Admitindo que esteja certa a premissa de que só uma mudança fundamental no caráter humano, de uma preponderância do modo ter para um modo de existência predominantemente ser, pode salvar-nos de uma catástrofe humano-ambiental, surge a questão:
Será possível uma mudança de caráter humano em grande escala? Em caso positivo, como poderá ser feita?
Sugiro que o caráter humano pode mudar se existirem as condições seguintes:
1. Estamos sofrendo e temos consciência desse sofrimento.
2. Reconhecemos a origem do nosso mal-estar.
3. Reconhecemos haver um modo de superar nosso mal estar.
4. Aceitamos que a fim de superar nosso mal-estar devemos seguir certas normas de vida e mudar nossa atual maneira de viver.
Esses quatro pontos correspondem às Quatro Nobres Verdades que constituem a base dos ensinamentos de Buda que tratam da condição geral da existência humana, embora não de casos de mal-estar humano devidos a circunstâncias individuais ou sociais específicas.
O mesmo princípio de mudança que caracteriza os métodos de Buda também está subjacente à idéia de Marx da salvação.
Para compreender isto é necessário ter em mente que, para Marx, como ele mesmo declarava, o comunismo não era uma meta final, mas um passo no desenvolvimento histórico no sentido de libertar os seres humanos daquelas condições socioeconômicas e políticas que tornam as pessoas desumanas – prisioneiros das coisas, das máquinas, e de sua própria ambição.
O primeiro passo de Marx foi mostrar à classe trabalhadora do seu tempo, a classe mais alienada e miserável, que ela sofria. Ele empenhou-se em destruir as ilusões que tendiam a ocultar dos trabalhadores a consciência de sua infelicidade. Sua segunda medida foi mostrar as causas desse sofrimento, que ele assinala estarem na natureza do capitalismo e no caráter de ambição e avareza bem como dependência que o sistema capitalista produz. Essa análise das causas do sofrimento dos trabalhadores (mas não apenas do sofrimento deles) contribuiu para o principal empreendimento da obra de Marx, a saber, a análise da economia capitalista.
O terceiro passo foi demonstrar que o sofrimento podia ser afastado se fossem afastadas as condições do sofrimento. No quarto passo ele mostrava o novo estilo de vida, o novo sistema social que seria isento de sofrimento, inevitável no antigo sistema.
O método terapêutico de Freud era essencialmente semelhante. Os pacientes consultavam Freud porque sofriam e estavam conscientes de que sofriam. Mas em geral eles não estavam conscientes do mal de que sofriam. A primeira tarefa do psicanalista é ajudar o paciente a abandonar suas ilusões sobre o sofrimento e fazê-Ios saber de que consiste realmente a sua doença. O diagnóstico quanto à natureza do mal-estar individual ou social é uma questão de interpretação, e vários intérpretes podem diferir. Em geral, o dado menos importante para o diagnóstico é o próprio relato pelo paciente daquilo que ele julga ser a sua doença. A essência do processo psicanalítico é ajudar os pacientes a se tornarem conscientes das causas de sua doença.
Em conseqüência desse conhecimento, os pacientes podem chegar à fase seguinte: a intuição de que sua doença pode ser curada, desde que sejam removidas as suas causas. Ao ver de Freud, isso significava desimpedir a repressão de certos fatos ocorridos na infância. No entanto, os psicanalistas tradicionais parecem não concordar em essência quanto à necessidade do quarto ponto. Muitos psicanalistas parecem pensar que, por si, a introvisão (insight) do que foi reprimido tem um efeito curativo.
De fato, isso freqüentemente acontece, especialmente quando o doente sofre de sintomas circunscritos, tais como dissociativos ou obsessivos. Mas não creio que se possa conseguir algo durável por parte de pessoas que padecem de um mal-estar geral, e daqueles em que se torna necessária uma mudança de caráter, a menos que mudem seu estilo de vida de acordo com a mudança de caráter que desejam conseguir.
Por exemplo, pode-se analisar a dependência de indivíduos interminavelmente, mas tudo o que se conseguir saber de nada valerá se eles permanecerem na mesma situação prática em que vinham vivendo antes de conseguirem esse conhecimento. Uma mulher cujo sofrimento decorre da dependência para com o pai, muito embora tenha penetrado fundo nas causas da dependência, de fato não mudará a menos que mude seu estilo de vida, afastando-se do pai, não aceitando seus favores, assumindo o risco e dor que essas medidas práticas no sentido de independência possam implicar. A introvisão sem a prática será sempre ineficaz.
Um novo Homem, Oxalá!
A função da nova sociedade é favorecer o surgimento de um novo homem, de seres cujo caráter exiba as qualidades seguintes:
. Disposição a abandonar todas as formas de ter, a fim de plenamente ser.
. Segurança, sentido de identidade e confiança com base na fé do que se é, na necessidade de relacionamento, interesse, amor, solidariedade com todo o mundo circundante, em vez do desejo de ter, possuir, controlar o mundo e assim tornar-se escravo das coisas possuídas.
. Aceitação do fato de que ninguém e nada fora de nós dá significado à vida, mas que esta independência e desinteresse podem tornar-se a condição para a mais plena atividade dedicada a cuidar e participar.
. Estarmos plenamente presentes onde estivermos.
. Alegria proveniente do dar e participar, e não do acumular e explorar.
. Amor e respeito pela vida em todas as suas manifestações, no conhecimento de que não as coisas, o poder, tudo o que é inerte, mas a vida e tudo o que é próprio a seu crescimento é sagrado.
. Tentar diminuir a ambição, o ódio e as ilusões tanto quanto possível.
. Viver sem adorar ídolos e sem ilusões, porque já se chegou a um ponto que não exige ilusões.
. Desenvolver a capacidade de amar, juntamente com a capacidade crítica, e de pensamento não emocional.
. Abandonar o narcisismo e aceitar as trágicas limitações inerentes à existência humana.
. Adotar como o supremo objetivo da vida o pleno crescimento de nós mesmos e dos nossos semelhantes.
. Saber que para atingir esse alvo é necessário disciplina e respeito pela realidade.
. Saber que nenhum crescimento é salutar se não ocorrer em uma estrutura, mas saber, também, a diferença entre estrutura como um atributo da vida e "ordem" como atributo do inanimado, do inerte.
. Desenvolver a imaginação, não como uma fuga de circunstâncias intoleráveis, mas como previsão de possibilidades reais, como meio de afastar circunstâncias intoleráveis.
. Não iludir a outros, mas também não ser iludido por outros; pode-se ser chamado inocente, mas não ingênuo.
. Conhecermo-nos a nós mesmos, mas não o eu que conhecemos, mas também o eu que não conhecemos – muito embora tenhamos um vago conhecimento do que não sabemos.
. Sentir nossa identidade com a vida, e, com isso, abandonar o objetivo de conquistar a natureza, subjugando-a, explorando-a, violentando-a, destruindo-a; mas tentando, ao invés, compreender a natureza e cooperar com ela.
. Liberdade que não se confunde com gratuidade, mas a possibilidade de sermos nós mesmos, não como um feixe de desejos ambiciosos, mas como uma estrutura delicadamente equilibrada que a qualquer momento se defronte com a alternativa de decair, viver ou morrer.
. Saber que o mal e a destrutividade são conseqüências inevitáveis do fracasso em evoluir.
. Saber que apenas uns poucos conseguiram perfeição em todas essas qualidades, mas não ter a ambição de "atingir a meta", cônscio de que essa ambição é apenas outra forma de desejar ardentemente, de ter.
. Felicidade no processo de aumentar sempre o espírito de vida, seja a que ponto se consiga chegar, porque viver tão plenamente quanto se possa é tanto mais satisfatório quanto a preocupação pelo que se pode ou não se poderia conseguir tem pouca probabilidade de se revelar.
Não é objetivo deste artigo sugerir que as pessoas que vivem no industrialismo cibernético e burocrático contemporâneo – seja na versão "capitalista" ou "socialista" – possam romper a forma ter de existência e aumentar o domínio do ser. De fato, tarefa deste porte exigiria um tratamento específico, que se poderia adequadamente intitular A Arte de Ser. Alguns livros são valiosos, e muitos outros são nocivos por sua falsificação, explorando o novo mercado que abastece as pessoas desejosas de livrar-se de seus males. Alguns livros valiosos podem ser de real ajuda a quem tenha sério interesse no problema de conseguir o bem-estar.
You may say I'm a dreamer…
Um lindo Natal para todos.