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História Cultural da Psiquiatria – parte I

1. Sistemática historiográfica da Psiquiatria

A importância qualitativa e quantitativa da psiquiatria denota que nos encontramos ante uma disciplina que não é simplesmente uma especialidade médica a mais. Sua distinção qualitativa mais peculiar consiste em ser o ramo humanista, ou antropológico, por excelência da medicina. Por isto, al­guns antigos autores tenham equiparado a psiquiatria à "medicina fi­losófica" e as universidades anglo-saxônicas chamem-na, hoje, de "Departamento de Medicina Psicológica" à Seção de Psiquiatria.

Medicina filosófica no sentido antigo e medicina psicológica, ou antropológica, no moderno, são termos que aludem às três peculiaridades da psiquiatria: ocupar-se primordialmente do Homem enfermo tomado em sua totalidade, abarcando especialmente os aspectos psicológicos, centrar a investigação no método fenomenológico e não prescindir nunca da psicoterapia.

Uma recente nota historiográfica de López Ibor, que foi meu mestre em Madri, atualiza estas questões na perspectiva histórica. O primeiro que usou o termo "psiquiatria" foi Weikard, em um livro sobre "O mé­dico filósofo" (Der philosopher Arzt), publicado em 1782 em Leipzig. Assim o diz Heinroth no "Lehrbuch der Störungen des Seelenlehens", que veio à luz em 1818, também em Leipzig. "Weikard falava de ‘medicina fi­losófica' e a citação de Heinroth não se pode deduzir se realmente o termo "psiquiatria" se encontra no livro de Weikard. O fa­moso escrito de Kant no qual reclama às Faculdades de Filosofia o direito de determinar se um indivíduo haja ou não perdido a razão".

Até meados do século XX, considerava-se Reil como o inventor da palavra psiquiatria, fato ocorrido há uns duzentos anos. No livro pu­blicado em 1808 por Reil & Hoffbauer se estabelece a divisão da medi­cina em três grandes disciplinas: a cirurgia, a medicina interna e a psi­quiatria. À psiquiatria corresponderia atender aos aspectos psíqui­cos do homem enfermo, sendo seus objetos específicos a histeria e a hi­pocondria.

Na linha de importância quantitativa da psiquiatria deve se assina­lar que todos os enfermos têm aspectos psíquicos, tributários da medicina psicológica. Aspectos psíquicos, de estirpe etiopatogênica umas vezes, outras, sintomatológica. Entre os últimos haveria que enumerar a frustração e os sofrimentos implicados na doença e a atitude do sujeito ante a enfermidade, do que depende o modo de vivê-la. Todas estas atividades próprias da medicina psicológica devem ser compartilhadas pelos psiquiatras e pelos médicos internistas e de outras es­pecialidades. Além disso, a psiquiatria tem um campo próprio, de uma exten­são verdadeiramente extraordinária. Aproximadamente, 50% dos leitos hospitalares do mundo estão ocupados por enfermos psíquicos e os problemas mais importantes de 40% dos enfermos que acodem às consultas dos médicos gerais são problemas psiquiátricos.

A peculiaridade histórica mais importante da psiquiatria é a de ser um dos ramos mais jovens da medicina: por razões muito vinculadas aos gregos, sobretudo a Galeno, que em seus estudos parece haver pres­cindido das enfermidades psíquicas, o estabelecimento da psiquiatria como ciência, ao menos como ciência no sentido moderno, aconteceu uns dois séculos depois do início científico das demais disciplinas médicas.

Na história da psiquiatria, igual a outros ramos da medici­na, pode se distinguir três etapas ou eras: a era pré-técnica, que compreende das origens da Humanidade até a Grécia dos séculos VI e V aC; a que se inicia com os antigos gregos e se estende até aquele umbral da Idade Moderna que sinaliza uma transformação autenticamente científica da disciplina, caso se queira um renascimento da atividade científica; e a era moderna, que se inicia com este renascimento e chega até nossos dias.

Estas duas últimas eta­pas integram a era técnica com as denominações de "concepção antiga da técnica" e "concepção moderna da técnica". A modernidade em Medicina, da mesma forma que em outras ciências atravessa estas seis situações sucessivamente: Renascimento, Barroco, Iluminismo, Romanti­smo, Positivismo e Atualidade. O Renascimento científico da psiquia­tria acontece por entre os séculos XVIII e XIX, quando Pinel lhe introduz o método experimental e desterra por princípio a especulação gra­tuita.


2. A Psiquiatria nas Antigas Culturas

Na concepção mágico-animista ou demonológica própria das anti­gas civilizações (Índia, China, Mesopotâmia, Egito e vai por aí), a maior par­te das enfermidades, e especialmente os transtornos psíquicos, se atribuem à possessão de maus espíritos ou a influências da feitiçaria ou da bruxaria. A terapêutica prevalente entre as primeiras culturas tinha um franco caráter mágico-religioso, cujos ritos mais utilizados eram a invo­cação de espíritos, os cantos, as danças e certas fórmulas mágicas. Esta terapia ritual produzia benefícios a muitos enfermos, por um mecanismo exclusivamente psicológico, principalmente pela sugestão e al­gumas vezes por catarse.

Além desta terapia etiológica, que trata de neutralizar o determinan­te demonológico da enfermidade, os chamados povos primitivos usavam meios de terapia física (sobretudo a massagem) e terapia química (algumas drogas naturais nem sempre ineficazes), e mais raramente inter­venções cirúrgicas.

O estudo da morbidade e da forma das distin­tas enfermidades psíquicas no seio das culturas primitivas ou em fase de aculturação, entendendo por aculturação o momento histórico de um povo em que sua cultura própria está sendo absorvida por uma cultura estranha, oferece um particular interesse para a psiquiatria comparada transhistórica e transcultural.

O autor que vos escreve, já foi partidário da tese da psicose única, mas há tempos vem observando a existência de algum parentesco conceitual entre esta tese e a concepção dos povos em fase cultural primitiva, segundo a qual não há en­fermidades, senão enfermidade. A concepção pluralista haver-se-ia de impor depois. Isso era lógico e esperável, já que uma das tarefas primordiais na ciência é a de nomear e classificar. Uma ciência é uma terminologia, já se disse alguma vez.

O antecedente de alguns dados científicos gregos se encontra nos egíp­cios. Assim ocorre com o conceito patogênico da histeria, palavra derivada do grego, que significa "enfermidade da matriz" (hysteron = útero). Esta concepção patogênica e topológica da histeria que os gregos in­corporam aos seus saberes, encontra-se já no papiro egípcio de Kahun, que remonta ao século XX aC, e contém descrições de estados patológicos, ao que tudo indica, histéricos, que se atribuem ali aos movimen­tos do útero que atuariam comprimindo outros órgãos.

Dos egípcios procede a idéia de que o útero é um organismo viven­te autônomo que tem a propriedade de deslocar-se pelo interior do corpo. Para assentar o útero no seu devido lugar, este papiro, como, também no de Ebers, do século XVI aC, recomenda o emprego de defumações va­ginais com plantas aromáticas que atrairiam o útero para baixo e a inges­tão ou inalação de outras sustâncias menos agradáveis para expulsá-lo de cima do corpo. É curioso que o uso destes meios haja subsistido por quarenta séculos, pois em 1910 alguns tratados de farmacologia incluem no tratamento da histeria as defumações vaginais com valeriana, ou algum suco fétido para aspirar.

3. Psiquiatria Greco-Romana

O maior mérito psiquiátrico dos gregos foi haver ligado os transtornos psíquicos a uma origem natural, já que as culturas mais antigas, inclusive a do próprio Egito, quando muito alternavam o critério natural com o sobrenatural. Naturalmente, este mérito corresponde à medicina ofi­cial, pois em outros âmbitos culturais continuava imperando a concepção má­gico-religiosa da doença. A idéia greco-romana dos transtornos psíquicos haveria de subsistir até fins do século XVIII dC.

Nas obras atribuídas a Hipócrates se encontram as primeiras des­crições clínicas indiscutíveis da histeria. Hipócrates e outros autores gregos, para explicar o determinante dos deslocamentos uterinos, recorrem à idéia da falta das relações sexuais. Nesta situação o útero se desidrataria, perdendo peso, de tal modo que poderia subir até o hipocôndrio ou até o coração, por sua leveza.

Como meios profiláticos ou tera­pêuticos recomendam os já utilizados pelos egípcios e o casamento para as jovens e viúvas. Sugere-se, deste modo, pela primeira vez a existência de um vínculo etiopatogênico entre a sexualidade e a histeria, vínculo que continua sendo estudado, e o valor terapêutico do casamento, idéia que subsiste com um matiz mais ou menos popular em alguns países.

Para Hipócrates, a epilepsia não é uma doença sagrada: "Com re­lação à chamada doença sagrada, não me parece que seja em nada, mais divina nem sagrada que as demais doenças, mas que tem como elas uma causa natural".

Hipócrates se esforça em formular claramente o diagnóstico diferencial entre a histeria convulsiva (doença do útero) e a epi­lepsia (doença do cérebro). Apesar de tudo, as contribuições psiquiátricas de Hipócrates, cuja linha de pensamento é seguida fiel­mente pela medicina greco-latina, são escassas. Para Pinel o fator res­ponsável pelo escasso desenvolvimento científico da psiquiatria até fins do século XVIII é a falta de interesse de Galeno pelo estudo dos transtornos psíquicos. Mas os historiadores da psiquiatria não puderam resolver definitivamente se esta pobreza documental é autêntica, ou se se deve à perda dos manuscritos.

Os principais escritos desta época sobre a psiquiatria pertencem a Celso, Areteo de Capadocia, Sorano de Éfeso e Galeno. Estes autores compartilham, aproximadamente, o mesmo sistema nosológico no campo das enfermidades psíquicas.

Celso, enciclopedista romano, continuava definindo a histeria no pri­meiro século da era cristã como "a enfermidade da matriz" e suge­ria tratá-la com sangrias, método que haveria de tomar, posteriormente, um grande desenvolvimento. Também escreveu extensamente sobre o trata­mento da mania e da melancolia.

Areteo de Capadocia, em 150 dC, faz algumas considerações sobre a mania, a melancolia, a frenite e a histeria. Falava da histeria seguindo a linha de Hipócrates e Platão – que assim havia se expressado: "O útero é um animal que deseja engen­drar filhos. Quando permanece estéril muito tempo depois da pu­berdade, torna-se inquieto, e avançando através do corpo e cortando o caminho do ar, transtorna a respiração, provoca grandes sofrimentos e to­das as espécies de enfermidades"-. Mas Areteo pouco falava da histeria, para ele, como para Celso e Sorano, haveria três tipos de enfermidade mental: a mania, a melancolia e a frenite, e a causa das três residiria em fatores corporais. Imperava, assim o critério somaticista. Critério que leva Areteo a estudar a histeria no capítulo das infla­mações e das hemorragias do útero, e menciona, da mesma forma, a histe­ria masculina, como um estado de catalepsia, no qual o enfermo, ainda ­que consciente, não pode mover-se, nem falar.

Sorano de Éfeso escreve em 100 dC, duas impor­tantes obras sobre as enfermidades agudas e as crônicas. Nas primeiras inclui a frenite. Nas segundas, a mania e a melancolia. A frenite (termo que significa "inflamação do diafragma") equivaleria hoje ao quadro chamado delírio onírico. A mania, enfermidade da cabeça, compreendia, sobretudo, distintos quadros esquizofrênicos com agitação psicomoto­ra. A melancolia seria uma enfermidade do tubo digestivo que se manifes­ta por um quadro depressivo. Sorano faz uma contribuição no campo da histeria, descrevendo-a como uma convulsão generalizada, de duração breve e não acompanhada de amnésia, dado que permitiria o diagnóstico dife­rencial com outros estados análogos, em particular com a epilepsia.

Sorano, fiel aos princípios solidistas da Escola Metódica a que per­tence, atribui as referidas enfermidades à patologia das partes só­lidas do organismo, mas quase nunca citando o cérebro. Para ele somente existe uma enfermidade propriamente psíquica: a homossexualidade.

A terapêutica psiquiátrica utilizada pelos autores greco-latinos con­sistia em massagens, dieta alimentar, sangrias e tratamentos locais, sobretudo fricções com azeite morno, da cabeça ou do abdome.

Para Galeno, a tese da migração da matriz como determinante da histeria era ridícula. A continência sexual originaria a retenção de um líquido seminal feminino, análogo ao esperma, o qual provoca­ria a corrupção do sangue e, assim, a irritação dos ner­vos e a produção de convulsões. Desta forma se estabeleceria a histeria femini­na, segundo Galeno. A masculina viria da retenção de esperma. A histeria, segundo Galeno, teria uma etiologia sexual-bioquímica e não erótica nem sexual-mecânica como havia apontado Hipócrates, idéia também susten­tada por Freud com relação à etiopatogenia das neuroses, propriamen­te ditas.

4. Psiquiatria Medieval e Renascentista

O rumo da psiquiatria na Idade Média é mal conhecido. O pouco que se sabe tem um marco negativo: seu exercício passa outra vez, perdendo a tradição grega, às mãos dos magos, exorcistas e persegui­dores de bruxas e feiticeiros, ainda que possa supor-se, por outro lado, que a concepção naturalista dos transtornos psíquicos tenha subsistido em cer­tos setores sociais. A Idade Média foi para a psiquiatria, igualmente o que foi para outras disciplinas e ciências, uma autêntica Idade das Trevas.

O pouco que os gregos sabiam, se perdeu e se produziu uma imensa recaída em estádios culturais mais primitivos. O cronos dos tempos (o re­lógio da história) se atrasou mil anos. E durante mais de um milênio os doentes mentais foram, outra vez, considerados mais como possessos pelo diabo ou por maus espíritos, ou bruxas e mestres de feitiçaria que, além disso, provocavam as doenças nos demais.

O caráter anti-científico da Idade Média, foi atribuído muitas vezes a estes dois efeitos sócio-culturais do escolasticismo: a reverência pela autoridade e pela palavra escrita e o desenvolvimento do método dedutivo do pensamento. (A obra Instauratio Magna ou Novum Organum publicada por Bacon em 1620, é a um só tempo uma defesa do método indutivo e um ataque contra Aristóteles e o raciocínio deduti­vo). Vale a pena refletir sobre os aspectos sociais da Idade Média que proporcionou ao homem ocidental um grau de equilíbrio e uma espécie de segurança sociais, que são sumamente raros no Ocidente de hoje.

A degradação medieval da psiquiatria se estende até os primeiros séculos da Idade Moderna.

Neste tempo destacam-se, contudo, alguns médicos árabes. Razés (865-925) e Avicena (980-1037) brilham especialmente por seu grande talento clínico que lhes levou, inclusive, a praticar a psicoterapia, naturalmente, uma psico­terapia primitiva, e valorizar a intervenção dos fatores psicológicos nas doenças.

No século XII, outros médicos árabes: Avenzoar (1113-1162) e seus discí­pulos, Averroes (1126-1198) e Maimônides (1135-1204), se mostram muito especulativos e influem profundamente sobre a mentalidade de seu tempo, mais por suas obras filosóficas, que pelas médicas.

O Renascimento, que se inicia em 1453 com a tomada de Constantinopla (hoje Istambul) pelos turcos e vai até fins do século XVII, é cenário de uma perseguição dos doentes psíquicos muito mais cruenta que na Idade Média. O exorcismo medieval foi substituído pela fogueira. No Renascimento se realiza a crônica negra da psiquiatria.

Em 1494, os dominicanos alemães Krämer e Sprenger publicam o céle­bre Malleus Maleficarum (O martelo das bruxas), livro que se ocu­pa, sobretudo, de descobrir as bruxas e os feiticeiros. As re­lações entre a "caça às bruxas" e a histeria não estão ainda muito claras. Por isso, que é difícil determinar que proporção de mulhe­res acusadas e queimadas por bruxaria apresentavam, na realidade, manifestações histéricas.

O Malleus, escrito com a típica meticulosidade germânica é, ao mesmo tempo, um texto de pornografia e psi­copatologia. De fato, todo o livro se acha repleto das orgias sexuais pornográficas que tinham lugar entre os demônios e seus hóspedes huma­nos. Esta bíblia dos caçadores de bruxas dirigida contra hereges, doentes mentais e mulheres de todas as idades, foi responsável pela morte na fogueira de centenas de milhares de mulheres e crianças.

Produzia-se, assim, um movimento misógino por considerar a mulher como o instrumento utilizado pelo demônio para provocar paixões no homem. Os autores do Malleus, se incorporam a este movimen­to trazendo a idéia de que a mulher provém da costela inferior de Adão e daí sua imperfeição física e mental.

Ante os juízes, as "bruxas" deviam comparecer totalmente nuas e com o púbis depilado. Assim, podia ter-se a segurança de que não le­vavam nenhum demônio escondido no genital.

Entretanto, paradoxalmente ocorrem alguns fatos de significação extraordinariamente positiva.

Em primeiro lugar, a Primeira Revolução Psiquiátrica que consistiu na fundação do primeiro hospital psiquiátrico do mundo, ao menos o primeiro de que se tem referências seguras, em Valencia, em 1409, pelo padre Fray Juan Gilbert Jofre, com uma intenção humanitária e assistencial.

Um estabelecimento onde os "loucos" e inocentes puderam ser recolhidos e atendidos de modo cristão e não andassem pelas ruas, fazendo ou recebendo danos. Assim falava Fray Jofre do púlpito da catedral va­lenciana na manhã de 24 de fevereiro de 1409, sob a impressão de haver presenciado momentos antes como um enfermo mental era insultado, golpea­do, apedrejado e escarnecido por um grupo de rapazes. A prática deu resultado: naquele mesmo ano criou-se o "Hospital dos loucos e inocentes", que depois se chamou "Hospital Geral" e constitui hoje o "Hospital Pro­vincial de Valencia". Em continuação se criam uma série de estabelecimentos hospitalares psiquiátricos em Espanha: o de Zaragoza em 1425, os de Sevi­lIa e ValIadolid em 1436, o de Barcelona em 1481, o de Toledo em 1483 e o de Granada em 1507.

Também foi um espanhol que criou o primeiro hospital psiquiátrico do continente americano: Bernardino Alvarez de Herrera, ex-sol­dado e ex-conquistador e penitente, que em 1567 cria no México o Hospital de San Hipólito. Fray Bernardino nasceu em Utrera (Sevilla).

Admite-se hoje três Revoluções Psiquiátricas da Idade Moderna como tendo uma raiz dupla: a Primeira consistindo na fundação dos hospitais espanhóis e a supe­ração parcial da concepção demonológica nos escritos de Weyer e Pa­racelso; a Segunda, nas contribuições de Kraepelin e Freud, e o autor, ainda acrescentaria aqui Karl Jaspers (seu "guru"), verdadeira alma mater da metodologia psiquiátrica; e a Terceira, que tem o marco misto da psicofarmacologia e da socioterapia ou psiquiatria social.

Outras duas grandes figuras espanholas do Renascimento foram Luis Vives (1462-1520) e Huarte de San Juan (1530-1592). Vives foi um huma­nista que devotou um espírito de compreensão para os enfermos psíquicos. Suas contribuições à pedagogia e à psicologia se condensam em sua obra, Trata­do de la enseñanza. Em sua obra Examen de los ingenios, man­tém a tese de que as pessoas devem selecionar-se e orientar-se profissio­nalmente segundo os dotes que tenham os indivíduos.

Também no século XVI, San Juan de Dios, simula uma enfermidade psí­quica em Granada para conseguir ser internado no Hospital Psiquiátrico e conhecer diretamente os defeitos assistenciais e tratar de remediá-los.

Paracelso (1491-1541) comoveu a Europa com suas andanças e escritos. Com relação ao demonológico oferece opiniões contraditórias. No livro Sobre las enfermedades que privan de Ia razón, expressa as enfermidades psíquicas não se devem aos maus espíritos, mas a causas de ordem natural. Em outros livros, De las enfermedades invisibles e So­bre los locos, seus pontos de vista são opostos: no último deles advoga por entregar os enfermos ao fogo para evitar que cheguem a ser um instru­mento do demônio. Paracelso se mostra assim, como realmente era: um destruidor de arcaicos dogmas e um descobridor de novos caminhos; um mago medieval e um exuberante produtor de confabulações.

Sua contribuição psiquiátrica concreta mais importante se dá na coréia ou dança lasciva. Pelo fato de iden­tificar a etiopatogenia desta doença com uma psicogênese no inconsciente e a intervenção, sobretudo de fantasias, Paracelso é considerado como o descobridor do papel do inconsciente na patogenia das neuroses.


5. Psiquiatria Barroca

A Psiquiatria do Barroco (1600-1740) deve ser vista, sobretudo, como uma preparação para o grande salto que haveria de se dar na fase histórica ­seguinte. O radical cultural mais importante do Barroco gira em torno da Contra-Reforma Católica. O homem começa a adotar uma postura ra­cionalista e a professar uma crença no progresso indefinido. É a época dos grandes sistemas científicos (Descartes e Leibniz).

Ambos os sistemas englobam o metafísico e o físico, o fi­losófico e o científico. Descartes e Leibniz são, por isso, as duas excepcio­nais figuras científico-filosóficas do Barroco. Muitos autores consideram Descartes, além disso, como o fundador da moderna Antropologia.

Em 1680 se suprime na França, por decreto-real, a pena de morte por feitiçaria. A medida oficial não irá se estender a outros países até o século XVIII.

No plano da bibliografia psiquiátrica se produz a aparição de duas importantes obras impregnadas de critério naturalista:

A Práctica médica, do suíço Plater (1536-1614), que dedica um exten­so espaço à exposição de observações clínicas sobre os doentes psí­quicos.

A Anatomía de la melancolía, de Robert Burton, onde se distingue a melancolia natural da sobrenatural.

Burton não era médico, mas um eminente teólogo de Oxford. Em sua obra se entremeiam os demonológico e o místico, com observações autobiográficas sobre a psicodinâmica da melancolia, já que ele apresentava esta doença.

Pelo que hoje pode se apreciar, tratava-se de uma "depressão disfórica". Daí que seu estilo expressivo seja essencialmente sarcástico e esteja impregnado freqüentemente de agressividade e elementos destrutivos.

Burton alcança o cume de sua agressividade quando se dirige aos universitários. Chama-os de aduladores de iletrados mestres, intelectuais desones­tos, cabeças carentes de toda idéia própria, aliás palavras sempre atuais. Posto que ele mesmo era univer­sitário, cabe interpretar o sentido de algumas destas manifestações como auto-acusações desenvolvidas sobre um sentimento de culpa, mas com um pé na realidade.

No plano assistencial, os psicóticos permaneciam reclusos em asilos sem receber assistência médica, posto que lhes consideram alienados, como seres estranhos à sociedade. Impõem-se-lhes a segregação social em estabelecimentos quase-carcerários.

As contribuições mais importantes nascem nos consultórios, tratam da histeria e da neurose e se devem a dois médicos ingleses: Sidenham (1624-1689) e Willis (1621-1675), representantes das concepções da histeria psicológica e vitalista, e cerebral ou organicista, respectivamente.

Willis, chamado muitas vezes o pai da neurologia, traz im­portantes contribuições: a descrição do "polígono de Willis" (formação anátomo-vascular na base do cérebro); a des­crição primeira, da paralisia geral progressiva da neurossífilis, e também da miastenia gravis; e as afirmações de que a histeria é uma enfermidade não do útero, mas do cé­rebro, e de que existe a histeria masculina. Porém, sua patogenia permane­ce bastante especulativa: os espíritos animais desempenham nela um papel essencial. Os que se descarregam explosivamente nas zonas centrais do cé­rebro originariam a epilepsia, e os que invadem "a origem dos nervos na cabeça" causariam a histeria.

A concepção cerebral da histeria havia sido já estabelecida pelo médico francês Charles Lepois, em 1618. E, uns anos antes, em 1603, o mé­dico inglês William Lorden reincidia em subscrever a origem primária da histeria ao útero, acrescentando que este órgão atua a distância sobre o cére­bro mediante "simpatia" e vapores ou emanações ascendentes. Apesar de tudo isso, a concepção uterina da histeria continuou prevalecendo entre os médicos até quase fins do século XIX.

Syndenham, o Hipócrates inglês, traz estas contribuições em seu escrito sobre a histeria:

1ª. É a enfermidade mais extensa e mais difícil de tratar.

2ª. É mais freqüente nas mulheres, mas também aparece em homens, especialmente entre os que levam uma vida sedentária.

Nosso au­tor recomenda reservar o termo histeria para a mulher e chamar à do homem, hipocondria, palavra cunhada por Smollius em 1610: hipocondria e histeria são para Syndenham a mesma enfermidade.

3ª. Tem um caráter clí­nico extremamente proteiforme. "Há poucas enfermidades de nossa mi­serável natureza que não sejam imitadas por ela".

4ª. Entre seus traços psi­copatológicos se destacam o comportamento caprichoso, as oscilações sem razão entre o ódio e o amor, a depressão.

5ª. Na etiologia distingue as causas externas ou mediatas e as internas ou imediatas: as primeiras, na perspectiva psicológica de Paracelso, consistem em uma emoção intensa de cólera, medo, dor etc.; as segundas, representadas pelos espíritos ani­mais de que falavam Lorden e Willis.

6ª. Para tratá-la renuncia quase to­talmente às medidas usuais como a dieta, a sangria e os purgantes, e recomenda super-alimentação à base de leite e preparados de ferro, o que, temos que supor, representou uma medida de alívio para as histéricas daqueles tempos.

Como ponte para o Iluminismo pode considerar-se a concepção ani­mista ou vitalista que o professor alemão de medicina e química, Stahl (1660-1734) expõe no século XVIII. A anima seria o suporte das reações químicas e físicas do organismo, e da luta da anima contra agentes nocivos nasceria a enfermidade. Ainda que não tenha escrito apenas sobre psiquiatria, sua distribuição das enfermidades psíquicas em patéticas ou funcionais e simpáticas ou orgânicas, causou bastante impacto.

Notas:
1. A bibliografia está à disposição, com o autor.
2. A parte II deste artigo encontra-se na Seção Artigos da RedePsi.

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