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Poderia o espírito ser medicado?

Pretendemos aqui retomar a estéril polêmica, a nosso ver, sobre a psicanálise e as neurociências. O objetivo da análise que tomamos é sempre o da complementaridade e, não de posições mutuamente excludentes.

Objetivamos a retomada de um tema com a realização desse trabalho, o qual vem sendo reiteradamente debatido nos quatro cantos do mundo, além de já tê-lo sido aqui no Fórum e nos artigos, por algumas vezes. No entanto, nos parece que estamos muito longe da obtenção de um consenso a respeito, observemos, por exemplo, a tramitação do projeto de Lei sobre o "ato médico", ao nível do Congresso Nacional.

Penso tratar-se de uma discussão absolutamente estéril, a qual visa com a sua existência, apenas e tão somente uma tentativa de defesa de interesses corporativistas, em nada trazendo como contribuição ao nível da Ciência. Acompanhei, no passado, há mais ou menos 25 anos, uma outra tentativa nesse sentido, a qual se mostrou felizmente infrutífera através da mobilização das entidades de classe envolvidas. Entendo que, desta feita o destino será o mesmo, se não pela inteligência, pelo menos por uma questão de bom-senso.

Apenas queremos, antes de dar início às nossas considerações, ratificarmos a nossa posição de não sermos absolutamente contrários a utilização de medicações psicotrópicas. Contudo, somos contra, isso sim, ao abuso indiscriminado que somos obrigados a assistir diuturnamente em nossos consultórios. Faz parte da natureza humana que o indivíduo se aproprie de sua própria angústia, a qual pode significar uma mola propulsora ao seu bom desenvolvimento. Somos contra aquele sofrimento absolutamente desnecessário e improdutivo. Entendo que já passamos, de há muito, da época das atitudes heróicas.

Psique = alma, espírito.

A pergunta que quero colocar é: "A serviço de que ou de quem estará a dominação do espírito?"

Um breve dado histórico: certa vez Freud fora perguntado, após fazer uma metáfora do inconsciente, comparando-o a um cavalo bravio, se quem fizesse uma psicanálise, passaria a possuir um cavalo muito manso. Freud, sem qualquer hesitação, respondeu que não, dizendo que o inconsciente seria para todo o sempre um cavalo bravio, o que mudaria, para quem fizesse uma psicanálise, seria a habilidade do cavaleiro, para que este pudesse conduzir melhor esse cavalo bravio.
Sabemos que foi em torno de 1950, que as substâncias químicas, os psicotrópicos, começaram a ter a sua participação no cenário da "loucura". Parece que nos manicômios, os tratamentos de choque, etc., foram gradativamente sendo substituídos por uma "prisão" medicamentosa.

Esse estado de coisas veio a dar origem ao nascimento de um novo homem, o qual se apresenta como sendo muito polido, mas sem humor.
Costumo dizer que até hoje em nenhuma bula desses medicamentos que eu tenha lido, e asseguro que já li muitas delas, eu encontrei na formulação, "X" miligramas de "resolução de conflitos". Ou seja, o sofrimento psíquico acaba sendo como que anestesiado, sem que se procure pela sua significação, ou sem que seja problematizado, ficando o mal estar, delegado a um desequilíbrio da bioquímica cerebral, ao nível dos neurotransmissores: serotonina, dopamina e outros.

Não vamos nos ater aqui à classificação das drogas psicotrópicas, uma vez que não é esse o nosso objetivo, além do que esse item pode ser encontrado nos bons manuais de psiquiatria existentes no mercado. O que queremos destacar aqui, é que a psicofarmacologia, acabou encerrando o sujeito numa nova classe de alienação, ao pretender curá-lo da própria essência da condição humana. Viver é viver em conflito; essa nos parece uma condição inexorável do existir humano.
Notemos que essa já era a posição de Jean Delay, principal representante francês da psiquiatria biológica, o qual já afirmava em 1956: "Convém lembrar que em psiquiatria, os medicamentos nunca são mais do que um  momento do tratamento de uma doença mental, e que o tratamento básico continua a ser a psicoterapia". Dizia ele, então de "um momento", sendo que não devemos tomar a parte pelo todo.

Salvo melhor juízo, o próprio inventor desses medicamentos, Henri Laborit, também declarava: "A psicofarmacologia não é a solução para todos os problemas" e explicava: "Por que ficamos felizes por dispor dos psicotrópicos? Ora, porque a sociedade em que vivemos é insuportável". Disse também ter sido censurado por ter inventado a "camisa de força química", mas que entendia que a humanidade tinha que passar por isso, para poder suportar sua própria condição.
Ao que nos insurgimos contra, é ao fato de que, psicoses, neuroses, fobias, melancolias e depressões são tratadas pela psicofarmacologia, como um pacote de estados ansiosos, os quais seriam decorrentes de lutos, crises de pânico passageiras, devidas a um ambiente difícil. Assim, escreveu Édouard Zarifian, o medicamento psicotrópico só se transformou no que é: "por ter aparecido num momento oportuno (…); o psicotrópico simbolizou a vitória do pragmatismo e do materialismo sobre as enevoadas elucubrações psicológicas e filosóficas que tentavam definir o homem". Esse mesmo autor, Zarifian, acrescenta a afirmação de que "muitos médicos, prescrevem tratamentos anti-depressivos a pessoas que estão simplesmente tristes e desiludidas e, cuja ansiedade as levou a uma dificuldade para conciliarem o sono".

Daí, teríamos a tristeza da alma e a impotência sexual, como paradigmas da depressão não se diz com freqüência suficiente que os antidepressivos têm, muitas vezes, o efeito secundário de reduzir o apetite sexual. Sendo que, em alguns homens, eles podem provocar fenômenos de impotência sexual.

Sabemos que depois de haver contribuído durante todo o século XX, não apenas para a emancipação das mulheres e, das minorias oprimidas, mas para a invenção de novas formas de liberdade, a psicanálise foi desalojada, assim como a histeria, daquela posição central que ocupava tanto nos saberes de orientação terapêutica e clínica, tanto nas grandes disciplinas em que supostamente investia. Atualmente, encontramos uma utilização exacerbada do termo "psi", para designar tanto as ciências da mente, quanto as práticas terapêuticas ligadas a ela. Note-se que o termo psicanálise teve sua aparição inaugural em 1896, num texto de Freud redigido em francês. Um ano antes, havia publicado os "Estudos sobre a Histeria", juntamente com Josef Breuer. Neste livro ficava relatado o caso de uma moça judia, a qual sofria de uma doença onde eram postas em cena fantasias sexuais através de contorções corporais. Sabemos que a paciente chamava-se Berta Pappenheim e, Breuer que a cuidava pelo método catártico, deu-lhe o nome de Anna O.

Queremos ressaltar que é a uma mulher, e não a um cientista, que se atribui a invenção do método psicanalítico: "Um tratamento baseado na fala, um tratamento que busca encontrar palavras para expressar o sofrimento, permitindo ao sujeito tomar consciência de seu sofrimento e, portanto, assumi-lo para si.

Mesmo cientes, Freud e Breuer, que essa cura não tinha sido completa, decidiram-se por publicá-la, por oposição ao psicólogo francês Pierre Janet, o qual reivindicava a descoberta do método catártico. Quanto à Berta Pappenheim, se não plenamente curada, podemos dizer que se transformou em uma outra mulher, vindo a tornar-se uma militante feminista e, tendo consagrado a sua vida aos órfãos e às vítimas do anti-semitismo.

Temos conhecimento de que, em 1998, o psicanalista Jean-Bertrand Pontalis, teria declarado com amargura sua visão sobre o futuro da psicanálise: "Dentro em breve, a psicanálise só interessará a uma faixa cada vez menor da população e, talvez só existirão psicanalistas nos divãs dos psicanalistas".

Contudo, percebemos que por toda parte a psicanálise reina soberana, mas sabemos também que em toda parte, é colocada em concorrência com a farmacologia, sendo ela mesma, aliás, em muitos casos, usada como uma pílula.

Quanto a esse aspecto, tivemos uma declaração do fantástico filósofo, Jacques Dérrida, o qual nos deixou há não muito tempo: "A psicanálise é atualmente assimilada a um remédio ultrapassado, relegado ao fundo das farmácias. Tal remédio ultrapassado, sempre poderá servir num caso de urgência ou de falta, mas já se fez coisa muito melhor depois disso".

Penso que se faz necessário ressaltarmos que o medicamento em si não se opõe ao tratamento pela fala. A França é hoje, o país da Europa em que existe o mais elevado o consumo de psicotrópicos (à exceção dos neurolépticos) e em que, simultaneamente, a psicanálise melhor se implantou. Consideramos também como verdade inquestionável que vários pacientes se sentem inferiorizados quando o médico tenta apontar-lhes uma outra via de abordagem, que não necessariamente a medicamentosa.

Observemos que entre os psicotrópicos, os antidepressivos é que acabam sendo os mais receitados, sem que possa se afirmar com convicção absoluta, que os estados depressivos venham tendo um aumento.

Todas as abordagens sociológicas demonstram que "a sociedade depressiva tende a romper a essência da vida humana". Assim, entre o medo da desordem e a valorização de uma competitividade baseada exclusivamente no sucesso material, muitos são aqueles que preferem optar por se entregarem às substâncias químicas a ter que falar de seus íntimos sofrimentos.

Podemos notar, de forma geral, na sociedade atual, que o silêncio é preferível à linguagem, a qual constitui-se em fonte inesgotável de angústia e de vergonha.

Queremos também ressaltar, o que ocorre com os médicos de forma geral. O jornal "Le Monde", de 22/12/98, publicou matéria onde observa-se que inúmeros clínicos franceses, principalmente aqueles que cuidam de emergências, não estão em melhores condições do que seus pacientes,  aos quais prestam atendimento. Encontram-se inquietos, insatisfeitos, pressionados pelos laboratórios, além de impotentes para curar, ou ao menos, impotentes para escutar uma dor psíquica que os transcende cotidianamente, parecendo não contarem com outra solução, senão curvar-se à demanda maciça pelos psicotrópicos.

Fica aqui a pergunta que não quer calar: em suas condições de trabalho e, de vida pessoal, quem se atreveria a imputar-lhes uma culpa, senão relativa.

Sabemos também por estarmos inseridos na área da saúde, que muitos médicos procuram prescrever aos seus pacientes, sempre medicamentos do, ou dos mesmos laboratórios, uma vez que estes, tornam-se seus patrocinadores quanto à sua freqüência a Congressos ou coisa que o valha.

Dessa forma, um quer vender e, o outro quer participar dos Congressos, com custo prática ou totalmente zero. Então combinam uma troca entre si, mas nunca é demais perguntarmos: "Onde é que fica o interesse do paciente nessa barganha???"


Bibliografia

Dérrida, J. Résistances de la psychanalyse. Paris: Galilée, 1996, p.9.

Roudinesco, E. Por que a psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
(Elisabeth Roudinesco: historiadora e psicanalista, leciona na Universidade de Paris VII, sendo vice-presidente da Sociedade Internacional da História da Psiquiatria e da Psicanálise. Autora da "História da psicanálise na França" – 2 V.)

Roudinesco, E. & Dérrida, J. Por que amanhã…,

Roudinesco, E. & Plon, M. Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

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