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Do “Pathos” melancólico ao trágico da condição humana

Artigo apresentado à COGEAE da PUC-SP, como parte dos requisitos para obtenção de título de especialista em Teoria Psicanalítica. Orientador: Prof.º Dr. Pedro Luiz Ribeiro de Santi.

Resumo

            
Foi diante do mutismo melancólico com o qual nos deparamos no dia a dia da clínica que foram coladas as nossas perguntas iniciais: Quais acontecimentos são responsáveis pelo surgimento deste quadro? É necessária predisposição para o seu surgimento? Como e por que nos deprimimos? Estar deprimido é realmente tão comum quanto parece nos dias atuais?

Em busca de respostas foram pesquisados os trabalhos da obra freudiana e de alguns comentadores, onde foi possível verificar a existência de vasta teorização a respeito. Passou-se ainda por autores que estabelecem relações entre a obra freudiana e fenômenos sócio-históricos para, desta forma, buscar compreender o homem e as patologias de cada época.

Ao final, foi possível observar que a depressão é um fenômeno com determinações múltiplas e que é necessária cautela em seu diagnóstico, posto que o termo carrega consigo marcas ideológicas e sociais que podem trazer riscos à saúde mental daquele que faz uso de momentos deprimidos para refletir e manter-se coeso diante das exigências do mundo.

Introdução

“Donde vem esse sol negro? De que galáxia insensata seus raios invisíveis e pesados me imobilizam no chão, na cama, no mutismo, na renúncia?’’ (Kristeva, 1989, pág. 11). Talvez seja somente através do apelo à escrita romântica que se torne possível descrever o sentimento do melancólico.

É diante deste mutismo melancólico com o qual nos deparamos no dia a dia da clínica que nos colocamos nossas perguntas iniciais: Quais acontecimentos são responsáveis pelo surgimento deste quadro? É necessária predisposição para o seu surgimento? Como e por que nos deprimimos? Estar deprimido é realmente tão comum quanto parece nos dias atuais? Basta ater-se a qualquer meio de comunicação e rapidamente se depara com o assunto depressão. Estatísticas povoam os jornais indicando que parcelas cada vez maiores da população “têm” depressão.

 O jornal ‘A folha de São Paulo’, em artigo do dia 19/05/2004, traz o título: “Depressão já atingiu 19,3% da população’’, onde informa: “Outro dado que indica que a depressão é mais visível do que se pensa é o que mostra que 26% dos entrevistados afirmaram já ter sentido, em um grau grave ou muito grave, tristeza, depressão, preocupação ou ansiedade”(A folha de São Paulo, 19/05/2004
Não esclarece o que considera como sendo depressão e, ao fazer isto, demonstra as facetas da banalização do termo psiquiátrico e as facilidades que a organização social atual oferece para que pessoas encontrem forma de dar falso sentido a angustia  e, deste modo, não lidar com as origens desta.

Diz a si mesmo, o melancólico: -Faço parte da parcela da população que "tem" depressão. Com isso tira de si a possibilidade de cura, passa a ser problema do corpo, toma remédios (na melhor das hipóteses) e continua, finge viver, enquanto passa pela vida e torna-se estatística.

Uma decorrência disto pode ser vista no artigo “Remédio Amargo”, de 17/10/2004 do jornal “A Folha de São Paulo”, onde é indicada a observação de um aumento significativo no índice de pensamentos e comportamentos suicidas entre jovens tratados com antidepressivos.          

Cabe esclarecer, ainda, que não seria de pouca monta o trabalho de explorar e determinar as ramificações terminológicas derivadas dos conceitos de melancolia e depressão dentro do corpo teórico da psicanálise.

Não iremos nos aventurar em tal caminho, não neste momento. Adotamos, para fins deste trabalho, o mesmo ponto de vista de Kristeva, qual seja:
 Se a tristeza passageira ou o luto, por um lado, e o estupor melancólico, por outro, diferem clinicamente e nosologicamente, eles se apóiam, contudo numa intolerância à perda do objeto e na falência do significante, para assegurar uma saída compensatória aos estados de retração nos quais o sujeito se refugia (Kristeva, 1989 pág.17).

Com isto pretendemos utilizar o que de comum pode ser encontrado na base e nas manifestações clínicas destes quadros e usaremos, portanto, os termos indistintamente no corpo do presente texto.


1. A Melancolia: um conceito através dos tempos.

O homem por sobre quem caiu a praga / Da tristeza do Mundo, o homem que é triste / Para todos os séculos existe / E nunca mais o seu pesar se apaga! Não crê em nada, pois, nada há que traga / Consolo à Mágoa, a que só ele assiste / Quer resistir, e quanto mais resiste / Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga / Sabe que sofre, mas o que não sabe /.É que essa mágoa infinda assim, não cabe / Na sua vida, é que essa mágoa infinda / Transpõe a vida do seu corpo inerme; / E quando esse homem se transforma em verme / É essa mágoa que o acompanha ainda!(Augusto dos Anjos, Eterna Mágoa).
 

1.1. Conceitos pré-psicanalíticos

Já na idade média, quando predominava a teoria dos humores que, conforme nos afirma Santi (2000), postulava serem quatro os humores corporais determinantes do temperamento de uma pessoa, o estado de melancolia era vinculado à bílis negra:

A bílis negra é um humor natural do corpo humano e pode sofrer vicissitudes – deslocamentos, excessos -, se corromper ou inflamar. As diferentes doenças resultam dessas variações e a melancolia decorre de uma alteração quantitativa ou qualitativa da bílis negra, de uma alteração no equilíbrio dos humores.(Peres, 1996, pág 14).

Para melhor entendimento, a teoria dos humores (ou temperamentos) pode ser resumida da seguinte forma:

Quatro seriam os humores corporais que determinariam o temperamento de uma pessoa: o próprio sangue, o fleuma, a bílis (ou cólera) e a bílis negra (a melancolia). O ideal seria o equilíbrio dos quatro, mas sempre algum acabava por dominar. Pessoas sanguíneas seriam voltadas à amizade, estariam sempre rindo e brincando; seriam facilmente distraídas por seu sentido. Pessoas fleumáticas eram tomadas como privadas de sentimentos, quase entorpecidas e hesitantes. Pessoas coléricas seriam sutis e rápidas, sendo pouco adequadas a tarefas que exigissem aplicação e paciência. Screech observa que para a melancolia resta o melhor e o pior: genialidade ou loucura (Santi, 2003, pág. 118).

É Aristóteles quem vai, em seu tratado sobre melancolia que atravessou a idade média, fortalecer a idéia de que ''a bílis negra (melaina kole) determina os grandes homens'' (Kristeva, 1989, pág 14). Por mais de dois milênios, tais idéias fizeram eco.

Neste tratado, Aristóteles nos coloca a questão:
Por que todos os homens excepcionais na atividade filosófica, política, artística ou literária possuem um temperamento melancólico – ou seja, atrabiliário – alguns em tal medida que até são afetados pelos estados patológicos que dele derivam? (Aristóteles apud Peres, 1996, pág 15).

O conceito, baseado na teoria dos humores, atravessou a idade média, época em que, conforme nos afirma Kristeva (1989), a teologia cristã medieval fazia da tristeza um pecado, em oposição ao pensamento grego que tinha a melancolia como estado-limite e como excepcionalidade reveladora.
Foi somente na primeira metade do século XVI que, segundo nos afirma Peres (1996), organizou-se um debate que buscou verificar se os melancólicos podiam ser assimilados à sociedade. Entre as questões que se colocaram, pode-se destacar: “- É necessário ter um temperamento melancólico para ser acometido pela melancolia?” (Peres, 1996, pág 25).

Com estas inquietações e questionamentos, o pensamento humano acerca do estado melancólico atravessou mais alguns séculos.
O termo depressão, conforme afirma Delouya (2000) surgiu no séc. 18 para designar um estado conexo à melancolia que, porém, seria mais abrangente. Provém do latim ''de'' (para baixo) + ''premere'' (pressionar), ou seja,  designa um estado de ânimo pressionado para baixo.

Conforme nos relata Peres (1996), no século XIX, na Alemanha, surgiu o movimento psiquiátrico liderado por Kraepelin que caracterizou a melancolia como  o desenvolvimento insensível de uma depressão ansiosa a qual se juntam, em proporções bastante variáveis, concepções delirantes.
É neste panorama do século XIX que surgiram os rudimentos da Psicanálise.
 

1.2.   Conceitos psicanalíticos

Freud começou a conceber Luto e Melancolia em fevereiro de 1914, o conclui em maio do ano seguinte. Este trabalho tornou-se um clássico sobre o tema, sobretudo, conforme salienta Peres (1996), na teorização do luto, onde é referência obrigatória não apenas entre psicanalistas, mas também entre sociólogos, antropólogos e historiadores. Neste artigo, conforme nos afirma Moreira (2002), Freud construiu sua concepção de melancolia a partir da analogia com o estado de luto.

O tema da melancolia já havia sido citado em diversos outros momentos de sua obra[1], contudo somente tomou a forma aqui colocada após a introdução dos conceitos de narcisismo e de ideal do ego, tornando indispensável, ao estudar a melancolia, a passagem, ainda que breve, por estes conceitos.
O conceito de narcisismo, conforme delimitado por Freud (1914a / 1996), demonstra a existência de uma libido do ego (investida no ego) e de uma libido objetal. Inicialmente, ao nascer, a criança encontra-se em estado de plenitude com toda a sua libido investida nela mesma (narcisismo primário). Porém, em decorrência da necessária separação que se estabelece entre ela e suas figuras parentais, que a nutriam de libido, a criança abandona esta posição, passando a dirigir parte de sua libido para os objetos a sua volta. Contudo, retomada depois pelo e no ego, esta libido retorna, novamente, como investimento, para os objetos. Este movimento de projeção sobre os objetos para posterior retomada do investimento no ego é considerado narcisismo secundário.

A expressão ideal do ego aparece no texto Sobre o narcisismo: Uma introdução como sendo uma formação do aparelho psíquico que serve de parâmetro de realização ao ego. Em substituição ao narcisismo infantil que, segundo Laplanche e Pontails (2001), assemelha-se a um delírio de grandeza, o homem projeta um ideal diante de si, com o qual é comparado incessantemente pela instância do superego, conceito introduzido por Freud posteriormente, em seu trabalho “O ego e o Id” de 1923. Superego é a instância do aparelho psíquico que se forma a partir de identificação com as figuras parentais perdidas e amadas. É o herdeiro da situação de dependência e desamparo da criança e tem como imperativo manter a necessidade de o ego ser amado e aprovado. Este empreendimento, por sua vez, só poderá ser alcançado na medida em que o ego se aproximar de suas marcas ideais.

Para a compreensão da melancolia Freud lança mão de uma comparação com o afeto normal do luto, considerando este como:
… a reação à perda de um ente querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de alguém… (Freud, 1914 / 1996, pág 249).

Freud (1914 / 1996) nos diz que a melancolia assume várias formas clínicas, cujo agrupamento em uma única unidade não parecia ter sido estabelecido com certeza, inclusive na psiquiatria descritiva. Em suas palavras, a  definição fenomenológica do quadro clínico ali estabelecido é:  
…Um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição.(Freud, 1914 / 1996, pág.250)

É a partir da comparação com o estado de luto que se pode deduzir que o fator desencadeante de um estado de melancolia é a perda de um objeto de amor. ''No melancólico, […] os investimentos de objeto não resistem, o que acarreta uma fixação no regime narcísico, uma vez fracassada a passagem para o regime objetal. O luto e a separação, necessária a tal passagem, não puderam ser plenamente alcançados.'' (Delouya, pág. 27).

Freud (1914 / 1996) nos coloca que, originalmente o ser humano possui dois objetos de amor, quais sejam: ele próprio e a figura materna. Os quadros de melancolia seriam, desta forma, desencadeados pela perda de objetos escolhidos narcisisticamente, ou seja, objetos que correspondem a características externalizadas e projetadas do próprio ego.

O objeto perdido talvez não tenha morrido de fato, nem sempre é possível determinar o que realmente foi perdido, e por vezes o paciente não tem a consciência da existência de uma perda.

Contudo:
[…] Mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de saber quem ele perdeu, mas não o que perdeu nesse alguém. (Freud, 1914 / 1996, pág 251).
Daí decorre a aparência enigmática da inibição melancólica, uma vez que não é sempre possível perceber claramente o que se perdeu. Conforme nos coloca Delouya (2000, pág.37) ''a depressão refere-se à perda de um espaço de gozo'', neste sentido  complementa o autor: A psicanálise moderna situa o surgimento do afeto depressivo em torno da constituição do eu e da preocupação de se ter destruído a mãe. Ser vulnerável a este afeto está relacionado com a disponibilidade do objeto – Mãe – para com a criança. O afeto depressivo situa-se, então, neste ponto central de transição, constitutivo do psiquismo, em que a abdicação narcísica da onipotência e da fusão, se faz necessária. (Delouya, 2000, pag33).

A partir disto Delouya (2000, pág.40) pode afirmar que “se os estados depressivos visam a um espaço de gozo do qual o sujeito se sente apartado, a função depressiva seria, então, de ordem narcísica, de preservação e garantia desse espaço”.

Em complemento e concordância com a posição do autor, encontramos a colocação: A criança-rainha torna-se irremediavelmente triste antes de proferir suas primeiras palavras: é a tristeza de ser separada de sua mãe, sem retorno, desesperadamente, que a faz decidir-se a tentar reencontrá-la, da mesma forma que os outros objetos de amor, primeiro na sua imaginação, depois nas palavras (Kristeva ,1989, pág.13).

Em concordância com a autora, nos diz Tanis:
A capacidade de ficar só é o resultado de um longo processo que vai da dependência total do objeto materno até a independência total do objeto. (Tanis, 2003, pág.118).

Por sua vez, Melanie Klein postula a posição depressiva como sendo:        
[…] o momento crucial do curso do desenvolvimento, no qual o sujeito consegue, […], realizar a mãe como objeto em sua totalidade e, com isso, consegue, em primeiro lugar, organizar o mundo caótico dos objetos parciais, […], o que caminha de mãos dadas com uma diminuição da angústia; e, em segundo lugar, entrever a perda do objeto de amor que é a mãe, mas que, em última análise, é o seio que ele mesmo foi no passado. (Nasio, 1995, pág.163).

Disto pode-se entender que a posição depressiva é um indicativo de maturidade na relação objetal, ou seja, reconhecer os objetos totais, portanto imperfeitos, implica em poder deprimir-se diante de tal constatação para, na seqüência, com base no amor pelo objeto, e não no ódio por ele, tornar o momento depressivo em sofrimento produtivo, o que é indicativo do sucesso de um trabalho de luto.

Freud (1914 / 1996) nos relata que o principal diferencial de um estado de melancolia, em comparação ao de luto, seria uma elevada redução na auto-estima e um empobrecimento do ego. O próprio ego torna-se vazio e desprovido de valor. O paciente sente-se desgraçado perante todos, parece desinteressado pelo amor. Há uma satisfação na comunicação desta autodegradação, pois o paciente não sente vergonha de sua condição.

Desta forma autor nos orienta que: O ponto essencial, portanto, não consiste em saber se a autodifamação aflitiva do melancólico é correta, no sentido de sua autocrítica esteja de acordo com a opinião das pessoas. O ponto consiste, antes, em saber se ele esta apresentando uma descrição correta de sua situação psicológica. Ele  perdeu seu amor próprio e deve ter tido boas razões para tanto. (Freud, 1914 / 1996, pág 253).

Com freqüência pode-se observar que, em um paciente melancólico, muito das acusações feitas contra si aplicam-se, com ligeiras modificações a outras pessoas, possivelmente aqueles a quem este ama.

Ao considerarmos a relação de dependência existente entre a auto-estima e a libido narcísica e, ainda, que as escolhas narcisistas têm como finalidade a satisfação do amor a características do próprio ego, podemos definir que o estado de melancolia se dá pela perda do objeto e pelo afluxo desta libido de volta ao ego, onde pode ocorrer uma identificação do ego com o objeto.
Na melancolia, a relação com o objeto de escolha narcisista é ambivalente, a sabedoria popular já nos fala da proximidade entre amor e ódio. Quando um objeto é perdido, o amor e o ódio nele investidos fluem por sobre o ego. Freud (1914 / 1996) nos demonstra que quando ocorre identificação do ego com o objeto, o ódio investido no objeto passa a agir contra o ego. Características como a auto-agressividade e a baixa auto-estima demonstram a capacidade de tratar o ego como objeto, ou seja, demonstram que devido à identificação do ego com o objeto perdido, o sujeito passa a dirigir contra si mesmo a hostilidade outrora dirigida ao objeto. Neste sentido, nos diz Freud: A identificação narcisista com o objeto se torna, então um substituto da catexia erótica, e, em conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso renunciar à relação amorosa. (Freud, 1914 / 1996, pág 255).

Pacientes melancólicos tornam-se pessoas entediantes, passando a impressão de se sentirem desconsideradas e de terem sido tratadas com grande injustiça.
Para melhor compreensão podemos, a exemplo de Freud (1914 / 1996), reconstruir o processo da melancolia da seguinte forma: Existe, num dado momento, uma escolha objetal, uma ligação da libido a uma pessoa particular; então, devido a uma real desconsideração ou desapontamento proveniente da pessoa amada, a relação objetal foi destroçada. O resultado não foi o normal – uma retirada da libido deste objeto e um deslocamento da mesma para um novo -, mas algo diferente, para cuja ocorrência várias condições parecem necessárias.

A catexia objetal provou ter pouco poder de resistência e foi liquidada. Mas a libido livre não foi deslocada para outro objeto; foi retirada para o ego. Ali, contudo, não foi empregada de maneira não especificada, mas serviu para estabelecer uma identificação do ego com o objeto abandonado. Assim a sombra do objeto caiu sobre o ego, e este pôde, daí por diante, ser julgado por um agente especial, como se fosse um objeto, o objeto abandonado.(Freud, 1914 / 1996, pág 254).

Assim, através da autopunição, o melancólico vinga-se do objeto amado, sem mostrar abertamente sua hostilidade para com ele. Nas palavras de Kristeva:

Eu o amo (parece dizer o depressivo a propósito de um ser ou de um objeto perdido), mas o odeio ainda mais; porque o amo, para não perdê-lo, eu o instalo em mim; mas porque o odeio, esse outro em mim é um mau eu, sou mau, sou nulo, me mato. (Kristeva, 1989, pág 17).

Delimitamos, assim, aqueles que consideramos como sendo os principais aspectos clínicos da melancolia.

Voltemo-nos agora a expor alguns aspectos daquilo que, por contraditório que pareça inicialmente, consideramos como o lado positivo de um temperamento melancólico.

 

2.Temperamento Melancólico: face-a-face com o trágico.

"[…] de todas as tolices do mundo, a mais aceita e mais universal é a preocupação com a reputação e a glória […]". (Montaigne, 1572 / 2002, pág.379)

É nas origens do pensamento moderno, em oposição à corrente positivista perpetuada por Descartes que, seguindo a pena de Santi (2003), encontramos expressão para o ato reflexivo que leva o homem a encarar, face-a-face, sua trágica situação, diante da qual não se apresenta alternativa.
 
Conforme nos diz Santi (2003), pode-se encontrar no pensamento de Montaigne a expressão da desilusão humana diante de sua tragicidade sem encontrar, contudo, a proposta de uma resolução para esta situação através do apego ao Sagrado, à ciência ou a qualquer outra coisa. Tomemos uma passagem onde podemos compreender a situação do homem a partir da modernidade:
A invenção da subjetividade moderna é acompanhada pelo sentimento de que não podemos transcendê-la, ela é todo o campo real a que temos acesso. Implica ainda uma cisão entre a experiência imediata e a reflexão; o sujeito toma a si mesmo como objeto e substantiva o ‘eu’. Não é possível o acesso imediato ao que quer que seja: […] isto tomará a dimensão trágica de um homem que tenta narrar seu ‘eu’ mas que, ao fazê-lo, distancia-se de si e se institui como autor. (Santi, 2003, pág. 43).

Com o advento da modernidade, o homem passa a poder pensar o homem, não mais como sujeito da vontade divina, mas como agente transformador da natureza e construtor de sua própria subjetividade. É neste caminho que este homem se desilude, podendo ir buscar tábua de salvação em planos transcendentais ou, com maior dificuldade, encarar aquilo nele que é o inevitável, sua finitude e imperfeição.

De acordo com as idéias propostas pelo autor, é justamente neste ponto, ou seja, ao não oferecer alternativa compensatória para a situação humana, que os pensamentos de Freud e Montaigne se encontram. Santi (2003) afirma que o juízo crítico que surge com a desilusão é próprio do melancólico.

A constatação desta situação trágica pode levar o homem, conforme afirma Santi (2003), à “imobilização e ao cinismo”.  Realmente, é com base nestas constatações que algumas correntes filosóficas construíram seus pressupostos. Não é este o nosso interesse, pois se por um lado temos o risco da imobilização, por outro podemos pensar na redução das expectativas e conseqüente gozo dos ‘prazeres possíveis’.
 

2.1.   Psicanálise – Uma possibilidade de reduzir expectativas

Conforme foi dito anteriormente, é a partir dos movimentos de projeção e introjeção libidinal que instâncias como o ideal de ego e o próprio ego vão sendo constituídos e continuamente alterados ao longo da vida. Dissemos também do papel do superego em manter a necessidade do ego ser amado e aprovado, fazendo isto preferencialmente, ao tentar aproximá-lo do ego-ideal.

O superego pune e acusa o ego, lembrando-o incessantemente de sua culpa. A este respeito, nos diz Freud:
A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. (Freud, 1930 /1996, pág. 127).

Ao ver, por medo e por amor, frustrada sua agressividade em relação à figura paterna, o homem identifica-se com ela, tornando parte dela em seu ideal. Contudo internaliza também  a agressividade outrora voltada a ela. Desta agressividade o superego se utiliza em sua tarefa de punição do ego.

O sentimento de culpa e a conseqüente necessidade de punição tornam-se tão maiores quanto maior for a repressão da agressividade, posto que esta deixa de se manifestar em ato, porém persiste enquanto intenção, ainda que inconsciente. Neste sentido, Freud coloca que “[…] a distinção entre fazer algo mau e desejar fazê-lo desaparece inteiramente, já que nada pode ser escondido do superego, sequer os pensamentos”.(Freud, 1930 /1996, pág.129).

Cabe esclarecer porque nos referimos ao medo e ao amor como causa da frustração à agressividade. A psicanálise já demonstrou que a figura paterna é, em determinado período da evolução psico-sexual, odiada por se colocar como impedimento no caminho da realização de fantasias incestuosas; contudo é também amada por acreditar-se ser ela capaz, por sua força e grandiosidade, de proteger contra os perigos do mundo. Diante de tamanha figura tememos ser aniquilados caso os impulsos agressivos a ela dirigidos se tornem conhecidos.

Pode-se suspeitar que as forças em jogo nesta dinâmica sejam equivalentes, ou seja, quanto mais idealizada é a figura paterna, maior a agressividade herdada pelo superego, maior o sentimento de culpa e também a necessidade de punição. Aos olhos do mundo esta dinâmica talvez apresente o mais virtuoso dos homens, contudo aos olhos da psicanálise podemos mensurar o grau de seu sofrimento. Isto se confirma nas palavras de Freud:
[…] quanto mais virtuoso um homem é, mais severo e desconfiado é o seu comportamento, de maneira que, em última análise são precisamente as pessoas que levaram mais longe a santidade as que se censuram da pior pecaminosidade. (Freud, 1930 /1996, pág. 129).

Diante de tal quadro não é difícil antever com que facilidade as desilusões da vida podem ser entendidas como incapacidade de atender aos desígnios de um superego severo e, desta forma, desencadear toda sorte de autoflagelação característica do deprimido.

É, entre outras causas, do sentimento de culpa inconsciente e da impossibilidade de atender a um ego-ideal extremamente distante que tem origem a ansiedade e a rigidez que leva muitos aos consultórios, total ou parcialmente impedidos de gozar a vida naquilo que esta se lhes oferece de possibilidades.

De posse destes conceitos, podemos então buscar estabelecer a relação entre eles e a idéia de modernidade exposta anteriormente. Temos então:

A possibilidade de objetalização  do eu como a possibilidade de reflexão que leva à constatação da trágica situação humana, ou, em termos metapsicológicos, reconhecer-se irremediavelmente castrado. Esta aterradora constatação ameaça o aparelho psíquico de fragmentação, diante desta ameaça o psiquismo se defende deprimindo. Nas palavras de Kristeva:
[…] o afeto depressivo pode ser interpretado como uma defesa contra a fragmentação. De fato, a tristeza reconstitui uma coesão afetiva do ego, que reintegra a sua unidade no invólucro do afeto […]. (Kristeva, 1989, pág 25).

É partindo deste lugar, um lugar de base solidificada no terreno psíquico, que o deprimido pode reconstituir sua vida. Em busca, desta feita, de ideais mais próximos de sua condição humana e neurótica, portanto, castrada. O caminho desta reconstrução é encontrado através da redução tanto do sentimento de culpa quanto da severidade do superego. Trata-se de reconhecer-se incapaz de se aproximar daquele ego-ideal distante, constituído a partir de uma figura paterna extremamente idealizada para, partindo daí, encontrar possibilidade de gozo com ideais menores e tangíveis. Conforme nos diz a autora:
O pesar seria assim o negativo da onipotência, o indício primeiro e primário de que o outro me escapa, mas também de que o ego, por seu turno, não se aceita abandonado. (Kristeva, 1989, pág 25).

Pode-se então pensar na atitude do analista diante de um paciente deprimido. Apesar da angústia que tal relação transferencial certamente desperta, é necessário respeito ao direito de ficar triste que assiste a cada um que se vê diante de si mesmo. Fédida (2002) ressalta a equivalência estabelecida por Ferenczi entre o papel desempenhado pelo sono de hibernação em alguns animais, lembrando que tal estado requer respeito e tato, pois encontra-se a serviço da preservação da vida.

Em outra passagem o autor sintetiza a idéia. Nos diz: Por essa razão é possível em certa medida – atribuir ao estado deprimido uma função de regulação das mudanças – como se fosse preciso ter a ousadia de levantar a hipótese segundo a qual não se deveria exigir curas rápidas demais, que submetem o indivíduo a falsas adaptações (Fédida, 2002, pág 36).

Trata-se aqui de uma questão que se coloca à ética da psicanálise e à sua posição frente à urgência de nossos dias. Esta a se afirmar, conforme nos propõe Fédida (2002), que o tratamento psicanalítico solicita a restituição de uma certa depressividade e, como conseqüência, uma diminuição no ritmo de produtividade e consumo. Não é necessário dizer o quanto esta lentificação vai de encontro à ideologia dominante de nosso tempo e, por outro lado, o quanto esta constatação se coloca como desafio à pratica da clínica psicanalítica.

Restituir depressividade por ser entendido ainda, como conceder certa maturidade ao psiquismo, concordando com a postulação kleiniana de que a posição depressiva indica, conforme dito anteriormente, a capacidade de deixar de idealizar objetos bons ou maus e de entrar em contato com objetos totais, mais próximos da realidade, mundanos.

A nosso ver, são estes alguns dos cuidados que se colocam como necessários, pois é somente a partir deles que se torna possível ao analista perceber no afeto depressivo os sinais  de uma cura em construção, de fundações em construção.

É preciso capacidade para ponderar, pois conforme nos diz Fédida (2002), quando um paciente borderline consegue dispor, no tratamento, de ressonâncias íntimas daquilo que ele vive, pode-se considerar que ele adquiriu a depressividade de uma troca com o outro e com ele próprio. Porém, quando a depressividade atinge níveis que impedem o contato com o outro, é momento de considerar o auxílio farmacológico.

Com base nesta troca poder-se-á erigir uma estrutura psíquica apta a viver satisfatoriamente e a criar, pois, conforme nos diz Fedida, “a capacidade depressiva é uma capacidade de criação, em todos os sentidos do termo”. (Fédida, 2002, pág 42).
 

3. Considerações finais

No caminho até aqui percorrido foi possível verificar que desde hipócrates já era observado que o temperamento melancólico estava, de alguma forma, relacionado com o desequilíbrio de humores, contudo já era possível diferenciar a existência de um temperamento melancólico e de um estado melancólico patológico.

Em nossos dias, contando com o conhecimento dos mecanismos das paixões humanas que a psicanálise nos fornece, continuamos a verificar a veracidade destas afirmações. Conseguimos distinguir que a patologização da tristeza, sob o signo da depressão, segue a determinações da ideologia dominante em nosso tempo e não, acreditamos, ao aumento da incidência de quadros verdadeiros de melancolia. Hoje entristecer é tornar-se a parte que falha na engrenagem social, tanto quanto foi pecado nos dias medievais e, se naqueles dias a fogueira era o caminho para apagar os sinais de que algo escapava ao controle, em nossos dias a prescrição e o uso abusivo de antidepressivos se presta ao mesmo fim.

Como se pode ver, deprimir é muitas vezes, recurso último do psiquismo na tentativa de manter-se integrado. O homem deprime diante de si mesmo, reconhece-se limitado, castrado. Diante desta trágica situação, deprimir apresenta-se como único recurso para que, como um animal gravemente ferido, o psiquismo encontre forças e se recomponha, em seu tempo.

O serviço de notícias do jornal The New York Times, em artigo de 13 de outubro de 2004, demonstra que estudos do órgão responsável pelo controle e fiscalização de medicamentos dos EUA (FDA) indicam a existência de correlação significativa entre o uso de antidepressivos e o suicídio (principalmente entre crianças e adolescentes). Estatísticas e reportagens dão aval ao aqui exposto, impossibilitado de obter a proteção e o tempo necessário à sua recuperação, o psiquismo melancólico se fragmenta, morre.

Contudo, como qualquer remédio, a melancolia é amarga, causa sofrimento e dor. O risco oferecido muitas vezes se sobrepõe a possíveis benefícios. Parece que, de tão protegido, o psiquismo pode sufocar-se e os efeitos colaterais do remédio podem ser os mesmos da falta dele.

Longe de tentar, neste breve ensaio, traçar uma defesa da depressão, pretendemos demonstrar que cabe à psicanálise o papel de contrapor-se à ideologia dominante e, eticamente, respeitar o tempo e a velocidade possível a seus pacientes. Olhar para o melancólico e, concordando com Freud, dar-lhe razão em seu sofrimento. Parece que somente ao encontrar, no analista, amparo e compreensão para sua dor é que o paciente poder-se-á reconhecer limitado e passar a construir objetivos menos idealizados, projetos mais próximos do possível e que, deste modo, frustram menos.

No início deste trabalho propusemo-nos tentar entender as raízes de um quadro melancólico. Sabemos ter ficado longe das respostas. Contudo foi possível verificar que a escolha narcísica de  objeto parece ser o ponto de confluência entre as diversas experiências vividas no real que podem dar desencadeamento ao quadro. A origem deste tipo de escolha remonta às primeiras impressões do bebê em relação à separação do corpo da mãe. É de como é vivenciada esta separação e de como é elaborado o luto por esta mãe morta, que surgirá o modo predominante de relação objetal de cada um.

Seria possível, com base nisto, afirmar que a quantidade de melancólicos é maior em nossos dias? Não temos material suficiente para aceitar ou refutar tal afirmação, porém sabemos que a modernidade e o progresso tecnológico têm realizado mudanças significativas no modo de relacionamento social e familiar. Talvez estejamos assistindo, em nossos consultórios, os reflexos psíquicos destas mudanças. Não há dúvida de que este é um caminho de pesquisa a ser percorrido.

Outra questão que surge, ainda falando das particularidades do progresso e da vida moderna, é a das formas de relação que o homem pode estabelecer, principalmente vivendo nos grandes centros, com dois eventos que se relacionam diretamente com o quadro psicopatológico da melancolia, quais sejam: A morte e o nascimento.  Seria o aumento na incidência de quadros depressivos um indicativo da fragilidade narcísica decorrente da medicalização dos dois momentos de marcação da história humana? Em outras palavras, a morte nos dias de hoje é algo que acontece nos hospitais, longe dos olhos dos familiares e das crianças, os mortos são velados e tomam seu destino pela mão de profissionais que mantém “tudo sob controle” e “confortável” para os que ficaram. Tudo acontece de forma rápida, clean, de modo o gerar o menor distúrbio possível na rotina cotidiana e, como conseqüência, tornar a morte uma experiência superficial e distante. Da mesma forma os nascimentos acontecem com hora marcada, na maioria das vezes sem dor, sem sofrimento para o feto e para a mãe. Sem marcas… Irrepresentável.

Tais questões se apresentam como hipóteses de pesquisa, construídas com base na reflexão decorrente do presente trabalho e são, sem dúvida, o que de principal foi possível obter em sua construção, ou seja, novas questões.
       

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[1]  Para uma descrição detalhada da utilização do termo melancolia nos escritos de Freud, ver Moreira (2002).

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