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Seria necessário um projetista para o Universo?

 
Introdução

Com a famosa expressão de Einstein, Deus é sutil, porém não malicioso, ganhamos uma pista para um aspecto intrigante da ordem natural. Einstein quis dizer que, para entender a natureza, é preciso dispor de conhecimento matemático, discernimento físico e criatividade mental, mas que o objetivo – entender – pode ser alcançado. O mundo parece estruturado de tal modo que sua descrição matemática, embora não seja nada trivial, está ao alcance do raciocínio humano.

 

O auge dessa sutileza talvez se encontre na física quântica e na teoria do campo probabilístico, onde se conjugam diversos ramos da matemática avançada. Em termos bem claros: uma aplicação direta da matemática o leva muito longe, e depois surge um bloqueio. Aparece alguma incoerência interna, ou os resulta­dos da teoria são divergentes do mundo real. Então vem uma pessoa engenhosa e descobre um truque matemático – algu­ma brecha obscura em um teorema, talvez, ou uma elegante reformulação do problema original em linguagem matemática totalmente nova – e, pronto, tudo se encaixa. É impossível resistir ao impulso de proclamar que a natureza é pelo menos tão engenhosa quanto o cientista quando se trata de descobrir o truque e usá-lo. Muitas vezes ouvimos os físicos teóricos promover suas teorias, na linguagem altamente informal e co­loquial que é de seu feitio usar, com o gracejo de que são de tal maneira elegantes que é difícil imaginar a natureza abrindo mão delas.

Um exemplo disso: as tentativas recentes de unificar as quatro forças fundamentais da natu­reza – fraca, forte, eletromagnética e gravitacional. Por que a natureza ostentaria quatro forças diferentes? Não seria mais simples, talvez duas ou mesmo uma, mas com quatro aspectos distintos? Pelo menos este é o ponto de vista dos físicos em questão, de forma que procuraram seme­lhanças entre as forças para ver se seria possível introduzir alguma amalgamação matemática. Na década de 1960, as candidatas promisso­ras eram: a força eletromagnética e a força nuclear fraca. Sabia-se que a força eletromagnética agia através da troca de partículas chamadas fótons, que se movem rapidamente entre partículas eletricamente carregadas, como os elétrons, e geram forças neles. Quando você faz uma bola de encher aderir ao teto, ou quando sente a atração e repulsão de ímãs, você está presenciando o trabalho invisível dessa rede de fótons itinerantes. Pode pensar nesses fótons como mensageiros que levam e trazem notícias sobre a força entre partículas de matéria, e estas devem responder à mensagem.

Os teóricos acreditavam que ocorria algo similar dentro dos núcleos em decorrência da atuação da força nuclear fraca. Inventou-se uma partícula hipotética, conhecida pelo nome críptico (cryptós gr., escondido) de W, e a ela foi atribuído um papel de mensageiro análogo ao do fóton. Mas os fótons eram conhecidos nos laboratórios, ao passo que ninguém jamais vira um W, de modo que essa teoria guiava-se principalmente pela matemá­tica. A teoria foi reformulada de maneira a apresentar mais sugestiva­mente essa semelhança essencial com o eletromagnetismo. A idéia era que, tendo dois esquemas matemáticos mais ou menos iguais, é possí­vel amalgamá-Ios em um só. Parte desse remanejamento implicou a intro­dução de mais uma partícula mensageira, conhecida como Z, ainda mais parecida com o fóton do que W. O problema era que, mesmo nesse novo quadro matemático, os dois esquemas – o eletromagnetismo e as teorias da força fraca – ainda apresentavam um aspecto básico diferen­te. Embora Z e o fóton tivessem muitas propriedades em comum, suas massas têm de estar em extremos opostos do espectro. Isto porque a massa da partícula mensageira tem uma relação simples com a gama da força: quanto maior for a partícula mensageira, menor a grandeza da força correspondente. Ora, o eletromagnetismo é uma força de grande­za ilimitada, que exige uma partícula mensageira de massa zero, ao passo que a força fraca está limitada a distâncias subnucleares e exige que suas partículas mensageiras sejam tão grandes que seu peso pode superar o da maioria dos átomos.

Agora algumas palavras sobre a ausência de massa do fóton. A massa de uma partícula está relacionada com sua inércia. Quanto menor a massa, menor a inércia e, portanto, mais depressa se acelerará ao ser empurrada. Um determinado impulso imprimirá velocidade altíssima a um corpo com massa muito reduzida. Imaginando partículas com mas­sa cada vez menor, vemos que suas velocidades serão cada vez mais elevadas. Você pode pensar que uma partícula com massa zero se des­locará com velocidade infinita, mas não é assim. A teoria da relativida­de proíbe velocidades superiores à da luz, de forma que as partículas com massa zero viajam à velocidade da luz. Os fótons, "partículas de luz", são o exemplo óbvio. Prevê-se, ao contrário, que as massas das partículas W e Z sejam de cerca de oitenta e noventa vezes, respectiva­mente, a massa do próton (a partícula estável mais pesada que se conhe­ce).

O problema que os teóricos enfrentaram na década de 1960 foi como combinar os dois esquemas matemáticos elegantes que descrevi­am duas forças – eletromagnética e nuclear fraca – se estas apresen­tavam uma diferença tão acentuada em um detalhe importante. A brecha surgiu em 1967. Baseando-se no quadro matemático elaborado algum tempo antes por Sheldon Glashow, dois físicos teóricos, Abdus Salam e Steven Weinberg, apontaram, simultânea e independentemente, uma saída. Vejamos o essencial da idéia. Suponha-se que a grande massa de W e Z não seja uma qualidade primária, mas algo adquirido como resultado da interação com outra coisa; ou seja, suponha-se que essas partículas não tenham nascido, por assim dizer, mas que estejam apenas transportando carga alheia. A distinção é sutil, porém decisiva. Signifi­ca que a massa não é atribuída às leis da física subjacentes, mas ao estado particular em que W e Z costumam ser encontradas.

Uma analogia pode esclarecer o assunto. Mantenha na vertical um lápis apoiado em sua ponta. Agora solte-o. O lápis vai cair e apontar em alguma direção. Digamos que aponte para nordeste. O lápis chegou àquele estado em decorrência da ação da gravidade terrestre. Mas seu alinhamento nordeste não é uma qualidade intrínseca da gravidade. A gravidade da Terra, sem dúvida, tem um alinhamento intrínseco "des­cendente e ascendente", mas não nos eixos norte-sul, leste-oeste ou qualquer outra direção intermediária. A gravidade não faz distinção entre direções horizontais. Assim, o alinhamento nordeste do lápis é apenas uma propriedade incidental do sistema lápis-gravidade que re­flete o estado particular em que o lápis por acaso se encontra.

No caso de W e Z, o papel da gravidade é desempenhado por um novo campo hipotético chamado de campo de Higgs, do nome de Peter Higgs, da Universidade de Edimburgo. O campo de Higgs interage com W e Z e as faz cair em sentido simbólico. Ao invés de adquirir o "alinhamento nordeste", elas adquirem massa – e muita. Agora está aberto o caminho para a unificação com a força eletromagnética, por­que, por trás disso, W e Z realmente não têm massa, como o fóton. Os dois esquemas matemáticos podem então ser amalgamados, gerando uma descrição unificada de uma única força eletrofraca.

O resto, como dizem, é história. No começo da década de 1980, os aceleradores de partículas do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN), perto de Genebra, finalmente produziram partículas W, e de­pois Z. A teoria foi brilhantemente confirmada. Viu-se que essas duas forças da natureza eram, na verdade, duas facetas de uma única força. Minha intenção é ressaltar que a natureza evidentemente percebera uma brecha no raciocínio de que não se pode reunir partículas com e sem massa. Usando o mecanismo de Higgs, pode-se.

Esta história tem um post scriptum. O campo de Higgs, que faz esse trabalho importantíssimo, tem sua própria partícula associada, chamada "bóson de Higgs". Ela é realmente muito grande: assim sendo, é preciso de muita energia para fabricá-Ia. Nenhum bóson de Higgs jamais foi detectado, mas esta é a primeira na lista das descobertas a serem feitas. Sua produção será um dos principais objetivos do gigantesco acelerador da região do cerrado do Texas. Conhecido como "supercolisor supercondutor" (SSC), esta máquina monstruosa tem cerca de oitenta quilômetros de circunfe­rência e acelera prótons e antiprótons até energias sem precedentes. Feixes que giram em sentidos opostos colidem, produzindo encontros de uma ferocidade espantosa. O SSC tem de reunir potência sufi­ciente para fazer o bóson de Higgs.

"Porque a natureza se preocuparia com isto?" ou "Qual é a finalida­de daquilo?" – quando fazem essas perguntas sobre a ciência, os cien­tistas parecem estar atribuindo à natureza um raciocínio inteligente. Embora pretendam formulá-Ias com espírito despreocupado, essas in­dagações têm um conteúdo sério. A experiência demonstrou que a natu­reza de fato partilha nosso senso de economia, eficiência, beleza e sutileza matemática, e este enfoque costuma render pesquisas com re­sultado proveitoso (como a unificação das forças fraca e eletromagnéti­ca). A maioria dos físicos acredita que existe uma unidade elegante e poderosa sob a complexidade de sua disciplina, e que se pode progredir descobrindo os truques matemáticos que a natureza usou para gerar um universo interessante, diversificado e complexo com base nessa simpli­cidade subjacente.

Entre os físicos há, por exemplo, uma sensação mais ou menos universal, porém não formulada, de que tudo que existe na natureza deve ter um lugar ou papel como parte de um arranjo mais amplo, de que a natureza não incorreria em prodigalidades, envolvendo entidades gratuitas, de que ela não seria arbitrária. Cada faceta da realidade física deve vincular-se com as outras de maneira natural e lógica. Assim, quando a partícula conhecida como múon foi descoberta em 1937, o físico Isidor Rabi ficou pasmo. "Quem encomendou aquilo?", excla­mou. O múon é uma partícula mais ou menos idêntica ao elétron em todos os aspectos, salvo em sua massa, que é 206,8 vezes superior. O irmão mais velho do elétron é instável e se desintegra em um ou dois microssegundos, de forma que não constitui uma apresentação perma­nente da matéria. Entretanto, parece tratar-se de uma partícula elemen­tar em si, não de uma composição de outras partículas. A reação de Rabi é típica. Para que serve o múon? Por que a natureza precisa de outro tipo de elétron, sobretudo de um que desaparece tão depressa. Em que o mundo seria diferente se o múon simplesmente não existisse?

Desde então o problema só se acentuou. Agora se sabe que há dois irmãos mais velhos. O segundo, descoberto em 1974, é chamado de táuon. E, o que é pior, outras partículas também possuem irmãos mais velhos altamente instáveis. Ambos os quarks – componentes básicos da matéria nuclear, como os prótons e nêutrons – têm duas versões mais pesadas cada um. E existem três variedades de neutrino.  Parece que todas as partículas conhecidas podem ser dispostas em três gerações. Na primeira estão o elétron, o neutrino do elétron e os dois quarks up e down que, juntos, formam prótons e nêutrons. As partículas desta primeira geração são essencialmente estáveis e compõem a matéria habitual do universo que vemos. Os átomos do seu corpo, o sol e as estrelas são compostos das partículas de primeira geração.

A segunda geração parece ser pouco mais que uma duplicata da primeira. Aqui se encontra o múon, que tanto assombrou Rabi. São partículas instáveis (com a possível exceção do neutrino), e logo se desintegram, tomando-se partículas de primeira geração. Então, a natureza faz tudo de novo e nos dá mais uma réplica do padrão na terceira geração. Você pode estar se perguntando se este processo de replicação tem fim. Talvez haja uma infinidade de gerações, e o que estamos presenciando na verdade talvez seja a repetição de algum pa­drão simples. A maioria dos físicos discorda. Em 1989, o acelera­dor de partículas do CERN, chamado de Lep (iniciais de Large Electron-­Position Ring), foi usado para examinar minuciosamente a desintegra­ção da partícula Z. Ora, Z se desintegra gerando neutrinos, e a velocida­de da desintegração depende do número de espécies diferentes de neutrinos disponível na natureza. Assim, o número de neutrinos pode ser deduzido de uma medida cuidadosa da velocidade. A resposta obti­da foi três, o que sugere a existência de apenas três gerações.

Então temos um quebra-cabeças: por que três? Um ou uma infinida­de seria uma resposta natural, mas três parece simplesmente perverso. Esse "quebra-cabeças generacional" suscitou alguns trabalhos teóricos importantes. O progresso mais satisfatório na física das partículas origi­nou-se do uso de um ramo da matemática conhecido como "teoria dos grupos", estreitamente vinculada ao tema da simetria, uma das manifes­tações favoritas da natureza. A teoria dos grupos pode ser usada para associar partículas aparentemente distintas em famílias unificadas. Ora, existem regras matemáticas precisas que estabelecem como esses gru­pos podem ser representados e combinados, e quantos tipos, de cada tipo de partículas, eles descrevem. Espera-se que surja uma descrição do tipo da teoria dos grupos, mas que seja aceita por outros motivos e também exija três gerações de partículas. Então, a aparente prodigalida­de da natureza será vista como conseqüência necessária de uma sime­tria unificadora mais profunda.

Claro que, até essa unificação mais profunda ser demonstrada, o problema das gerações parece oferecer um contra-exemplo à sutil eco­nomia da natureza, sinalizando um malicioso arbítrio. Mas é muito provável de que a natureza partilha nosso senso de economia que aposta-se que o problema das gerações será resolvido, e que sua solução trará mais alguns indícios fortes de que a natureza realmente se submete à regra "um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar".

Esse jogo de gerações tem um corolário interessante. Em diversas ocasiões, o quark top foi descoberto, só para ser des-descoberto logo depois. Você pode estar se perguntando por que os físicos então têm tanta certeza da existência do quark top, a ponto de se dispor a gastar uma parcela significativa de seus escassos recursos procurando por ele. Suponha que o quark top não exista. Suponha que, na verdade, existe uma lacuna no quadro (que, afinal de contas, é uma construção humana), de modo que não há três gerações, mas apenas duas e três quartos. Bem, você teria muito traba­lho para encontrar um físico realmente disposto a acreditar que a natu­reza seria perversa a esse ponto, com o quark top descoberto, temos mais um exemplo do capricho com que a natureza faz as coisas.

O problema das gerações na verdade faz parte da concepção mais ampla de unificação, que está sendo frontalmente atacada por um pequeno exército de teóricos. John Polkinghorne, que antes de ser padre era físico especializado em partículas, escreve sobre a confi­ança dos físicos nesse próximo passo do programa de unificação:

"Meus ex-colegas estão muito empenhados em trabalhar para produ­zir uma teoria ainda mais abrangente. (…) Diria que, atualmente, seus esforços têm algo de artificial, ou mesmo de desesperado. Ain­da parece faltar algum fato ou idéia vital. Entretanto, não tenho dúvidas de que, em tempo hábil, chegaremos a uma compreensão mais íntima e discerniremos um padrão mais profundo na base da realidade física."

A chamada teoria da supercorda é a moda atual, mas sem dúvida logo surgirá algo mais. Há grandes dificuldades pela frente, mas muitos concordam com Polkinghorne. Não se pode acreditar que esses problemas sejam verdadeiramente insolúveis, e que a física das partícu­las não possa ser unificada. Todos os indicadores levam-nos a supor que há unidade, e não arbitrariedade, por trás de tudo que se vê, apesar de nossa perplexidade.

Uma observação final sobre a questão da necessidade de todas essas partículas: é curioso pensar que, embora ausentes da matéria comum, os múons têm um papel importantíssimo na natureza. A maioria dos raios cósmicos que atingem a superfície da Terra são, na verdade, múons. Esses raios fazem parte do cenário natural da radiação e contribuem para as mutações genéticas que impulsionam a mudança evolutiva. Portanto, pode-se encontrar uma utilidade para os múons na biologia ao menos até certo ponto: eis mais um exemplo da oportuna convergência do grande e do pequeno.

Com essa pequena discussão espero ter convencido o leitor de o mundo natural não ser apenas uma antiga combinação de entidades e forças, mas um esquema matemático maravilhosamente engenhoso e unifica­do. Ora, engenho e argúcia são inegavelmente qualidades humanas, embora não se possa deixar de atribuí-Ias também à natureza. Será que se trata apenas de mais um exemplo de como projetamos na natureza nossas próprias categorias de pensamento, ou representa uma qualidade genuinamente intrínseca do mundo?

O relógio de Paley já se perdeu na poeira da estrada. Para voltar mais uma vez à clássica analogia, o mundo da física das partícu­las é mais como as palavras cruzadas do que como um mecanismo de relógio. Cada nova descoberta é uma pista cuja solução está em alguma nova articulação matemática. À medida que as descobertas se acumu­lam, cada vez mais cruzamentos são preenchidos, e começa a surgir uma forma. Atualmente restam muitas lacunas no crucigrama, mas algo de sua sutileza e coerência pode ser vislumbrado. Ao contrário dos mecanismos, que com o tempo podem evoluir lentamente para formas mais complexas ou organizadas, as palavras-cruzadas da física das partículas já vêm prontas. As articulações não evoluem, simplesmente estão ali, nas leis subjacentes: ou as aceitamos como fatos brutos real­mente assombrosos ou procuramos uma explicação mais profunda.

Segundo a tradição cristã, a explicação mais profunda é que Deus projetou a natureza com habilidade e engenho consideráveis, e que a tarefa da física das partículas é revelar parte desse projeto. Se acei­tarmos esta opção, a pergunta subseqüente é: com que finalidade Deus traçou esse projeto? Neste caso, a aparente sintonia fina entre as leis naturais necessárias para que a vida possa evoluir no universo implica claramente que Deus projetou o uni­verso de forma a propiciar o surgimento da vida e da consciência. Significaria que nossa própria existência no universo foi uma parte central do plano de Deus.

Mas será que um projeto implica necessariamente um projetista? John Leslie alegou que não. Em sua teoria da criação, o universo existe como resultado de um requisito ético: "Um mundo que existisse em decorrência de uma necessidade ética poderia ser exata­mente igual a este, igualmente rico em aparentes indícios do toque de um projetista, quer o papel da necessidade dependesse ou não de atos criadores guiados por uma inteligência benevolente." Em suma, um bom universo nos pareceria projetado, mesmo se não o tivesse sido.

Em The cosmic blueprint, lê-se que o universo parece desdo­brar-se segundo um plano ou projeto. Sua característica essencial é que algo de valor surge como resultado do processamento pautado por um conjunto engenhoso de regras preexistentes. Essas re­gras parecem ser produto de um projeto inteligente. Não vejo como negá-Io. Se você deseja acreditar que elas realmente foram projetadas, e, assim sendo, decidir sobre o tipo do ser projetista, é uma questão de gosto pessoal. Eu mesmo sou propenso a supor que qualidades como engenho, economia, beleza e assim por diante têm uma genuína realida­de transcendente – não são meros produtos da experiência humana ­e que essas qualidades se refletem na estrutura do mundo natural. Não sei se essas qualidades em si podem conferir existência ao universo. Caso afirmativo, seria possível conceber Deus como uma mera personi­ficação mítica dessas qualidades criadoras, e não como agente indepen­dente. O que não satisfaria ninguém que sente ter uma relação pessoal com Deus, é claro.

O desafio mais sério ao argumento do projetista provém, sem dúvi­da, da hipótese alternativa dos universos múltiplos, ou realidades múlti­plas. A idéia básica é que o universo visto por nós é apenas um elemento de um imenso conjunto. Quando exposta como ataque ao argumento do projetista, a teoria afirma que todas as condições físicas possíveis estão representadas em algum lugar do con­junto, e que a razão de o nosso universo particular parecer projetado é que a vida (e, portanto a consciência) só pode surgir nos universos que têm essa forma aparentemente planejada. Assim sendo, não é surpreen­dente estarmos em um universo ajustado de forma tão oportuna aos requi­sitos biológicos: ele foi "antropicamente selecionado".

Primeiro devemos perguntar quais são os indícios que apontam para a existência desses outros mundos. O filósofo George Gale compilou uma lista de numerosas teorias físicas que, de uma forma ou de outra, implicam um conjunto de universos. A teoria dos universos múltiplos, discutida com mais freqüência, está relacionada com uma interpretação da mecânica quântica. Consideremos um exemplo simples para ver como a incerteza quântica nos leva a levantar a possibilidade da existência de mais de um mundo. Imagine um único elétron imerso em um campo mag­nético. O elétron possui um spin inerente que lhe atribui um momento magnético. Haverá uma energia de interação do magnetismo do elétron com o campo magnético externo, e essa energia dependerá do ângulo formado pela direção do campo aplicado e a do campo magnético do próprio elétron. Se os campos estiverem alinhados, a energia será baixa; se forem opostos, será alta, e nos ângulos intermediários o valor da energia será também intermediário. Podemos medir a orientação do elé­tron por meio da mensuração dessa energia de interação magnética. Descobre-se então – o que é fundamental para as regras da mecânica quântica – que somente são observados, nem mais nem menos, dois valores da energia, correspondendo, grosso modo, ao momento magné­tico do elétron quando este está alinhado ao campo magnético e quando se opõe a ele.

Quando orientamos deliberadamente o campo magnético do elétron, para que seja perpendicular ao campo aplicado, surge uma situação interessante. Não é, queremos que o elétron não aponte nem para baixo nem para cima, no campo externo, mas perpendicularmente a ele. Ma­tematicamente, esta disposição seria descrita representando-se o elétron por um estado que é uma superposição das duas possibilidades. Quer dizer, o estado é – grosso modo, uma vez mais – um híbrido de duas realidades superpostas: spin para cima e spin para baixo. Se medirmos então a energia, o resultado será sempre ou o da direção para cima ou o da direção para baixo, e não alguma estranha mistura dos dois. Mas a incerteza inerente à mecânica quântica impede-nos saber-se de ante­mão, qual das duas possibilidades prevalecerá na prática. Entretanto, as regras da mecânica quântica permitirão que se atribuam probabilidades relativas às alternativas. No exemplo analisado, a probabilidade "para cima" é igual à "para baixo". Então, segundo uma versão tosca da teoria dos universos múltiplos, quando se faz uma medição o universo divi­de-se em dois exemplares, um no qual o spin está para cima, outro no qual está para baixo.

Uma versão mais refinada admite que sempre há dois universos envolvidos, mas que, antes da experiência, os dois são idênticos sob todos os aspectos. O efeito da experiência foi dar margem à sua diferen­ciação, no que se refere à direção do spin do elétron. Caso as probabili­dades sejam desiguais, pode-se imaginar que há muitos mundos idênti­cos, proporcionais às probabilidades relativas. Por exemplo, se as pro­babilidades forem 2/3, para cima e 1/3, para baixo, podem-se imaginar três universos inicialmente idênticos, dois dos quais permanecem idên­ticos e têm o spin para cima, e o outro se diferencia por ter o spin para baixo. De maneira geral, seria necessário um número infinito de univer­sos para cobrir todas as possibilidades.

Agora imagine que essa idéia é estendida a todas as partículas quânticas do universo. No cosmos inteiro, as incertezas inerentes que cada partícula quântica enfrenta estão continuamente sendo resolvidas pela diferenciação da realidade em um número cada vez maior de univer­sos com existência independente. Esta imagem implica que tudo que pode acontecer, acontecerá. Ou seja, cada conjunto de circunstâncias fisicamente possíveis (embora nem tudo seja logicamente possível) manifestar-se-á em algum lugar desse conjunto infinito de universos.

Os vários universos devem ser, de algum modo, considerados reali­dades paralelas ou coexistentes. Qualquer observador só verá um de­les, é claro, mas devemos supor que os estados de consciência do obser­vador fazem parte do processo de diferenciação, de modo que cada um dos muitos mundos alternativos conterá exemplares das mentes dos observadores. A teoria diz que não se pode detectar essa divisão mental: cada exemplar de nós sente-se único e integral. No entanto, existe um número fabuloso de exemplares de cada um de nós. Por mais estranha que pareça esta teoria, grande número de físicos e filósofos apóia uma ou outra de suas versões. Suas virtudes são particularmente atraentes para os que trabalham com cosmologia quântica, campo no qual outras interpretações da mecânica quântica parecem ainda menos satisfatórias. Entretanto, é preciso dizer que a teoria não deixa de ter seus críticos, alguns dos quais (como Roger Penrose, por exemplo) contestam a afir­mação de que não perceberíamos a divisão.

Esta não é a única conjectura relativa a um conjunto de mundos. Outra, um tanto mais fácil de visualizar, diz que chamamos de "o universo" apenas um fragmento de um sistema muito maior que se estende no espaço. Se o alcance do nosso olhar superasse os cerca de 15 bilhões de anos-luz a que nossos instrumentos têm acesso, vería­mos (diz a teoria) outras regiões do universo muito diferentes da nossa. Não há limite ao número de diferentes domínios que poderiam assim ser incluídos, pois o universo pode ser infinitamente grande. Estrita­mente falando, se definirmos universo como tudo que existe, esta será uma teoria das muitas regiões, e não dos muitos universos, mas a distin­ção não vem ao caso aqui.

A questão que temos de abordar é se podemos dizer que os indícios que nos levam a supor a existência de um projeto também apontam para a existência de universos múltiplos. Sob alguns aspectos, a resposta é indubitavelmente afirmativa. Por exemplo: a organização espacial do cosmos em grande escala é importante para a vida. Se fosse muitíssimo irregular, o universo poderia produzir buracos negros, ou gases turbulentos, mas não galáxias bem ordenadas, com estrelas está­veis e planetas, condições propícias ao surgimento da vida. Imagine uma variedade ilimitada de mundos nos quais a distribuição da matéria fosse aleatória: o caos predominaria. Contudo, lá e cá, por puro acaso, surgiria um oásis de ordem, permitindo que a vida se formasse: o físico soviético Andrei Linde expôs e estudou uma adaptação do cenário do universo inflacionário nessa linha. O oásis de serenidade seria quase impensavelmente raro, mas não é uma surpresa estarmos habitando um deles, pois não poderíamos viver em outro lugar. Afinal, não nos sur­preende o fato de estarmos atipicamente localizados na superfície de um planeta quando o espaço quase vazio predomina no universo de maneira esmagadora. Assim, a ordem cósmica não precisa ser atribuída à disposição providencial das coisas, mas antes ao inevitável efeito seletivo vinculado à nossa própria existência.

Este tipo de explicação pode até estender-se a algumas das coinci­dências da física das partículas. Já expus como o mecanismo de Higgs é usado para explicar a maneira como as partículas W e Z adquirem massa. Em teorias da unificação mais elaboradas, são introduzidos ou­tros campos de Higgs para gerar massas para todas as partículas, bem como para fixar alguns outros parâmetros da teoria relacionados com intensidades de forças. Ora, da mesma maneira que na analogia da queda do lápis, o sistema poderia cair em um dos estados de uma ampla gama (nordeste, sudeste, sul-sudoeste etc.); assim, nes­ses mecanismos de tipo Higgs porém mais elaborados, o sistema de partículas pode cair em diferentes estados. Os estados adotados depen­deriam, aleatoriamente, de flutuações quânticas – isto é, da incerteza inerente à mecânica quântica. Na teoria dos muitos universos, deve-se supor que toda escolha possível é representada em algum lugar por um universo completo. Alternativamente, diferentes escolhas podem ocor­rer em diferentes regiões do espaço. Das duas maneiras teríamos um conjunto de sistemas cosmológicos nos quais as massas e forças assu­miriam valores diferentes. Então seria possível alegar que a vida só se formaria onde aquelas quantidades assumissem valores que coincidis­sem com os necessários a seu surgimento.

Embora possa explicar o que em outras circunstâncias são conside­rados fatos notavelmente especiais da natureza, a teoria dos muitos universos enfrenta certo número de objeções sérias. A primeira delas, a teoria vai de encontro à navalha de Occam ao introduzir uma vasta (na verdade, infinita) complexidade para explicar as regularidades de apenas um universo. Acho cientifica­mente questionável este enfoque fanfarrão para explicar a especialida­de de nosso universo. Também há o problema óbvio de que a teoria só pode explicar os aspectos da natureza que dizem respeito à existência da vida consciente; de resto, não há mecanismo de seleção. Muitos dos exemplos que citei a favor do projeto, como o engenho e a unidade da física das partículas, têm poucas conexões óbvias com a biologia. Lem­bre que não basta que a característica em questão seja simplesmente aplicável à biologia: também tem de ser crucial para sua prevalência concreta.

Outro ponto normalmente atenuado é que, em todas as teorias dos universos múltiplos, derivadas da física real (e não da simples fantasia sobre a existência de outros mundos), as leis da física são as mesmas em todos os mundos. A seleção de universos restringe-se aos que são fisi­camente possíveis, não incluindo os que apenas podem ser imaginados. Serão muito mais numerosos os universos logicamente possíveis que, no entanto, contradizem as leis da física. No exemplo do elétron que pode ter spin para cima ou para baixo, ambos os mundos contêm um elétron com a mesma carga elétrica, que obedece às mesmas leis do eletromagnetismo etc. Assim, mesmo oferecendo uma seleção de esta­dos alternativos do mundo, essas teorias dos universos múltiplos não podem fornecer uma seleção de leis. É verdade que nem sempre é clara a distinção entre as características da natureza que devem sua existência a uma verdadeira lei subjacente e as que podem ser atribuídas à escolha do estado. Como vimos, certos parâmetros – como a massa de algu­mas partículas – que antes eram incluídos na teoria como parte das leis físicas que lhes serviam de pressuposto, agora são atribuídos a estados, via o mecanismo de Higgs. Mas este mecanismo só pode funcionar em uma teoria equipada com seu próprio conjunto de leis, que ainda con­terá outras características a serem explicadas. Ademais, embora as flu­tuações quânticas possam fazer com que o mecanismo de Higgs opere de maneiras diferentes em universos distintos, as teorias atualmente em processo de formulação nem de longe deixam claro que todos os valo­res possíveis de massa de partículas, intensidade de força etc., possam ser atingidos. Na maioria das vezes, o mecanismo de Higgs e os dispo­sitivos similares de violações da simetria, produzem um conjunto dis­creto – na verdade, finito, de alternativas.

Portanto, não é possível explicar a regularidade da natureza desta maneira, como sugeriram alguns físicos. Contudo, não seria possível ampliar a idéia de universos múltiplos para englobar também diferentes leis? Não há objeção lógica contra esta hipótese, que, no entanto, tam­bém não conta com justificativa científica. Mas suponha que se cogite da existência de uma pilha ainda maior de realidades alternativas onde não houvesse nenhuma idéia de lei, ordem ou regularidade. Seria o caos total. O comportamento desses mundos é inteiramente aleatório. Bem, do mesmo modo como um macaco batucando em uma máquina de escre­ver acabará datilografando a obra de Shakespeare, assim também, em algum lugar da imensa pilha de realidades, haverá mundos parcialmen­te ordenados, por puro acaso. O raciocínio antrópico então nos leva a concluir que qualquer observador perceberá um mundo ordenado, por mais espantosamente raro que tal mundo possa ser em relação a seus concorrentes caóticos. Será que isto explicaria o nosso mundo?

Acredito que a resposta é claramente negativa. Permita-me repetir que os argumentos antrópicos só funcionam para aspectos da natureza que são cruciais para a vida. Se houver uma profunda ausência de lei, ou irregularidade, a maioria esmagadora dos mundos habitados, selecio­nados aleatoriamente, só será ordenada em aspectos essenciais para a preservação da vida. Não há razão, por exemplo, para que a carga do elétron permaneça absolutamente fixa, ou para que diferentes elétrons tenham exatamente a mesma carga. A vida não estaria ameaçada se houvesse flutuações menores no valor da carga elétrica. Mas o que mantém fixo o valor – e fixo com assombrosa precisão -, se não uma lei da física? Talvez fosse possível imaginar um conjunto de universos com um leque de leis, de modo que cada universo dispusesse de um conjunto de leis completo e fixo. Então talvez pudéssemos usar o racio­cínio antrópico para explicar por que ao menos algumas das leis que observamos são como são. Mas esta teoria ainda assim precisa pressu­por o conceito de lei, e ainda podemos nos perguntar de onde provêm essas leis e como se ligam aos universos de maneira eterna.

Minha conclusão é que a teoria dos universos múltiplos pode expli­car, no máximo, uma gama limitada de características, e, mesmo assim, se acrescentar alguns pressupostos metafísicos que não parecem menos extravagantes que a idéia de um projeto. Minal, a navalha de Occam me obriga a apostar na existência de um. Porém, como sempre ocorre em matéria de metafísica, a decisão é, em grande medida, mais uma questão de gosto que de discernimento científico. Contudo, vale a pena notar que é perfeitamente coerente acreditar ao mesmo tempo no con­junto de universos e em um Deus projetista. Na verdade, como expus, as teorias plausíveis sobre conjuntos de mundos também exigem certo grau de explicação, como a existência de leis naturais nos universos e a razão da existência de um conjunto de mundos. Também deveria ressal­tar que as discussões que começam com observações sobre um único universo e passam a fazer inferências sobre a improbabilidade desta ou daquela característica suscitam questões profundas sobre a natureza da teoria das probabilidades. Creio que estas foram satisfatoriamente con­templadas no tratamento dado por John Leslie, mas alguns comentaris­tas alegam que as tentativas de argumentar retroativamente, "após o evento" – neste caso, o evento é a nossa própria existência – são falaciosos.

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