vida de Quincas Borba que permita interpretar as­pectos de seu comportamento, e, em particular, o resul­tado comunicado das suas indagações filosóficas como expressão de um processo psicopatológico.

Convém estabelecer um escalonamento para melhor caminhar:

1 – Em menino mostrou-se Quincas Borba diferente. Suas traquinagens ultrapassavam os limites do tolerado às crianças. A perseguição ao professor Barata o faria considerar por um psicopedagogo francês como um "ca­ractériel" que, traduzido, quer dizer: menino com defi­ciências graves no aspecto moral do comportamento. As gazetas, embora apresentadas de forma simpática, e com a cumplicidade do pajem, em uma pequena cidade do centro dos USA, seriam, se descobertas, objeto de uma inquirição dos responsáveis pelo aluno, levada a efeito pelas autoridades escolares e; talvez, do juizado de me­nores.

Junta-se a esse fundo a reação de vaidade, estimu­lada pelo papel de Imperador da Festa do Espírito Santo, e a insistência em desempenhar sempre uma função de chefia nos brinquedos do grupo.

Não é muito, mas nenhuma ficha clínica psi dei­xaria de anotar esses dados, que formam um esboço do qual o vadio do Passeio Público será a realização.

2 – Quando Quincas Borba reaparece a Brás Cubas, no Passeio Público, estava beirando os quarenta anos. Nada se sabe de sua vida entre o colégio do professor Barata e aquele encontro. Brás Cubas foi de tudo infor­mado mais tarde. Não lhe desmereceu o amigo esse conhe­cimento, talvez porque, a essa altura, as teorias de Quincas Borba o tivessem cativado. De qualquer maneira, o qua­dro é grave. Andrajoso, famélico, vadio, com a moradia no terceiro degrau da escada de São Francisco, conser­vava uma atitude jactanciosa e não hesitava em surru­piar, em um abraço, o relógio do bolso do amigo, justo quando este acabara de acudi-lo com algum dinheiro.

Não se pode recusar a esse quadro o seu colorido psicopático. Muitas vezes, deslizes éticos precedem o apa­recimento de desordens do pensar. A afetividade já com­prometida, e a vontade não mais põem barreiras aos impulsos. É a chamada fase médico-legal das psicoses.

Convém ainda distinguir a conduta exibida no en­contro do Passeio Público daquela verificada em Minas Gerais, na volta de Quincas Borba, já gravemente doente. Aí as vestes esfrangalhadas e a sordície resultavam da invasão do mundo da realidade pelo delírio. Não era, então, um vadio, mas um capitalista doente e delirante.

3 – Quando Quincas Borba escreve a Brás Cubas para restituir-lhe o relógio emprestado e anuncia-lhe seu próximo regresso, sofrera uma sensível mudança o antigo menino mimado. Voltara a conduzir-se de modo social­mente ajustado. O narcisismo reponta na indumentária caprichada e a própria maneira de falar retomara o timbre das pessoas bem educadas. Havia, na verdade, um fato novo: os pendores filosofantes de Quincas Borba. Estes constituem o núcleo do problema, ou melhor, o ca­roço. Merecem, por isso, um item próprio.

4 – A doença terminal de Quincas Borba não é iden­tificada nas Memórias Póstumas. Arrastou-se por um par de meses e precisou de médico, e enfermeiro permanente. Com a debilidade física, com a entrada nos subúrbios da morte, o cérebro, trabalhado por intensivas excogitações, delira. A realidade se esbate e a lucidez cede lugar à obnubilação. Irrompe o delírio. Freqüentemente parecia olhar para dentro, como se procurasse ver o cérebro tra­balhar; trabalhar sim, mas falhar também.

Esses dados não esclarecem o diagnóstico psicopatológico de Quincas Borba. Configuram um delírio sintomá­tico, terminal, enxertado em uma psicose crônica. Aqui é que pega o carro.

5 – Existem elementos hábeis para provar que o Humanitismo é uma construção delirante. Será possível estabelecer uma linha de continuidade entre a conduta psicopática exibida no Passeio Público e a ardilosa cons­trução elaborada nos anos do recesso em Minas Gerais?

6 – É o que vou tentar. Já aludi: aí está o caroço e para quebrá-lo é preciso ter bons dentes, imagem que tomo a Augusto Meyer (O preto e o branco). Será con­veniente lembrar que, em uma primeira aproximação, o Humanitismo é um documento que vai ser dissecado, quase com técnica estruturalista, separada sentença de sentença, para comparação e julgamento de sua íntima conexão, desconexão, oposição, ou ambivalência.

Alinhemos primeiro os elementos heurísticos dispo­níveis:

a) a carta a Brás Cubas, encaminhando-lhe um re­lógio;

b) a longa exposição da doutrina;

c) as várias aplicações do Humanitismo, surgidas a propósito das epidemias, da necessidade de gozar a vida aos cinqüenta anos, do uso da barretina, da teoria do benefício;

d) as considerações surgidas no passeio a pé pelo Engenho Velho, quando Quincas Borba consola Brás Cubas pela perda da cadeira de deputado e o retém para apreciar uma briga de cães na disputa de um osso sem carne;

e) Quincas Borba supera Pascal;

f) depois de examinado pelo alienista, Quincas Borba promete a Brás Cubas, que se refugia na adminis­tração de uma Ordem Terceira, ampliar o humanitismo com uma parte dogmática e religiosa, uma verdadeira religião do futuro;

g) em Barbacena, Quincas Borba instrui Rubião. Sem sucesso com o exemplo da morte de sua avó, passa às tribos e às batatas – "Ao vencedor as batatas".

Com esses elementos é possível caracterizar o Huma­nitismo e mostrar que na lógica aparente de sua cons­trução há descarrilamentos e contradições, em suma: des­níveis formais do pensamento. Por outro lado, o impulso criador é sempre expansivo, nunca contrativo como Quincas Borba pretende ao expor a Brás Cubas as pri­mícias da religião de Humanitas. O sistema filosófico de Borba alarga cada vez mais seu território. Ê sabido que os sistemas delirantes, como certas ideologias, adquirem a capacidade de abranger, em seu território, um mundo cada vez maior de áreas de influência. É um processo que tende a estabelecer relacionamentos cada vez mais com­pletos.

Na carta em que anuncia a Brás Cubas seus novos interesses especulativos, Quincas Borba diz que poderia ter chamado ao seu sistema "borbismo", mas isto teria sido uma interpretação vaidosa. A justificativa contrasta com a tradição da coroa de Imperador, com a satisfação de ultrapassar Pascal e, já no plano vesânico, com a identificação com Santo Agostinho. Importa assinalar essas contradições, fruto do humor exaltado de Quincas Borba. Na mesma carta, Borba afirma que tem nas mãos a verdade e a felicidade, a confirmar o que acaba de ser dito.

A verdade, a sua verdade, ele a fora buscar direta­mente ao mar e assim se avantaja aos gregos e também aos romanos, pois seu estoicismo ultrapassa o de Zenon e Sêneca. O mar como símbolo da vastidão filosófica de Quincas Borba, e a filosofia grega reduzida a extrair de seu poço um sapo exemplificam a grandiosidade doutrinária no pensador do Humanitismo.

O homem é o princípio de todas as coisas. Não mais a medida, como em Protágoras, mas o princípio mesmo. Humanitas é a força vital que engendrou a evolução. No princípio estática, tornou-se expansiva e deu início à criação, e quando dispersiva determinou o aparecimento do homem. Afinal, Humanitas é o homem repartido em todos os homens ou é uma força pura que, ao evolver, cria formas propulsivas? Era estática, tornou-se expan­siva, depois dispersiva. Mas chegará a ser contrativa, em uma absorção dos homens e das coisas. Que isto pode acontecer em um ciclo energético infinito, Quincas Borba o afirma, quando uma asa de galinha em seu prato fá-Io abrir um leque de transformações. Mais tarde, corrigirá sua noção de fase contrativa, como assinalamos, sem atingir com isso a hipótese energética fundamental do sistema.

A coerência do sistema é perturbada por um desvio, surgido ao refutar o bramanismo. Pode haver homens diferentes, fortes filhos dos rins ou do tórax, inferiores nascidos dos cabelos e da ponta do nariz. A incidência de todo esse tropo de raciocínio constitui um descarrila­mento do pensar. Houve a introdução em um corpo de dou­trina, sem motivo adequado, de um grupo de idéias de alcance diverso daquele que era seguido. Humanitas era até então uma força igualitária, um órgão energético não diferenciado, o mesmo homem repartido em todos os homens. Agora há homens diferentes. Nessa perda de di­reção caminha, com o elogio do músculo, de Hércules, de certos aspectos do paganismo, incapaz de atingir a ver­dade por seus excessos galantes.

A idéia acarreta uma discussão sobre a sexualidade socializada como missa espiritual, de onde surge o único bem: a vida.

Novo salto para banir as aventuras fáceis, as tris­tezas e as alegrias pueris.

Bruscamente surge uma imagem densa: Humanitas é a condensação do homem como coche, cocheiro e passa­geiro.

E esse tríplice ajuste deve ser movido pela inveja. Nova contradição agora com o puritanismo que propõe acabar com as aventuras galantes e as alegrias pueris.

Continua com o elogio do carrasco, do apunhalador ­sinais da força de Humanitas – a quem os sentimentos bélicos trazem a felicidade.

Desembarcamos assim numa praxia da força e nos encontramos subitamente face às ideologias contemporâ­neas lutuosas.

Em franco contraste com essas idéias, é negada a dor, explicada como uma predisposição, tornada reflexo condicionado, e ainda capaz de fixar-se e ser transmitida por herança. O remédio é, porém, fácil: remontar o pen­samento à substância original para obstar qualquer sen­sação dolorosa.

Não é isto uma pura contradição? A dor é fruto de uma predisposição que pode ser eliminada com uma sim­ples reflexão que atinja a substância original, aquela mesma que gera a predisposição à dor. Quase mágico! Tão mágico como o pretendido através de técnicas dila­tadoras da consciência.

Finalmente, a parte política que eliminará, quando aplicado o Humanitismo, todos os males sociais; porém se estes perdurarem como "movimentos externos da substância interior" que não são destinados a influir sobre o homem (negação da realidade – os males sociais são os que atingem em cheio o homem), mas apenas uma simples quebra da monotonia do universo, a presença dessas calamidades não impediria a felicidade universal. Aqui só há que reconhecer a idéia delirante que não se preocupa com a lógica, com a evidência, que é irredutível a qualquer argumentação. No fim, uma euforia injustifi­cada – o paraíso não foi perdido, a terra aí está para satisfazer ao homem.

Acreditamos que essa análise seria suficiente para mostrar os desvios do pensar inerentes à estrutura do Humanitismo. Com isso, não lhe negamos nem a beleza, nem o valor crítico, nem a capacidade de veicular impor­tantes pontos de vista pessoais de um grande artista, em busca, talvez, de transmitir sua visão do mundo.

A análise foi empreendida no sentido de compreender o significado do "sistema filosófico Humanitismo" na vida do homem Joaquim Borba dos Santos. A captação desse significado é tentada, não no sentido de um julga­mento de valor, mas no de procurar integrar uma his­tória de vida, que começa na esplêndida figura de um menino-flor coroado de Imperador do Espírito Santo e termina nas margens de um delírio, onde surge como farol, a identidade, com o bispo de Hipona.

Convém acrescentar que, ao acompanhar as aplica­ções práticas – permitam-me o adjetivo – do Humani­tismo, não vejo aumentada, diminuída ou modificada a coerência do sistema.

Todos os episódios em que Humanitas interfere mostram a mesma idéia, em nova roupagem. A cena da luta de dois cães por um osso sem carne, surgida no curso de um passeio dos dois amigos pelo Engenho Velho, quando Quincas Borba procurava consolar Brás Cubas pela perda da cadeira de deputado, antecipa a apoteose da explicação do Humanitas, vista agora como a fome, mola da conduta humana: a justamente famosa disserta­ção ao discípulo Rubião sobre a guerra das tribos e as batatas.

Antes convém registrar o arroubo de Borba quando, empunhando a obra de Pascal, exalta a própria: "Saber que se tem fome é mais profundo que saber que se morre". Como caricatura é perfeita. Cabe, porém, tomar aqui o próprio ponto de vista de Quincas Borba, explicável por sua exaltação eufórica.

Quando a morte da avó é interpretada como resultado da fome do proprietário da sege, sob a qual foi a pobre senhora esmagada, pretende o filósofo atingir a essência de Humanitas. O vôo não é, porém, alto. O efeito torna-se extraordinário, quando o exemplo usado é o da guerra das batatas. Embora genial, a conclusão não salva o sis­tema, que visa mostrar a igualdade de todas as coisas, e destas com o homem. Se "o Universo é o homem", a ne­gação da sua individualidade é forçosa. Daí a demonstra­ção da vida como uma panela d'água a ferver. "Tudo fica na mesma água, os indivíduos são essas bolhas transitó­rias". À simples objeção de Rubião, que é a de qualquer um, simples em face do absurdo monismo, a resposta "bolha não tem opinião" é apenas uma resposta, mas não uma solução como no poema de Carlos Drummond de Andrade: a rima é só rima. Não há como salvar o sis­tema, nem mesmo um diálogo entre Quincas Borba e Brás Cubas, como o imaginou Thiers Martins Moreira.

O "pessimismo irônico" é o conteúdo latente, mas a fórmula usada por Machado de Assis para expressá-Io é um sistema delirante, artisticamente distribuído em um romance.

Creio não ser muito repetir: a investigação psicopa­tológica aplicada ao estudo das personagens de ficção é equivalente à patografia, que procura nas histórias de vida reais as componentes psicológicas anormais.

Aceito o Humanitismo como uma manifestação deli­rante; baseio-me nos antecedentes psicopáticos de Quincas Borba, configurados em dois quadros bem desenhados: o menino estudante rebelde e vaidoso Imperador da Festa do Divino, e o homem marginal que agradece o auxílio do amigo com o furto de seu relógio. Acompanho seu com­portamento na intimidade de Brás Cubas, e, mais tarde seu delírio na fase final, em que recai em sordície. Como, pois, considerar psicopatologicamente o grande personagem?

Seria muito fácil classificá-lo como esquizofrênico. Em sua carta a Rubião, declara-se Quincas Borba Santo Agostinho. Não é, todavia, sua afirmação fruto de uma cognição delirante, uma idéia delirante primária. O autor do Humanitismo refere como chegou a essa convicção. Certo número de coincidências nas duas vidas autoriza Quincas Borba a fazer o salto e cair no outro lado da razão.

A conduta psicopática, que foi patente quando dor­mia no terceiro degrau da escada de São Francisco e vivia faminto e esfrangalhado, contrasta com a capacidade de testar a realidade mostrada no diálogo com Brás Cubas. Não estava, então, psicótico.

Todo tempo da convivência com Brás Cubas e da ex­posição ao amigo da teoria de Humanitas e suas aplica­ções, em um todo fechado de um sistema filosófico, é marcado por uma atitude social ajustada. O fato de conservar a herança recebida e de legá-Ia a Rubião mostra que tam­bém no conduzir o governo de suas finanças Quincas Borba não disparatou.

O testamento mostra certa bizarrice. No fundo, Quincas Borba lega a Quincas Borba o cão não tendo capacidade civil, seu guardião é o legatário.

Com as claras alterações psicóticas enxertadas no curso da doença final, de cuja natureza não nos é dano conjeturar, Rubião teme, com razão, pela possibilidade de ser verificada a "demência" do seu amigo e benfeitor. Da carta vesânica, não dá conhecimento ao médico.

A notícia fúnebre em um jornal do Rio assinala: "já então delirava".

Embora o término seja na psicopatologia clínico­-empírica um dos pilares do diagnóstico, não é exata­mente nesse sentido que é aplicada na nosografia kraepeliniana.

Há sem dúvida sobre o quadro crônico, arrastado, surgido de uma personalidade predisposta, um enxerto final onírico-confusional, do qual o único documento disponível é a carta já referida. Não é necessário que haja um quadro psicopatológico anterior para que as insufi­ciências viscerais, a descompensação circulatória, com repercussão cerebral, os agentes infecciosos associados, observados nas doenças terminais, produzam psicoses agônicas. Esses quadros foram objeto de uma monografia por Manfred Bleuler.

Acredito que o estado psíquico terminal de Quincas Borba não esclarece sua desordem psíquica básica.

Os antecedentes pessoais falam em favor de uma personalidade anormal, que vem a formar um desenvol­vimento paranóico. É um sistema de idéias, articuladas com clareza, produzidas por uma convicção íntima, ali­mentadas por um permanente investimento afetivo, que progressivamente invadem e se apropriam de todos os demais temas e os forçam a combinar com o pensamento ordenador. No caso, a direção do sistema é dada por um conjunto de noções dominantes do século XIX: puritanis­mo, darwinismo, vitalismo. O ajustamento dos conceitos é feito sem profundidade, mas ressaltado na aparência perfeita.

Não há desordens formais do pensar no sentido das encontradas na esquizofrenia paranóide.

Assim, Quincas Borba é uma personalidade paranói­ca, que desenvolve um sistema filosófico. Em períodos de vida, exibiu comportamento desviado, no sentido da psico­patia, quando inadaptado ao trabalho caiu até a mendi­cância e vadiagem, e no sentido de um estado agudo deli­rante, sintomático da doença de que veio a falecer.

Essa verificação de modo algum diminui ou desvir­tua o valor literário do romance.

Augusto Meyer e Thiers Martins Moreira, entre outros, mostraram que o romance machadiano não é rea­lista. Não descreve a vida e os personagens como Balzac. É um romance psicológico. Como toda criação literária desse tipo, a experiência íntima do autor é um dos ingre­dientes mais importantes, e indispensável mesmo da composição. Seriam assim os romances de Machado de Assis, especialmente Quincas Borba e Memorial de Ayres, auto­biografias. Augusto Meyer diz: "No romance machadia­no, como esquema psicológico de composição, predomina a pseudo-autobiografia".

Aqui está o ponto essencial, ao qual Quincas Borba serve de modelo ideal: a loucura como veículo para a cria­tividade artística.

Machado de Assis tem na loucura um dos seus temas­-chave. Procurou quanto pôde tirar dela o seu clima trágico. Procurou, através do humorismo, desmistificá-Ia. Nessa linha, Nelson Pereira dos Santos exagerou ao pas­sar para a película a grande novela da Casa Verde de Itaguaí.

Em Quincas Borba – é Augusto Meyer quem assi­nala – essa técnica não pôde ser mantida, e a partir do oitavo capítulo é a loucura verdadeira, a triste loucura humana que bate à porta e começa a reclamar os seus direitos.

Não quero aqui penetrar nas ligações profundas entre a doença de Machado e sua predileção pelo tema loucura. Limito-me a estudar representações da loucura nos seus personagens.

Não posso deixar de reconhecer que no delírio de Brás Cubas e no "Alienista" os efeitos artísticos são sublimes. Colocam Machado de Assis na primeira fila dos grandes criadores literários.

Quincas Borba tem outro destino; ele é o porta-voz da filosofia, do que Thiers Martins Moreira chamou "o pessimismo irônico".

Não há como negar que foram alcançados os efeitos desejados e são os mais belos. Nem cabe aqui discutir se era essa a visão do mundo de Joaquim Maria, o Bruxo.

Como foram compostos estes personagens e esta obra? Outros melhor aparelhados poderão dizê-lo. Cada narrativa tem aí um significado. A certa altura, arma-se, ingenuamente, uma conversa de amigos em uma casa de Barbacena. Um doente e seu enfermeiro. Imprevisivel­mente explode a girândola. "Ao vencedor as batatas".

A vida adquirira uma nova iluminação.

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