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O Estrangeiro sob a ótica da psicanálise

Pretendemos com a execução deste trabalho, colocar sob a lente da psicanálise o importante conceito de "Estrangeiro", o qual assume papel de importante destaque na situação analítica, quer para o analista, quer para o analisando.

Pretendemos, com a execução deste trabalho, enfocar a problemática referente ao "Estrangeiro", principalmente naquilo que é concernente ao campo da psicanálise. Trata-se de uma questão muito pesquisada e trabalhada pela Sociologia, como uma primeira ciência de escolha para se ocupar dessa temática, sendo seguida de perto pela ciência política.

Nossa preocupação em relação a esse tema, na óptica da psicanálise, é de podermos estudar o "estrangeiro", não só como grupo social outro, mas predominantemente, nosso ângulo de análise, se reporta àquilo que pode chegar a ser "estrangeiro" no âmbito do próprio processo de análise, quer em seus aspectos intra, como inter-subjetivos; além da visão do próprio "par analítico" em sua condição de estrangeiro.

Algumas Considerações Preliminares

Quando falamos de "estrangeiro", devemos ter em mente tratar-se de um tema que percorre tanto os aspectos históricos, como também míticos. É um termo que nunca passa despercebido, indiferente, constituindo-se num objeto identificatório e contra-identificatório. É um objeto que sempre desperta sentimentos de amor ou de ódio.

Em termos de Brasil, citamos como exemplo os episódios que ficaram conhecidos como: Carandiru, Candelária. Se ampliarmos nosso campo de observação para os eventos internacionais, poderemos citar "a fome em Ruanda", bem como o atentado ocorrido em Buenos Aires, contra as entidades judaicas.

Penso que  através da teoria psicanalítica, podemos tentar caminhar um pouco sobre as "causas obscuras do racismo". Então, desde esse ponto de vista, um analista pode tentar construir algo a partir do indivíduo, além da economia que se refere ao seu "gozo". Sabemos que o "estrangeiro" surge quase sempre, como sendo o representante desse gozo e, seja ele aquele que rejeitamos ou aquele que supomos no outro.

Parece-me presente a idéia de que quando tentamos estabelecer articulações entre a psicanálise e a política, estamos sempre pisando num terreno perigoso, minado. Contudo, numa retrospectiva histórica, poderemos nos aperceber de que nem Freud e, nem mesmo Lacan, teriam passado por cima desta dimensão. Detemo-nos nesse momento, para deixar registrado, uma referência bibliográfica em relação ao tema: "Freud – Pensador da Cultura", de autoria de Renato Mezan.

Ao fazermos uma análise da sociedade contemporânea, pode-se verificar que coexistem maravilhosas conquistas tecno-científicas, com as mais terríveis marginalizações e rejeições humanas. Desta forma, a psicanálise surge para poder levar os sintomas individuais e sociais muito a sério. Falando em sintoma, entendemos que o mesmo não é algo da ordem do imutável e orgânico, mas sim algo que poderá ir mudando com o discurso, sendo este tomado no sentido lacaniano do termo. O sentido lacaniano nos revela a existência de uma ordem estabelecida no campo do real e através da linguagem.

Em seus trabalhos sobre "O por que da guerra" e "Mal estar na civilização" (capítulo V, em especial), podemos observar que Freud sempre teve como objeto de preocupação a relação do homem com o seu semelhante. Queremos ressaltar que no referido Cap. V, Freud faz um esforço no sentido de poder dar conta do mandamento bíblico: "Amarás a teu próximo como a ti mesmo". Sabemos que para Freud, tratava-se de um mandamento, no mínimo muito estranho e preocupante. Freud chega a se indagar: "quem é esse próximo a quem devo amar como a mim mesmo?"

Sabemos, através da literatura psicanalítica, ou mais propriamente de seu construto teórico, que o que fundamenta toda a escolha de amor é o narcisismo. Parece-nos mais do que pertinente a idéia de que se necessita de amor para que consigamos viver, fato que nos leva ao vetor resultante de que "o amor de si é função do amor de um semelhante". Aqui, queremos fazer duas referências teóricas:

"O primeiro ano de vida" – René Spitz (sobretudo, onde se fala de depressão anaclítica).

"A fase do espelho" – Jacques Lacan.

Colocam-se aqui umas questões que me parecem de fundamental relevância:

"Se só posso me amar na condição de que outro me ame, como então amar meu semelhante como a mim mesmo?"

"Mas, afinal de que semelhante estamos falando?"

Se percorrermos o caminho, através do "traço identificatório" que se estabelece, será importante estarmos atentos para o fato de que tal atitude acarreta uma divisão entre os semelhantes, na medida em que ficam excluídos os não-semelhantes. Poderíamos dizer que "não existe amor entre irmãos sem a rejeição dos estrangeiros". É exatamente aqui que nos defrontamos com o limite do "amor ao próximo como a si mesmo". Entendemos que esse "amor" assume um caráter "segregativo", uma vez que está fundado na identificação. Além de que, devemos considerar também que o meu próximo não é meu semelhante, podendo ele não estar nem um pouco interessado no "bem" que eu quero lhe imputar, para que possamos nos assemelhar.

A segregação, em latim quer dizer "separar do rebanho". A partir do século XVI, "segregare" passou a significar o ato pelo qual se separavam as populações brancas das demais, ou seja, passou a significar "apartheid". Contudo, o racismo moderno difere do antigo, existindo nele algo mais que agressividade. Existe um ódio que tem por alvo o real do outro. Percebemos então que todo o processo de totalitarismo envolve, necessariamente como conseqüência, o fenômeno da "dessubjetivação".

Entendemos que o humanismo contemporâneo, apoiado na ciência, consiste em querer que o outro seja igual a qualquer preço e fica desorientado quando o real do outro se manifesta de forma diferente. O modo universal da ciência tem seus limites naquilo que é estritamente particular, que não pode ser universalizado e que Lacan chamou de "gozo", e que pertence àquilo que Freud teria chamado de "Além do princípio do prazer". A segregação está sempre do lado do gozo, sendo que o que acaba por nos inquietar no outro, é sempre o seu modo particular de gozar. Para o racista é absolutamente impossível reconhecer e aceitar a existência de outros tipos de gozo. Isso nos autoriza a dizer que "o racismo é ódio do gozo do outro".

Nessa mesma linha, não suportamos que o nosso vizinho festeje algo de uma forma diferente da nossa.

Verificamos no processo de análise, que não existe nada mais estrangeiro para o sujeito que a sua própria "anterioridade". Como conseqüência, entendemos que a experiência analítica por parte do sujeito, como sendo um sujeito da palavra, o leva sempre a se interrogar sobre o conjunto dos laços que o constituíram, o que o impediria de ficar apenas reproduzindo-os neuroticamente.

Um sujeito em análise se pergunta, antes de mais nada, sobre como viver com o outro, como viver no mundo, podendo vir ao longo do processo, reconhecer o heterogêneo, como sendo algo possível. Freud já dizia reconhecer o próprio inconsciente como estrangeiro, além de suas formações mestiças. Na verdade, o que se espera de uma análise, é justamente poder se aproximar um pouco desse "segredo" que nos habita e do qual nada sabemos.

Se permanecemos no campo das neuroses, pode-se reconhecer que aquilo que foi chamado, a meu ver, com muita propriedade, de "formações do inconsciente", como os sintomas, os sonhos, os atos falhos e os chistes, podem ser perfeitamente enquadrados na categoria de "produtos estrangeiros" frente aos quais o sujeito se depara.

Ao adentrarmos o campo das psicoses, imaginamos também que um delírio propriamente constituído, como por exemplo os encontrados no famoso "Caso Schreber", onde Deus teria feito dele a sua mulher, a título de exemplo, também podem ser identificados como pertencentes à categoria de "estrangeiros" ao próprio sujeito e, pelo menos num primeiro momento, ao profissional com que com ele se deparar. Contudo, deve estar presente para nós, a lembrança de que todo delírio  sempre parte de uma base do real. Talvez seja esse o nosso único fio condutor, para tentarmos tocar nesse emaranhado novelo de representações e circundado pelas cargas afetivas a elas correspondentes.

Um outro exemplo, ainda no campo das psicoses, encontramos quando se vê o sujeito , após ter defecado, sair do banheiro sem dar a descarga e nem mesmo olhar para o vaso sanitário, numa tentativa desesperada de não entrar em contato com o fato de que "algo saiu dele". Algo que, seguramente poderíamos pensar estar enquadrado também no campo de "algo estrangeiro" a ele.

Queremos ressaltar que o foco prioritário na execução deste trabalho, foi o de tentar chamar a atenção dos leitores não para o conceito de estrangeiro, estudado pela Sociologia e pela Ciência Política, mas sim procuramos o ângulo de tudo que, mesmo pertencente a nós, nos parece absolutamente da ordem do estrangeiro. Nesse sentido, estamos convencidos de que a psicanálise cumpre o seu papel, na medida em que tenta propiciar ao sujeito, fazer-se cargo do próprio desejo, além de possibilitar-lhe, também tornar-se responsável por todas as conseqüências vinculadas a essa tomada de posição na vida.

Bibliografia Complementar

O Sítio do Estrangeiro – Pierre Fédida.

Acesso à Plataforma

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