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Visitando o Túmulo da Mãe que não Morreu

Há muito tempo venho percebendo o quanto é importante a ‘Síndrome da Mãe Morta’, nome pelo qual André Green batizou o fenômeno. Como sabemos, Green tentou fazer uma ponte entre as teorias de Lacan e Winnicott. Se o conseguiu ou não, não sei, mas a mim não importa muito. O que me importa é que, ao descrever essa ‘síndrome’, ele de alguma forma atualizou um pensamento de Winnicott e o tornou, digamos, mais visível para o terapeuta. A ‘mãe morta’ é aquela que não morreu. Ela ficou doente ou deprimida pela morte de alguém muito próximo, perdeu um bebê antes ou depois da criança atual, teve outra criança quando a anterior ainda era pequena e fez esta última sentir-se ‘jogada para escanteio’, brigou com o marido e ‘deu um tempo’, voltando depois para casa, separou-se ou perdeu o marido, ou simplesmente viajou de férias e deixou a criança ‘em total segurança’ com alguém.
Quantas vezes acontece alguma dessas coisas na vida das pessoas? Quantas vezes os pais contratam uma babá, maravilhosa, extremamente competente e confiável, em quem a criança aprende a confiar, e a demitem depois de algum tempo, ou ela se casa e vai embora? Aparentemente, estou falando do que, por sua enorme freqüência, deveria fazer parte da normalidade, e não da doença. Mas infelizmente as coisas não são tão fáceis. Winnicott, mais de uma vez, se refere à ‘equação matemática da perda’, equação que se expressa pela fórmula ‘x + y + z (/i)’. Esta última parte (/i) é minha – e já vou explicá-la. X é um tempo em que a mãe se afasta do bebê, mas ele é tão curto que não deixa marcas. Y é um tempo um pouco maior, em que o bebê fica aflito com a ausência e começa a se desesperar. Mas a mãe volta, e tudo acaba bem. Fica apenas uma pequena marca – a indicar ao bebê que o tempo da fusão está acabando. E Z é o tempo em que a ausência da mãe é mais prolongada que aquele em que o bebê consegue retê-la com clareza na memória. Se a mãe demorar um ‘tempo z’, o bebê fica marcado por uma vivência de perda, que não se apagará apesar de a mãe acabar reaparecendo.

Aqui o sentido da expressão ‘tarde demais’ surge em toda a sua intensidade. E (/i), na fórmula, é a minha maneira de dizer que tudo isso depende da idade do bebê: quanto mais novo o bebê, mais curtos serão x, y e z. Estamos falando, então, de várias coisas ao mesmo tempo. Primeiro, do sentimento violento de desamparo que surge no bebê quando a mãe desaparece de seu campo de ação. Quando Winnicott fala da ‘ansiedade impensável’, ele a explica como sendo causada pelo sentimento de desamparo. Em vários lugares de seus escritos, por exemplo, ao falar da tendência anti-social, mas não só, ele deixa claro que o desaparecimento da figura amada (que Bowlby chamava de ‘figura de apego’, nome extremamente útil) provoca na criança uma verdadeira catástrofe. Green apropria-se dessa idéia e a estende a situações em que o desaparecimento é temporário. Mas Winnicott já havia previsto essa possibilidade, pois a fórmula x + y + z surgiu para falar exatamente disto. Segundo, estamos falando do dano causado à confiança do bebê na mãe. Esse é um aspecto da teoria psicanalítica muito pouco levado em conta, por tudo o que sei. Como adultos, estamos acostumados a duas coisas: primeiro, a confiarmos em quem confiamos, e a não confiarmos inteiramente nos outros; segundo, a nos sentirmos merecedores da confiança que outras pessoas depositam em nós, e a tolerarmos o fato de que pessoas estranhas não o façam. Tudo isso se torna tão corriqueiro ao longo da vida, que não lhe damos mais muita atenção.Mas o bebê é um estranho, por mais íntima que seja a relação da mãe com ele.

Ele é um estranho, e se sente estranho, e não confia. Vai aprendendo a confiar aos poucos, e esse processo só se completa muitos anos mais tarde, quando a criança já é bem mais velha. Se a mãe se ausenta por um tempo z, ou se frequentemente desaparece por um tempo y, a confiança da criança sofrerá as conseqüências. A palavra ‘confiança’ é raras vezes mencionada em textos psicanalíticos, e esse é um erro grave. Porque, se nos lembrarmos do termo ‘paranóide’, do binômio ‘esquizo-paranóide’, que descreve aquela fase terrível do desenvolvimento emocional primitivo descrito por Melanie Klein, perceberemos que a ausência de confiança, ou sua presença hesitante, insuficiente, dá lugar imediatamente aos fenômenos que denominamos ‘paranóides’. A ‘paranóia’ é, como todo o mundo sabe, um ‘pseudo-conhecimento’. E a que se refere esse ‘pseudo-conhecimento’? Ora, a que mais se referiria, senão a um perigo? Para exemplificar a idéia de perigo, e de como é fácil agirmos a partir de um ‘pseudo-conhecimento’, montei certa vez a seguinte cena: Você está andando de carro por uma rua desconhecida e pouco iluminada num bairro mal afamado de uma cidade conhecida por sua violência, lá pelas três da manhã, e aí estoura um pneu. Você, pessoa previdente, abre o porta luvas, tira o revolver que está lá para ocasiões desse tipo, coloca-o na cintura, fecha o carro e sai andando em busca de uma solução. (Esse ‘filme’ se passa, evidentemente, na época em que ainda não havia celular.) Vai andando pela calçada, e pouco depois começa a ouvir passos atrás de você. Passos pesados. Lentos, mas insistentes. Sua auto-confiança/segurança/coragem acaba no máximo em três minutos, e aí você pega o revólver, vira-se e atira – para descobrir que acabou de matar uma freira gorda e velha.Imagine agora um bebê que acabou de chegar ao mundo, e não tem ainda a menor idéia de como ele funciona. Se você convive com animais, sabe que mesmo um animal adulto fica desconfiado num lugar desconhecido. Um filhote, então, ficará apavorado.A ‘paranóia’ é uma tentativa exagerada de auto-proteção.

Bowlby, em sua tentativa de montar uma psicanálise baseada em fatos, não em elucubrações, pesquisou e descobriu que 40% das crianças têm medo do escuro. Portanto, nada anormal nisso. E isto, por sua vez, significa que ‘medo’ é algo não só inato, mas universal. A proteção dos pais é, portanto, essencial. Sua conseqüência, para a criança, é um sentimento de segurança e aquilo que chamamos ‘auto-estima’. Se a proteção ‘quebra’, ou mesmo apenas ‘enguiça’, tanto a segurança quanto a auto-estima tornam-se algo de que a criança tem memória, mas não a posse. A criança, diz Winnicott, passa por um período de congelamento (um ‘estupor’, o estado chamado de ‘choque’), na qual ela perde as referências (ela perde, mesmo que temporariamente, tanto a pessoa de quem depende quanto a si própria, e este último aspecto é importantíssimo) e, nas palavras de Winnicott, ‘enlouquece’. Mas isso dura pouco. Em seguida ela se reorganiza e passa a funcionar com uma criança muito normal, muito boazinha, que absorveu muito bem o trauma e não dá muito trabalho aos demais.Só que esse segundo período é meramente ilusório. Surge em algum momento uma busca – por algo que a criança não sabe o que é, mas que com certeza ela perdeu. Resposta óbvia: a pessoa cuja perda ela sofreu. Resposta menos óbvia: a ilusão de onipotência que se quebrou devido ao trauma.Essa criança não pode mais acreditar na santa mentira que lhe contaram: Nada vai lhe acontecer, nós estamos aqui protegendo você.Em algum lugar, Winnicott fala de algo que parece engraçado: da ‘ilusão de imortalidade’. Ele diz que esse é o resultado mais importante do trabalho dos pais: fazer a criança sentir que ela está a salvo, que ela não é vulnerável, que a probabilidade de acontecer-lhe algo é tão pequena que não vale a pena se preocupar. Essa ilusão de imortalidade é, certamente, da ordem da onipotência. Talvez seja mesmo a ‘última trincheira’ da onipotência primária, natural. Todos nós, que vivemos a vida, trabalhamos todos os dias, saímos de férias, só o fazemos porque algo nos diz que é seguro levantar-se da cama (ou sair debaixo dela…) para ir ‘fazer as coisas’. Os que sofreram uma quebra em sua onipotência, infelizmente, não têm tanta confiança. Para eles já ocorreu uma catástrofe, e nada os convence mais de que ela não ocorrerá de novo. Temos, então, a situação curiosa de alguém que se sente órfão… de pais vivos. E que ao mesmo tempo se sente um tanto louco, porque como é possível ser órfão se os pais estão vivos?Essa síndrome, da ‘mãe morta’, faz muito mais estragos do que imagina a psicanálise que não a conhece. E pode ser que responda, mas isso eu ainda não pesquisei, por muitas das chamadas ‘novas patologias’, que têm dado tanto trabalho aos psicanalistas nos últimos anos.Se você é psicoterapeuta e tem pacientes que considera ‘difíceis’, tente sondá-los para saber se houve, na sua infância, algum episódio desses que listei acima. Se eles confirmarem, com certeza o problema é esse.

De sobremesa, abaixo está um comentário que enviei a Gilberto Dimenstein, sobre sua coluna na Folha de São Paulo publicada em 13/1/2008, “O Traficante que Virou Educador”. Caro Gilberto:Acabo de ler (só hoje) sua crônica sobre o homem que não se chamava Johnny.Como psicanalista, gostaria de dar um palpite. Os indícios que você fornece sobre ele me levam a acreditar que se trata, aparentemente, de um caso típico de 'tendência anti-social' que evoluiu para a delinqüência. "Johnny" é um exemplo de criança que, na primeira parte da infância (antes dos 6 anos) perdeu parcialmente a segurança proporcionada pelos seus vínculos primários. É precisamente nesse tipo de 'boa família' que o problema ocorre: há uma família acolhedora e protetora, a criança cresce saudável e segura, mas em algum momento ocorre um desastre: Uma viagem dos pais, a morte de um parente próximo de um deles, provocando depressão severa, longa doença de um deles, ou mesmo o afastamento de uma babá a quem a criança estava ligada. Ou seja: Ocorreu um trauma de elevada intensidade, sem que houvesse uma causa visível a olho nu (o olho do não especialista). A causa fica, nesses casos, oculta para quem está procurando desastres mais sensacionais. Pareceu-me importante fazer esse comentário, porque a história de 'Johnny' é idêntica à de um sem número de jovens delinqüentes, conforme já me foi dado apurar junto a pessoas que trabalham nessa área (na antiga Febem, por exemplo).Esse fenômeno, que André Green chamou de 'síndrome da mãe morta', é importantíssimo porque sua frequência é enorme, e suas conseqüências, caso nada seja feito, devastadoras. Ou a vítima se torna delinqüente, ou se torna um 'zumbi', um corpo vivo que parece destituído de alma.Infelizmente, a psicanálise como um todo ainda não deu à questão a devida atenção. Já tive inúmeros pacientes cujo verdadeiro problema era esse – e que haviam passado por outras análises que simplesmente o ignoravam.Se você quiser mais detalhes, estou à disposição. O que posso dizer neste momento é que você, conhecido por sua preocupação permanente com o segmento menos favorecido da sociedade, deveria conhecer mais a respeito dessa questão, porque poderá fazer um bem enorme a um número gigantesco de crianças, jovens e adultos.

Grande abraço,seu admirador,

Davy Bogomoletz.

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