Sempre pensei na importância do trabalho por experiência própria e por observar o meio a minha olta. As aulas sobre a psicologia do trabalho e a leitura do livro de Sennett me distanciaram deste sentimento visceral da importância do trabalho para entendê-lo com mais profundidade. Ao mesmo tempo pude entender melhor a mim mesma e às minhas reações diante do trabalho (ou da falta dele). Percebi que o trabalho tem um papel na sociedade muito maior do que eu supunha. Ele é insuperável em todos os modos de produção que já existiu e que ainda virá. O trabalho é ainda considerado categoria fundante e a linguagem aparece de forma praticamente concomitante, o que foi uma revelação para mim.
Atualmente é fácil constatar que o trabalho é a categoria central de organização social. O que “se faz” virou um sobrenome. Importa saber quem é pelo que a pessoa faz. Se a pessoa diz, sou psicóloga da empresa X, somente com esta frase (não é preciso nem saber seu nome) é possível deduzir o nível social da pessoa, a importância da sua função de acordo com o status da empresa X, se ela tem crédito para consumir ou não e várias outras suposições ligadas ao seu posto. Desta maneira, se torna muito mais coerente entender como o modo de produção atual tem conduzido suas relações de trabalho para conhecer os dilemas que o indivíduo enfrenta hoje.
Eu considero que a reflexão do Sennett é antecipada ou talvez anunciatória da urgência de mudanças no novo capitalismo. Eu me sinto no meio do “fogo” das questões colocadas por Sennett, e geralmente conseguimos enxergar com mais clareza uma situação quando tomamos uma distância mínima dela. A corrosão do caráter colocado por ele, eu li com a angústia de quem vive este momento e com o alívio de saber que o incômodo sentido é legítimo e, ainda, que o sistema que produz esta corrosão contém em si mesmo os germes da sua destruição. Estes germes se configuram pelas suas inúmeras contradições como por exemplo, exaurir a vida existente dentro do capitalismo e não permitir que haja vida fora dele.
Uma das questões centrais do livro é a idéia de que o caráter é algo construído com o tempo, pois suas qualidades como lealdade, compromisso, propósito e resolução são de longo prazo na natureza. Atualmente não há estabilidade e os contratos formais de empregos estão sendo substituídos por projetos de curto prazo que não permitem a evolução destas qualidades do caráter contribuindo assim para sua corrosão.
Esta corrosão já atingiu níveis tão altos que ela já está incorporada por muitas instituições que valorizam as pessoas que têm a personalidade totalmente maleável aos interesses do momento. Uma experiência pessoal ilustra este fato. Participei de um processo de seleção contendo várias etapas, para trabalhar como analista de RH em uma consultoria de pequeno porte. Nos testes e dinâmicas, que foram as etapas iniciais eu passei. As etapas finais seriam entrevistas individuais. Havia cerca de 60 candidatas para duas vagas. Comentei com uma amiga sobre o processo que estava participando e ela (que já estava empregada em outro lugar), para minha surpresa, disse que conhecia a dona da consultoria, pois havia trabalhado com ela no início do negócio e haviam se tornado amigas. Ela, tentando me ajudar, me deu as seguintes dicas para passar pela entrevista; disse-me que a empresa gostava de pessoas muito práticas, secas, já que o volume do trabalho era grande e não dava tempo de praticar bobagens como “humanização” do RH. Esta amiga, sabendo dos meus ideais de praticar uma psicologia organizacional mais humana me alertou para que não demonstrasse tais idéias que não seriam vistas com bons olhos. Não consegui trair a mim mesma e como de fato não passei pelas entrevistas. Na verdade a empresa queria uma pessoa com um perfil agressivo e frio, o que entendi como o seu conceito de pessoa “prática”. Foi uma escolha cruel: Fingir ser quem não sou e trabalhar em um lugar onde me sentiria violada nos meus propósitos constantemente ou enfrentar por tempo indeterminado todas a agruras do desemprego. Sei que não haverá empresa ideal, mas sua cultura não pode estar totalmente dissociada dos valores dos seus empregados.
Este é um dos motivos do adoecimento no trabalho. É preciso desenvolver habilidades de preservar-se mesmo em um ambiente hostil. Não haverá outras saídas? Lembro-me da pesquisa da professora Vanessa, os trabalhadores do cemitério estão se tornando alcoólatras, muitos trabalham ali por sobrevivência porque não conseguiram outra coisa. A identificação com o trabalho é tão frágil como a dos padeiros da moderna padaria de Boston citada por Sennett. A saída dos primeiros foi à bebida. A dos padeiros a indiferença, já que não pretendem permanecer no trabalho por muito tempo. E qual seria uma saída “saudável”, se há pouca opção? A minha amiga, citada anteriormente, ao saber da oportunidade na consultoria pensou que seria melhor para ela que o emprego atual e pelo telefone mesmo acertou com a dona, sua amiga, a sua contratação. E aquelas 60 candidatas que não souberam deste outro lado da história nem sequer imaginam quem foi à contratada que não passou por nenhuma das etapas. Pouco tempo depois, ela mesma já não considerava a “chefe” tão amiga assim e reclamava por ter que engolir a comida e às vezes nem poder almoçar para dar conta do serviço. Várias vezes a encontrei doente (gripada ou rouca) queixando-me da extrema competição que havia entre as colegas analistas e das exigências absurdas da dona da consultoria. Esta exigia que ficassem 3, 4 horas além do horário (que é de 8 horas) sem que recebessem mais por isso. Um dia me ligou chorando dizendo que não agüentava mais, mas isto ainda era melhor do que ficar desempregada. Ao meu ver, o seu caráter está sendo moldado.
Aprendi nas aulas que o trabalho é a categoria central no processo de auto construção humana. Sennett diz que o capitalismo hoje “afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a vontade do comportamento” (p.33). Sendo assim, como fica a construção humana se o trabalho exercido o dissocia dele mesmo? Eu mantive minha coerência interna ao recusar fingir para conseguir o emprego, mas esta começa a se abalar pelo desemprego prolongado. A falta de trabalho me exclui da sociedade e é o trabalho a porta principal para minha reinserção. Manter meu valor como pessoa perante a sociedade, sem estar trabalhando, é um grande desafio. A maior estabilidade hoje é se adaptar a instabilidade inerente ao trabalho. Esta adaptação pode ter um preço alto já que não nos permitir solidificar nenhum traço de caráter como alerta Sennett.
Se o trabalho é a categoria central, todos os outros aspectos da nossa vida serão afetados por ele. O primeiro capítulo do livro de Sennett ilustra este fato, pois mostra a influência do trabalho na família de Rico. Eu considero preocupante o fato de o desemprego não ser mais privilégio apenas das classes menos favorecidas. O livro, as aulas e a experiência prática deixa bem claro que há cada vez mais concentração de poder e dinheiro na mão de poucos bem sucedidos “enquanto a massa de perdedores fica com migalhas para dividir entre si” p.105. A classe média já foi atingida. Se há cada vez mais desempregados e empregados precários, qual será o efeito disso nas outras áreas da vida de uma pessoa? E na sociedade como um todo? Será que estarei indo longe demais em pensar que esta rebelião de marginais que está assombrando São Paulo tem a ver com esta discussão toda? Desemprego, exclusão, marginalidade… Chega a ser um exercício físico pensar em possibilidades alternativas para esta situação.
Sennett aponta alguns caminhos interessantes, que, ao meu ver, está em sintonia com as críticas de Politzer a psicologia. Em primeiro lugar, a sua análise é psicossociológica, o que sugere que não é possível tratar um assunto tão complexo e dinâmico considerando apenas uma vertente. O diálogo entre abordagens múltiplas é possível e desejável para o melhor entendimento do objeto em questão. Foi o que Politzer fez na sua análise sobre a psicologia. Em segundo, Sennett aponta que o próprio capitalismo é construído cheio de falhas e é nelas que encontraremos algumas soluções. Ao ler esta passagem em Sennett, lembrei-me de uma aula em que foi colocado que é através das brechas deixadas pelo capitalismo que os movimentos sociais irão atuar e provocar mudanças que, posteriormente serão incorporadas pelo capitalismo como parte do sistema. Isso significa que somos nós quem produzimos as mudanças e a alimentação do sistema e que somos nós também quem devemos começar a mudá-lo. Refletir sobre estas questões pode ser um primeiro passo. Sennett descreve a evolução do pensamento dos programadores demitidos da IBM, que se inicia culpando a administração de traição, passa pela idéia de que intrusos chegam à cena e culminam na própria responsabilidade sobre o ocorrido; a demissão deles. Sennett os considera os caracteres mais fortes que já encontrou porque “assumiram a responsabilidade pelo seu fracasso e (…) construíram um esquema narrativo para sua experiência” p.173. Ler isso me fez vir à mente uma das principais propostas da psicologia: a cura pela fala. Atualmente, a divisão do trabalho, a falta de controle do tempo, a falta de um responsável a quem se dirigir ou culpabilizar, a frouxidão dos laços de caráter, a excessiva flexibilização das formas do trabalho e várias outras características derivadas do capitalismo exercido hoje, deixa a pessoa sem referência e confusa. Fica muito mais fácil dominá-la, principalmente subjetivamente. Resgatar alguma coerência de si mesma e do que lhe acontece através da fala, ajuda a organizar por dentro o reflexo da desorganização produzida pela situação externa. Muitas vezes não se sabe nem contra o que se está lutando.
As formas encontradas pelo neoliberalismo para conter as massas excluídas são desabonadoras, como por exemplo, o assistencialismo feito através de programas sociais que reforçam a exclusão. Estas formas podem parecer sutis as grandes massas que não saberão identificar o que exatamente devem reivindicar. Por isso, acredito que refletir sobre estes temas, dar-lhe luz é ao mesmo tempo terapêutico e um modo de começar a melhorar as relações de trabalho. Foi também uma novidade para mim Sennett dizer que os laços da comunidade se reforçam pelo conflito. Nunca havia pensado por este lado, mas faz muito sentido. O conflito é dissolvido através de “tapa-bocas” como o assistencialismo por um lado e a idéia cada vez mais vigente de ser um privilégio sobreviver no mercado de trabalho (o que não permite contestar, afinal tem um monte de desempregado querendo sua vaga) por outro. Sendo assim, não há luta, não há discussão, não há comunidade porque não há enfrentamento das diferenças. Foi com grande alívio que constatei que é preciso aumentar a possibilidade de escolha para ampliar a consciência. O trabalhador (ou desempregado) não é uma vítima passiva, mas também não é o único culpado da sua condição.
Escutar que a ação efetiva do psicólogo do trabalho deve ser dirigida as condições de trabalho, ou seja, adaptar o trabalho ao homem e não o contrário, veio totalmente ao encontro dos meus anseios como psicóloga. Como disse anteriormente, o livro e as aulas, sintonizados com o que estamos vivendo, suscitou-me muitas reflexões que ainda estão fervilhando na minha mente. Há mais dúvidas do que respostas, mas foi possível tirar muitos véus e alimentar com riqueza uma discussão inacabada em que eu própria faço parte da construção desta história.
Bibliografia
Sennett, Richard. A corrosão do caráter: Conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Tradução Marcos Santarrita. – 10º edição – Rio de Janeiro: Record, 2005.