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Clínica da dor – parte I

Introdução

Estima-se que aproximadamente um terço dos doentes sofrem de alguma forma de dor crônica. Dor nas costas, artrite, cefaléias e transtornos músculo-esqueléticos, fibromialgias e tendinites das mesenquimopatias, bem como dor devido a doenças neurológicas, cardíacas e onco­lógicas combinadas, afetam estimadamente centenas de milhões de pessoas no planeta. A dor do câncer afeta aproximadamente um terço dos pacientes de câncer como doença primária, e dois terços como doença metastática.

A percepção da dor é influenciada pelo esta­do de consciência. Por exemplo, a dor crônica ten­de a ser maior ao anoitecer e nos fins de semana, quando as pessoas não são distraídas pelas ativi­dades de rotina. Ela diminui naturalmente no sono, mas, na verdade, pode interferir com esse; os tipos mais severos de dor podem reduzir subs­tancialmente a eficiência do sono. Várias das dro­gas mais potentes que tratam a dor diminuem a atenção e a vigília, um efeito colateral muitas ve­zes indesejável ou que pode levar ao abuso de medicamentos analgésicos.

A dor é, finalmente, um fenômeno da mente e do corpo. É composta tanto de um sinal somático de que algo está mal com o corpo, quanto de uma men­sagem ou interpretação desse sinal, envolvendo fatores da atenção, cognitivos, afetivos e sociais. O sistema límbico e o córtex fornecem os meios de modulação dos sinais da dor, amplificando-os através da atenção excessiva ou desregulação afetiva, ou diminuindo-os através da negação, desatenção, relaxamento ou técnicas de controle da atenção.


1. Fatores Cognitivos que influenciam a dor

Atenção à dor

A percepção da saúde é modulada pelo cór­tex, que aumenta ou diminui a consciência dos sinais que chegam. A pesquisa recente, neuropsi­cológica e de imagens cerebrais, demonstrou pelo menos três centros de atenção, que modulam a percepção: um sistema de orientação parieto-oc­cipital posterior, um sistema de enfoque localiza­do no giro cingular anterior e um sistema de despertar-vigília no lobo frontal direito. Esses sistemas fornecem, entre outras coisas, a atenção seletiva para sinais afe­rentes, permitindo que estímulos em situação de competição sejam relegados à periferia da consci­ência.

Quando foi postulada a teoria das comportas da dor, observou-se que afe­rências (inputs) corticais superiores também po­deriam inibir os sinais de dor. Essa teoria indica a interação entre o processamento central e a per­cepção de estímulos nocivos na periferia.


Significado

Sabe-se, há mais de meio século, que o contexto em que a dor está situada influencia na sua intensidade. Observou-se que os soldados da cabeça de ponte de Anzio, que estavam muito feridos, pareciam necessitar mui­to pouco em termos de medicação analgésica. Verificou-se que os pacientes cirúrgicos do Hospital Geral de Massachusetts, com feridas provocadas cirurgicamente, iguais ou menos sérias, exigiam níveis muito mais altos de medicação analgésica que os soldados em combate. Concluiu-se que essa diferença baseava-se na diferença de sig­nificado da dor. Os pacientes que interpretavam os sinais de dor como um sinal de piora de sua doença, tendiam a experimentar uma intensidade muito maior da dor. Essa hipótese foi confirma­da, por exemplo, entre pacientes de câncer. Os que acreditavam que a dor representava uma piora de sua doença mostravam ter mais dor.


Transtornos do humor

Foi relatada uma correla­ção entre neuroticismo no Inventário da Persona­lidade de Maudsley (Maudsley Personality Inventory) e a dor, entre pacientes que tinham carcinoma do cérvix. Outros estudos relata­ram que os pacientes com dor tinham escores mais altos em medidas de depressão, ansiedade e ou­tros sinais de transtorno do humor. Em particu­lar, a depressão e a ansiedade eram observadas como acompanhantes freqüentes da dor. Este estudo inicial implicava que os pacientes com psicopatologia queixavam-se mais de dor. Uma pesquisa poste­rior sugeriu que há uma interação e que talvez a dor crônica amplifique ou produza a depressão.

A depressão é o diagnóstico clínico mais freqüentemente relatado entre os pacientes com dor crônica. Os relatos de depressão entre popu­lações com dor crônica vão de 10 a 87%. A severidade relativa da depressão observada em pacientes com dor crônica é ilustrada pelos acha­dos de que 35% de uma amostra de 37 pacientes com dor satisfaziam os critérios para depressão maior e 43% tinham um episódio passado de depressão maior.

A ansiedade é muitas vezes um acompanhan­te da dor aguda. Como a depressão, pode ser uma resposta apropriada a um sério trauma por agres­são ou doença. A dor pode servir como uma fun­ção sinalizadora ou ser parte de uma preocupação ansiosa, como o caso da mulher com sarcoma, ci­tado acima. De modo similar, a ansiedade e a dor podem se reforçar uma à outra, produzindo um efeito de bola de neve, aumentando ou reforçan­do mutuamente sintomas centrais e periféricos.


2. Mecanismos neurológicos da dor

Sabe-se atualmente que interações altamente complexas de vários sistemas diferentes de estru­turas centrais e periféricas, da superfície da pele ao córtex cerebral, estão envolvidas no processa­mento da dor. O bloqueio de qualquer dessas vias e/ou o antagonismo aos neurotransmissores en­volvidos podem ser considerados ao tratar pro­blemas específicos de dor.

Receptores sensoriais periféricos

Cada indivíduo pode verificar que, quando um estímulo potencialmente nocivo é aplicado a uma área sensível do corpo, como a pele, inicia-se uma cadeia de sinais que resulta na identificação do estímulo como doloroso. As descrições anti­gas dos nervos periféricos indicavam que eles eram específicos para as modalidades e que cada classe de fibra nervosa era responsável por ape­nas uma das modalidades sensoriais. Esse conceito não foi corroborado pelos es­tudos anatômicos da superfície da pele, que de­monstraram que nem toda classe de terminal nervoso está presente em todas as áreas da pele. A pesquisa neurofisiológica mais recente estabe­leceu a existência de nervos aferentes específicos primários para a sinalização de estímulos noci­vos. Esses nervos denominam-se nociceptores.

Os nociceptores são ativados por alguma for­ma de energia (mecânica, térmica ou química). Eles convertem essa energia em impulsos elétricos, que são conduzidos através dos axônios dos nervos até o cérebro. A resposta reflexa e o relato subjeti­vo da dor, associados a um estímulo nocivo resul­tam do processamento dos sinais na medula espinhal, tronco cerebral, diencéfalo e córtex su­perior, de numerosos nociceptores aferentes pri­mários que foram ativados pelo estímulo. Os nociceptores caracterizam-se por: 1) alto limiar para todos os estímulos ocorrendo naturalmente, comparados com outros receptores no mesmo te­cido, e 2) o aumento progressivo da resposta a es­tímulos nociceptivos repetidos ou crescentes (sensibilização ).

Nociceptores particulares respondem apenas a tipos particulares de estímulos. Embora as vias exatas envolvidas na transdução da informação nociva pelos nociceptores ainda não tenham sido esclarecidas, parece que o terminal periférico do nociceptor mecânico A-delta provavelmente funciona como um receptor. Se isso é verda­deiro para outros nociceptores, ainda permanece objeto de especulação. A presença de vesículas nos terminais aferentes primários dos nociceptores foi verificada pela microscopia eletrônica. Essas ve­sículas, provavelmente, fornecem o substrato para vários agentes periféricos ativos.

A substância P (sP) é um undecapeptídeo en­contrado em neurônios aferentes primários de pequeno diâmetro. Esse peptídeo é transmitido à periferia por estes nervos, e o estímulo desses afe­rentes primários leva à liberação da sP da extre­midade distal dos nervos. Demonstrou-se que outras substâncias químicas presentes no sangue e nos tecidos são algésicas. A serotonina, histami­na, acetilcolina, bradicinina e a substância de rea­ção lenta da anafilaxia (slow reacting substance of anaphylaxis) (SRS-A), o peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (calcitonin-gene-related peptide, [CGRP]) e potássio – excitam os aferentes noci­ceptores primários. Até o presente, a definição de neuropeptídeo da "dor" não foi especificada. As prostaglandinas isoladas não excitam as fibras da dor; contudo, parecem sensibilizar os aferentes primários a substâncias algésicas.

O traumatismo direto do tecido resulta na li­beração de potássio, síntese de bradicinina no plas­ma e síntese de prostaglandinas na região do tecido danificado. Impulsos anti­drômicos nos aferentes nociceptores primários levam ao aumento da sP nos terminais nervosos. Isso associa-se a um aumento da permeabilidade vascular e, por sua vez, a uma liberação notável de bradicinina. Há também um aumento na pro­dução de histamina nos mastócitos e um aumen­to da produção de serotonina nas plaquetas; ambas são capazes de potente ativação dos nociceptores. A liberação de histamina combi­na-se à liberação da sP para aumentar a permea­bilidade vascular. Aumentos locais na histamina e na serotonina, através da ativação dos nocicep­tores, resultam em um aumento adicional na sP, de modo que se pode observar o desenvolvimento de um ciclo auto-sustentado em cada região das fibras nervosas nociceptivas aferentes do tecido danificado. No líquido extracelular circunjacen­te, os aumentos da histamina e da serotonina le­vam à ativação dos nociceptores vizinhos, e essa é uma razão para a hiperalgesia secundária. Superpostos a todos esses acontecimen­tos estão os efeitos do aumento da liberação das catecolaminas das terminações nervosas simpáti­cas, que levam à sensibilização dos nociceptores. A evidência de modelos animais de artrite e de vários dados em seres humanos indicam o neurô­nio simpático pós-ganglionar como parte integral nas alterações observadas na permeabilidade vas­cular, em resposta à ativação dos nociceptores afe­rentes primários.


Transmissão aferente primária

Após o estímulo nocivo ter sido detectado por um nociceptor, o impulso resultante transmite-se a partir do ponto de origem, através do nervo afe­rente primário. Os nervos aferentes primários que conduzem os impulsos da dor são quase exclusi­vamente de fibras amielínicas C e de fibras fina­mente mielinizadas A-delta. A maioria das fibras aferentes C originam-se de nociceptores multimo­dais, que são ativados por estímulos nocivos me­cânicos, químicos e térmicos. A velocidade de condução dessas fibras C é, aproximadamente, de 1 metro por segundo (m/s), que provavelmente explica a "dor lenta" sentida 1-2 segundos após a aplicação do estímulo nocivo. As fi­bras finamente mielinizadas A-delta também transmi­tem impulsos da dor, mas a velocidade de condução destes neurônios é muito mais rápida (12-30 m/s). As fibras A-delta são particularmente sen­síveis ao estímulo com instrumentos agudos. Além disso, 20-50% das fibras A-delta respondem ao calor bem como aos estímulos mecânicos. Esses tipos de fibras conduzem os impulsos que sinalizam ini­cialmente um estímulo nocivo. Estes nociceptores aferentes primários constituem a maioria das fi­bras em qualquer nervo periférico.

A lesão destes nervos periféricos não se corre­laciona necessariamente com a presença ou au­sência de dor. As possibilidades da agressão aos nervos periféricos evocar uma resposta dolorosa incluem:

1. Atividade aumentada das fibras simpáti­cas próximas à área danificada.

2. Formação de neuroma devido ao brota­mento de axônios danificados.

3. Brotamento de colaterais das fibras vizi­nhas intactas.

4. Alterações nas células dos gânglios das raízes dorsais ou nos terminais centrais de axônios danificados que perderam parte de sua aferência dorsal.

5. Estimulação de nervi nervorum nociceptivos    dos nervos periféricos.

Terminais dos aferentes primários na medula espinhal

Raízes dorsal e ventral. Os corpos celulares de todas as fibras aferentes somáticas primárias estão nos gânglios das raízes dorsais adjacentes à medula espinhal. O único corpo celular aferente primário fora desta posição é o gânglio do trigê­meo, que é a continuação rostral dos gânglios das raízes dorsais. A maioria das aferências sensori­ais entram na medula espinhal através da zona de entrada da raiz dorsal. Contudo, fibras aferentes não-mielinizadas C foram descobertas também nas raízes ventrais. A relevância clínica das fibras que cruzam ou das que entram pelas raízes ven­trais não é conhecida. Esta heterogeneidade na via dos aferentes primários associada à transmissão da dor ajuda a explicar o alívio incompleto da dor que se observa após a ablação da zona de entrada unilateral da raiz dorsal.

Cornos dorsais. Após o impulso entrar na medula espinhal através das raízes dorsais ou ventrais, ele termina no corno dorsal ipsilateral (do mesmo lado) da medula espinhal. O corno dorsal é organizado em lâminas distintas, com terminais aferentes pri­mários específicos nas lâminas individuais. As fi­bras A-delta terminam principalmente na lâmina I, em porções ventrais da lâmina II e através da maior parte da lâmina III. As fibras C não-mielinizadas terminam na lâmina lI.

Lâmina I. É uma lâmina delgada superficial de neurônios que constituem a zona marginal. Os neurônios com corpos celulares na lâmina I denominam-se células marginais. Estas cé­lulas marginais recebem projeções das fibras afe­rentes A-delta e C, reativas a estímulos mecânicos nocivos. Além disso, respondem a algumas fibras aferentes C multimodais, bem como a impulsos A-delta de temperatura. Esses neurônios projetam-se em uma das várias áreas do tálamo, por meio dos feixes espinotalâmicos contralaterais, à substân­cia branca dorsal ipsilateral ou à substância cin­zenta dorsal ipsilateral de uma área de vários segmentos.

Lâmina II. A lâmina II também é conhecida como substância gelatinosa, devido a aparência clara dessa na seção da matéria espinhal, em com­paração com a camada marginal circundante e o núcleo próprio. A região passou por extensa ava­liação. Os neurônios da lâmina II agem como um centro modulador para impulsos aferentes de fi­bras grandes e pequenas que terminam nessa re­gião. A área é densamente compactada com células que têm extensas conexões sinápticas com outras células da área. Os axônios da maioria dessas cé­lulas são curtos e apenas uns poucos deles se pro­jetam ao tálamo, através das colunas contrala­terais-ântero-laterais. O fenômeno clínico da anal­gesia seletiva da medula espinhal pelos opiáceos é intermediado através de receptores para opiá­ceos encontrados na lâmina II. A estimulação desses receptores leva à inibição dos disparos (descargas) das células marginais em resposta a sinais aferentes primários. Inibição se­melhante pode ser postulada com outros agentes neuroquímicos atuando sobre essa lâmina, mas é necessário mais pesquisa para delinear as com­plexas interações envolvidas no processamento desses estímulos nocivos.

Lâminas III e IV. O núcleo próprio é compos­to de neurônios situados nas lâminas III e IV. Uma das populações de células predominante no nú­cleo próprio responde a aferências de fibras A-beta, A-delta e C; esses denominam-se neurônios de ampla faixa dinâmica (wide dinamic range neurons, WDR). Embora os campos receptivos dos aferentes indi­viduais possam ser muito pequenos, o WDR cor­respondente tem um campo receptivo amplo. Os WDR se projetam ao tálamo, através do feixe ântero-Iateral.

A convergência de aferentes somáticos noci­ceptivos e aferentes viscerais nociceptivos ao mes­mo neurônio no corno dorsal provavelmente explica o fenômeno denominado dor referida. A presença da convergência vÍscero-somática, mús­culo-somática e vÍscero-visceral, observada em várias lâminas do corno dorsal, e o desenvolvi­mento de campos receptivos consideravelmente amplos em alguns desses neurônios de segunda ordem também ajudam a explicar algumas das características peculiares da dor não-somática.

Vias sensitivas ascendentes. Os neurônios de segunda ordem, que se situam nas lâminas res­pectivas dos cornos dorsais da medula espinhal, subseqüentemente, utilizam várias rotas específi­cas para conduzir suas mensagens aos centros cerebrais superiores. As rotas espe­cíficas caracterizam-se como feixes e sistemas e incluem os sistemas neo-espinotalâmico, paleoes­pinotalâmico e espinorreticular e as colunas dor­sais.

Vários outros sistemas também estão envolvi­dos na projeção rostral da informação nocicepti­va. Importantes entre esses outros sistemas seriam o sistema funicular dorsal e o intersegmental, que provavelmente também estão envolvidos na trans­missão inibitória descendente.

Processamento no tronco cerebral. O tronco cerebral está envolvido na transmissão de toda a informação ascendente e descendente. Fibras afe­rentes nociceptivas conectam-se com neurônios de projeção no corno dorsal, que ascendem no feixe ântero-Iateral para terminar no tálamo. Durante a condução rostral desses impulsos, colaterais ati­vam o núcleo reticular gigantocelular, que por sua vez envia projeções ao tálamo, bem como à subs­tância cinzenta periaquedutal.

Interconexões talâmicas. Vários grupos nu­cleares do tálamo se associam à conexão dos im­pulsos aferentes nociceptivos. Incluídos entre eles estão o complexo nuclear posterior, o complexo ventrobasilar e o complexo nuclear intralaminar medial. No tálamo, os neurônios espinotalâmicos terminam em grande parte nos núcleos ventro­póstero-lateral e centromediano. O complexo ven­trobasilar também recebe aferências das colunas dorsais. Acredita-se que o núcleo centromediano está envolvido nos aspectos qualitativos da noci­cepção, e a estimulação dessa região desencadeia o desprazer associado a lesões de tecidos. As projeções do núcleo centro­mediano são pouco compreendidas atualmente, mas, presumivelmente, ativam centros aversivos no sistema límbico.

Córtex cerebral. O córtex somatossensorial recebe aferências processadas dos sistemas espi­notalâmico, espinorreticular e das colunas dorsais, como delineado anteriormente. A maior parte da atenção se concentrou em SII como a principal região cortical envolvida na recepção e percepção de informação nociceptiva.

Modulação descendente. Até este ponto, a discussão das vias da dor esteve limitada à proje­ção rostral dos estímulos nocivos primários. A falha de um estímulo doloroso particular em pro­vocar um certo comportamento em indivíduos diferentes indica que se deva desatrelar um con­ceito simples de estímulo-resposta do processa­mento da dor. Esta desconexão do estímulo da dor e sua resposta é talvez melhor identificada ao observar a ausência de dor em alguns indivíduos feridos em batalha ou em acontecimentos esporti­vos. Um dos focos principais da pesquisa nas últi­mas três décadas foi delinear as explicações fisiológicas para estas diferenças observadas na resposta à dor. Através desta investigação, tornou­-se aparente que a discussão do ramo aferente da via da dor impõe a consideração de influências moduladoras na transmissão da dor.

A modulação dos estímulos da dor pode ocor­rer em muitos níveis diferentes de sua via. Os autores da proposta da teoria das comportas, previram a modulação da atividade de pe­quenas fibras pela presença da atividade de fibras grandes na mesma região do corno dorsal. A ati­vação cutânea das fibras aferentes grandes, atra­vés da estimulação transcutânea dos nervos, apóia esta modulação periférica no como dorsal. Além disso, demonstrou-se que a estimulação das colu­nas dorsais que imitam a ativação da inibição des­cendente inibe a descarga do interneurônio nociceptivo do corno dorsal.

Um trabalho antigo demonstrou a existência de sistemas descenden­tes com feixes longos para a modulação da ativi­dade espinhal evocada. Virtualmente, todas as vias conduzindo informação nociceptiva, incluindo os feixes espinotalâmico e espinorreticular, estão sob o controle modulador de sistemas supra-espi­nhais. A evidência experimental desta influência supra-espinhal inclui a inibição de reflexos noci­ceptivos pela estimulação elétrica ou microinje­ções de opióides em sítios do tronco cerebral, os quais são ambos reversíveis pelo naloxone.

A estimulação dos centros bulbares evita a ativação do neurônio de segunda ordem no corno dorsal ou na substância cinzenta do trigêmeo por fibras aferentes primárias, através desta inibição descendente. Além des­tas diferentes vias moduladoras que foram parci­almente caracterizadas, sem dúvida há influências inibitórias descendentes adicionais, que ainda não foram avaliadas. A continuação da pesquisa auxi­liará a esclarecer a complexa relação entre o estí­mulo doloroso e sua resposta e talvez sugerir modalidades terapêuticas adicionais que possam ser aplicadas ao tratamento da dor.


3. Neurofarmacologia

Dessensibilização periférica

Com início nos cir­cuitos locais envolvidos na detecção de estímulos nocivos na periferia após um trauma­tismo periférico, por exemplo, inicia-se uma reação inflamató­ria, incluindo a ativação do complemento, de vias de coagulação e da fibrinólise. Ocorre a liberação local de histamina, serotonina, prostaglandinas e sP. Alterações subseqüentes no ambiente local, como uma queda do pH dos tecidos, alterações na microcirculação e aumento da atividade efe­rente simpática parecem aumentar a resposta dos nociceptores periféricos.

Vários tratamentos medicamentosos foram tentados para interromper este processo periféri­co. O bloqueio da dor por drogas semelhantes à aspirina é uma dessas ações periféricas. A aspiri­na, indometacina, ibuprofen, fenilbutazona, diclo­fenaco e cetorolaco são inibidores da cicloxigenase. A cicloxigenase é a enzima responsável pela sín­tese das prostaglandinas, prostaciclinas e trom­boxanos. Todas estas substâncias endógenas foram propostas como intermediadoras da respos­ta local à dor. Os ensaios clínicos com a capsaicina também se centraram na ação perifé­rica. Foi demonstrado que essa droga esgota a sP dos terminais nervosos cutâneos. Inicialmente, o efeito é de uma dor em quei­madura, seguida pela insensibilidade a estímulos dolorosos subseqüentes.

Suspeita-se também do envolvimento do sis­tema nervoso simpático. Sabe-se que as fibras sim­páticas estão presentes em grande número, próximo aos nociceptores cutâneos. O bloqueio destas fibras simpáticas pode eliminar a dor da causalgia em alguns pacientes. A dor disestésica em queimadura e a hiperalgesia que se observa nessa síndrome, que pode ser eliminada pelo blo­queio simpático, pode reaparecer com a aplicação local de norepinefrina (noradrenalina), o neurotransmissor sim­pático.


Bloqueio nervoso

O bloqueio nervoso pode ocorrer em qualquer ponto ao longo das vias da dor. Os locais mais comuns de bloqueio nervoso são os nervos perifé­ricos, plexos somáticos e raízes dorsais. Esses blo­queios podem ser realizados com agentes de ação relativamente curta, como os anestésicos locais para a dor aguda, enquanto o bloqueio de longa duração (permanente) com álcool ou fenol pode ser mais apropriado para a dor crônica. As lesões cirúrgicas em qualquer desses pontos também têm sido sugeridas para obter a interrupção duradou­ra das vias específicas da dor. A desvantagem das técnicas permanentes é que não são específicas para as fibras da dor, nem confiáveis para os pro­blemas prolongados de dor.


Estimulação elétrica

A previsão de que a atividade de fibras longas poderia bloquear certas informações nocivas no nível do corno dorsal resultou na introdução da estimulação elétrica transcutânea dos nervos (transcutaneous electrica/ nerve stimulation, TENS). A utilidade clínica da TENS ainda tem de ser esta­belecida para as síndromes individuais de dor. A estimulação da coluna dorsal (dorsal column stimulation, DCS) excita as vias descendente inibitórias com eletricidade para obter analgesia. O êxito da DCS tem sido misto, mas pode ter lugar em certas síndromes dolorosas de deaferentização.

Drogas antiinflamatórias não-esteróides

Pensa-se atualmente que o efeito das drogas antiinflamatórias não-esteróides (A INES) em ini­bir a síntese das prostaglandinas explica suas pro­priedades de alívio da dor. As prostaglandinas, leucotrienos e tromboxanos são derivados do áci­do araquidônico, uma gordura essencial poliin­saturada. As indicações para os AINES vão do tratamento de dores, distorções e dismenorréia ao tratamento a longo prazo da artrite reumatói­de e osteoartrite, bem como doenças degenerati­vas das articulações (por exemplo, espondilite anquilosante e gota). Demonstrou-se que sua ati­vidade antiinflamatória também alivia a dor nos pacientes de câncer com metástases ósseas. Em contraste com as drogas opiáceas, não houve uma demonstração clara de uma relação entre os ní­veis no sangue dos AINES e o alívio da dor.

A maioria dos AINES pode ser classificada em um ou dois grupos, baseando-se nas suas meias-­vidas de eliminação. Os AINES no primeiro grupo têm meias-vidas entre 2 e 4 horas. O acetaminofen também está incluído nesse gru­po, a despeito da falta de propriedades antiinfla­matórias. As drogas no segundo grupo têm meias-vidas mais longas, de 6 a 60 horas. Pensa-­se que os pacientes com insuficiência renal têm risco de toxicidade devido a estes agentes, em vis­ta delas serem excretadas através do rim.

A dosagem de agentes individuais deriva do tratamento a longo prazo de doenças reumáticas e representam a atividade antiinflamatória submáxima. Embora essas doses sejam consideradas seguras para tratamento a longo prazo, a monito­rização cuidadosa dos efeitos colaterais é apro­priada. Os efeitos colaterais dos AINES incluem irritação gástrica, retenção de sais e líquidos, ini­bição das plaquetas e zumbido.


Antidepressivos

Muitas das drogas antidepressivas atuam pelo bloqueio da recaptação de noradrenalina e sero­tonina no sistema nervoso central. Este efeito tam­bém pode ocorrer no bulbo e aumenta a concentra­ção destes neurotransmissores nas sinapses en­volvidas na inibição descendente das células dos cornos dorsais. Os antidepressívos tricíclicos orais (ATC) são bem absorvidos no trato gastrointestinal. Há in­formação conflitante a respeito da existência de faixas terapêuticas para os antidepressivos. Toda a informação farmacocinética atualmente dispo­nível refere-se à atividade antidepressiva dessas drogas. O tempo necessário para a percepção do alívio da dor após a instituição dessas drogas é de apenas 2-7 dias, comparado com o tempo aceito para o efeito antidepressivo de 3-4 semanas. Essa observação sugere que mecanismos diferentes podem estar envolvidos em seu efeito analgésico e na ação antidepressiva.

Os efeitos colaterais do uso de ATC incluem efeitos autonômicos, anticolinérgicos e adrenér­gicos. Boca seca é o efeito colateral mais comum, e pode ser aliviado pelo aumento da ingesta de lí­quidos e estimulantes da saliva, como balas sem açúcar. Turvação da visão também é comum, e geralmente interfere com a leitura. A hipotensão ortostática também é comum. Os pacientes devem ser advertidos para se levantar lentamente e ficar atentos a tonturas. A constipação também foi des­crita em associação com esses agentes.

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