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A Transferência e os Roteiros de Infanticídio

Qual seria a dificuldade precípuamente intrínseca ao reconhecimento de uma cura, fazendo com que os pais “insistam” de certa forma, às vezes muito intensamente, em poder dar lugar a tal reconhecimento, uma vez que no âmbito da consciência é o que mais almejam?
Minha proposta com a realização deste trabalho é a de tocar num tema extremamente delicado, mas que se torna cada vez mais importante de ser abordado de frente pelos profissionais que lidam com a saúde, seja ela física e/ou mental. Quero deixar claro diante mão que todo o meu enfoque a ser desenvolvido estará o tempo todo referenciado pelo incrível trabalho da psicanalista Danièle Brun, intitulado "A Criança dada por morta. Os riscos psíquicos da cura", editado pela "Casa do Psicólogo".

Uma Apresentação:

"Prisioneiro de uma sala, do barulho, um homem embaralha cartas. Numa delas lê-se: "Eternidade, eu a odeio!". Em outra: "Que esse instante me liberte!"

E numa terceira carta o homem escreve: "Indispensável morte. Assim, na falha do tempo, ele caminha, iluminado pela sua ferida".

(Bonnefoy, Yves – Poemas. Paris: Gallimard, 1982.)

A Morte tem um lugar inequívoco

Para aqueles que se ocupam de pacientes considerados terminais, não é raro ouvir a queixa durante a sessão do quão ridículo é tudo aquilo frente às suas condições de vida. Acabam, muitas vezes dizendo que só continuam a análise porque ela não lhes permite pensar demais. Outros, em idênticas situações preferem pôr termo às sessões, a reconhecer pelo sentimento de impotência com o qual revestem a análise, aquele poder que lá no fundo de si próprios lhe atribuem, carregados que ficam pelos sentimentos de mudança de realidade que ela é capaz de lhes inspirar.

Mas, que mudança seria esta, parecer que a morte tem o seu lugar inequívoco?

Um bom exemplo frente a essa temática, embora não se refira diretamente à psicanálise, é quando os pais recebem a notícia sobre a cura de um câncer de um filho. Parece que sofrem de um sentimento de "irrealidade". Essa incredulidade seria proveniente de mecanismos complexos que estariam ligados à emergência de representações infanticidas. Pode ser verificado, inclusive que certos pais permanecem na doença, continuando a tratar seu filho da mesma maneira, e este se circunscrevendo numa série que vai de doença em doença, independente do grau de gravidade. O caminho que leva o "curado" a ser reintegrado no mundo dos "sãos", muitas vezes é muito longo.

Podemos pensar, então que essa finalidade reparadora dos pais em relação às suas representações infanticidas, jamais poderão ser plenamente satisfeitas. Tratar-se-ia do ressurgimento inesperado de representações recalcadas.

Assim, nos diz a autora: "O psicanalista que se compromete no tratamento com os pais não pode evitar estar profundamente implicado no luto a ser guardado por "uma criança dada como morta."

Violência do psicanalista, volência feita ao psicanalista

No que concerne à representação infanticida que devemos ressaltar, notamos que esta geralmente está fadada à censura e ao recalcamento, senão à rejeição e, que emerge na relação como a face oculta de todos os pensamentos conscientes relativos à morte potencial da criança cancerosa. Seja qual for a maneira pela qual sejam dirigidos os pedidos que originam um processo de análise, é importante enfocarmos primeiramente a estrutura do casal mãe-filho, onde incidirão a maior parte das trocas. A entrada num trabalho analítico poderá, então ser decidida inicialmente com a mãe, porém a prática demonstra que este é um compromisso de curto prazo, caso não se consiga traduzir em palavras os vínculos que para ela se tecem entre a descontinuidade e a morte.

Isso ocorre porque ela não vê a hora de acabar com a doença e com o medo da morte, e o fato de ter tomado conhecimento da cura, não lhe proporciona um grande alívio por não aceitar que está tomada pela imagem da "criança dada como morta". Ela não aceitaria a sua impotência em afastar essa imagem que ao mesmo tempo a acusa e a aterroriza, sendo que com bastante freqüência , ela prefere afastar-se do psicanalista. Aqui o movimento parece ser que a descontinuidade em relação à responsabilidade atesta a violência dos movimentos de inversão produzidos pela atualização das angústias de separação de origem infantil. Ela se torna o agente e não mais a vítima da separação.

Segundo Danièle Brun "esse é um dos riscos da transferência que se estabelece na relação com aquela que colocou no mundo uma criança que acreditou perder e, que para ela, continua marcada pelo selo da morte. Aqui podemos reconhecer um movimento identificatório da mãe com a criança.

Uma mãe diz a uma terceira pessoa sobre os seus primeiros contatos com a psicanalista: "eu me vi dsconcertada, uma vez que a solicitação era a de que eu falasse sobre mim mesma e de nada mais". Pareceria tratar-se de ter de evacuar a criança real, para ter acesso à criança em si mesma. Imaginar-se a si mesmo criança sob os traços da criança de quem vimos falar, seria da responsabilidade do psicanalista que faria surgir a descontinuidade, isto é, o pensamento da separação, da morte, da ruptura.

Quanto ao interesse médico, parece não restar a menor dúvida, uma vez que ele coloca à disposição todo o arsenal terapêutico de que dispõe. Já quanto ao psicanalista, podemos perceber que este trabalha de "mãos vazias". O psicanalista não teria nada melhor a oferecer à paciente do que remetê-la ao eco de suas próprias palavras? Sendo assim, a paciente tem boas razões para sentir-se sozinha.

A Representação da criança dada por morta

Ao se encontrar no sentimento atual de solidão, vestígios de uma forma de solidão antiga, entendemos que esse fato requer um grande fôlego. Essa solidão, entendemos como resultante, na relação transferencial, da anulação do outro enquanto semelhante. Entendemos que esse movimento poderia ser representado nos seguintes termos: "Eu sou a mãe da criança que (…) e você não é, logo você não pode saber o que é isso". Nenhuma imagem exterior pode então ser reconhecida como nem mesmo comparável àquela que se faz de si. Retomando os dizeres da autora: "Assim, numa conjuntura tão excepcional como a do câncer, para se utilizar o modelo da situação analítica e fazer aparecer o componente fantasmático de uma realidade crua demais, continua sendo indispensável enveredar por estes desvios para constatar a mobilidade de que é objeto a identidade da criança doente: transposições e mutações nas fantasias daqueles que a doença reúne à sua volta."

O modelo da situação analítica

Essa conjuntura foi extremamente trabalhada por Pièrre Fédida, tendo este autor referido-se a ela como uma "complicação psicanalítica". Assim, "o pedido de comunicação e de compreensão" da parte daquele que, apresentando-se como paciente, desafia o psicanalista a ajudá-lo efetivamente. Esses impasses, costumam dar ao psicanalista a impressão de um desafio em relação à psicanálise. É possível responder a esta afirmação sem deixar de levar em consideração as resistências do analista, suas defesas, suas próprias dificuldades em deixar a transferência se instalar? Fédida sugere um distanciamento, que não significa o desinvestimento do paciente e nem a sua objetivação. Assim ele sugere que possa se instaurar um espaço, no qual as palavras se tornariam audíveis. Fédida nos convida a um desvio, à incitação à mobilidade do pensamento a fim de se desprender do fascínio exercido por determinados pacientes, fascínio este, paralisante, uma vez que entrava a lembrança, a identificação. Assim, não é raro que "determinados casos se apresentem num tal estado de desamparo, que o recurso a uma psicoterapia tem algo de completamente desesperado".

A Maternidade da criança

É sabido que foi Sandor Ferenczi, o primeiro a expor roteiros de infanticídio, mesmo que fosse ainda de maneira muito incipiente. Em sua descrição sobre o sonho do "bebê-sábio", nos diz Ferenczi: "Fiz uma breve comunicação concernente à relativa freqüência de um sonho típico, o qual denominei do sonho do "bebê-sábio. Trata-se de sonhos onde um recém-nascido ou um bebê, de repente começa a falar e dar aos pais, conselhos". Sabemos que Ferenczi também sempre foi muito atento aos gestos realizados por seus pacientes, além de que, desenvolvendo o conceito de auto-clivagem narcísica, Ferenczi consegue evitar qualquer questão sobre o significado do sonho na transferência.

É ao médico que, num primeiro momento, os pais dirigem o apelo e a implícita acusação. Caberá ao psicanalista retomar esse pedido sob sua responsabilidade, nunca devendo desrespeitar a acusação que ela contém.

Queremos acrescentar, que o bebê-sábio que Ferenczi retomou por várias vezes, foi incorporado na análise de Conrad Stein sobre a mesma problemática. Stein considera que se nada permite pensar que Ferenczi pensou em atribuir-lhe esse status, seria conveniente considerar o bebê-sábio como sendo "um mito de origem capaz de explicar o destino de cada um de nós", devido ao ódio que o constitui. Assim, diz esse autor: "Enquanto bebê-sábio, o homem surge no ódio, desconhecido, larvado, ódio recalcado cujo conceito é idêntico, talvez, ao de 'culpa inconsciente'. Sujeito passivo de um ato de violência, ele surge odiando a si mesmo, com um ódio inerente ao conhecimento, que ele deve por em ação para poder cuidar de si mesmo. Em outros termos, para sobreviver, ou talvez simplesmente para viver".

Jean Laplanche também se interessou por essa temática e é a ele que ora vamos prestar ouvidos. Ele considera que "Confusão de línguas entre adultos e crianças" de Ferenczi, se constitui num verdadeiro prefácio à "Teoria da sedução generalizada", cujas principais linhas já tinham sido esboçadas por Freud, antes de 1987.

O lugar ocupado pela perda na concepção do recalcamento proposta por Jean Laplanche, também merece ser destacada. Laplanche acaba vislumbrando conjuntamente os efeitos da perda devido ao recalcamento em ação desde a infância, no próprio sujeito e os que resultam das forças de recalcamento nos adultos que rodeiam as crianças. É isso que lhe dá a impressão de apresentar a interpretação em termos de retirar um contínuo "da obscuridade e que outra coisa não é senão o próprio inconsciente". Diz-nos Jean Laplanche: " Aí está a fortaleza, ou melhor, aí está a fechadura cuja chave foi perdida. Mas antes de ter sido perdida pelo próprio sujeito, no processo de recalcamento, ela foi perdida, de maneira mais fundamental, pelo outro adulto, o outro da sedução originária. Perdida para sempre para a criança".

Se formos ao âmago dos argumentoa lançados por Jean Laplanche, encarnando o adulto na transferência, incapaz de compreender por si mesmo os enigmas relativos a questão das origens, e de revestir-se da responsabilidade de uma representação infanticida ante partum. Na verdade este seria o risco último da reprodução, durante o tratamento, de um confronto entre a criança e o adulto no modelo do confronto apresentado por Ferenczi e que ilustra o sonho do "bebê-sábio". Sabemos que este confronto embasa Jean Laplanche para definir uma situação primordial de

"'sedução originária' (…), na qual o adulto propõe à criança significantes não-verbais, além de verbais, e até mesmo comportamentos impregnados de significados sexuais inconscientes".

Deixamos a questão para a reflexão dos colegas, aos quais me coloco à disposição para discuti-las:

Se, diante da doença, tudo o que objetivamos conscientemente é a cura plena, por que é tão difícil sairmos deste estado quase de uma certeza irremovível sobre a impossibilidade da cura real da criança em questão?

Quais seriam as origens dessas fantasias infanticidas dos pais em relação aos próprios filhos?

Em "Introdução ao Narcisismo", Freud usa a expressão de "sua majestade o bebê", majestade esta que estaria , inclusive a serviço de uma tentativa de recuperação do narcisismo dos próprios pais da criança. Nesse sentido, por que seria tão difícil, restituir "sua majestade" ao trono, mantendo-o e o conservando na posição de "sua majestade" o doente?

Ou, será que o culto, mais do que ao bebê doente, seria "à doença", encarnada por este personagem específico, mas não criado por ele?

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