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Cachorros e Pessoas

Saindo do supermercado, não pude deixar de reparar. Um cachorrinho, talvez um vira-lata, mistura de duas raças nanicas, pintcher com bassé, provavelmente. Feição lambida, angustiado, orelhas baixas, olhar fixo para dentro do recinto, preso na entrada. O dono fora fazer compras e deixara o pobre e engraçado cachorrinho lambido que o esperava para ser resgatado do fundo do inferno de ficar sozinho nas fronteiras entre dois mundos: o seu, encolhido num canto, e o dos homens, a transbordar em gente que entrava e saía do prédio.
Cachorro tem uma qualidade: sabe pedir. E quem não sabe, passa fome ou fica sozinho. O olhar de um cachorro carente é o melhor modelo de sedução tácita. Estamos logo rendidos a fazer-lhe um carinho. E poucos seres humanos têm a mesma sorte dos cachorros: a de ser espontaneamente afagados. E tanto uma espécie quanto a outra precisa de carinho. Eles sabem pedir e receber. Nós, entre nós, não sabemos pedir e nem dar.

Olhei em volta, e observei a multidão. Veio-me a seguinte imagem à cabeça: eu afagando todas as pessoas que via. Tinha um velhinho. Em termos de idade, crianças e velhinhos são bem mais parecidos com cachorros. E eu estava lá, fazendo um carinho no tiozinho, como se fosse um cachorrinho indefeso. Mas, transformar velhinhos em cachorros é muito fácil. Passei a procurar desafios maiores para minha imaginação. Sim, aquele homem de terno. Parecia imponente, muito seguro de si, talvez alguém muito poderoso, deputado, quem sabe. Agora era um cachorrinho sem palavras nem gesto de autoridade, comendo em minha mão.

E fui assim, desafiando minha imaginação, e tomando como vítimas de meus afagos pessoas cada vez mais improváveis e inacessíveis. Senhoras de muita coisa nessa vida, menos do que eu podia imaginar delas. Para ficar mais insólito era necessário ir fundo. Que o carinho fosse o mais próximo possível do que fazemos com os cães. Mãos firmes sobre a cabeça, alisando do pescoço até as costas. E as pessoas foram ficando cada vez mais parecidas com cachorros.

Um bom modo de quebrar distâncias entre mim e algumas temidas pessoas, autoridades incrustadas no meu imaginário como algozes de minha alegria e desprendimento. Não, não impeçam que eu respire livremente. Vocês são cachorrinhos carentes, precisando de carinho. Todos somos, em algum canto de nossa existência; ou no auditório escancarado da nossa perdição constante, na vida pública ordinária.

Como se uma figura de autoridade, uma pessoa muito poderosa, senhora de todos e de si, dissesse: “Não serei objeto de nada nem de ninguém. Também desejo ser amado, mas que o amor venha de baixo pra cima e não o contrário. Vocês devem me amar como a um deus, não como a um cachorro”. E assim o amor nunca se rende verdadeiramente ao que é de carne, osso, cócegas e risos: não alcança a alegria dos corpos sorridentes que pulam e brincam entre si. Esquece-se de ser feito de mordidas de mentirinha, de coisas que não têm nome, e de que o amor pode brotar sem razão, na esquina da alegria, sem precisar de uma bíblia pesada para prometê-lo em sacrifícios por toda a história da humanidade. O amor que sentimos somente ali, naquele ínfimo momento de carinho e compaixão, por um cachorrinho lambido que ansiosamente espera seu dono na porta de um supermercado.

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