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“O anel que tu me destes era vidro e se quebrou, o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”: quando o desejo se degrada em necessidade.

Inicio minha reflexão sobre a dinâmica obsessiva com a descrição que Kell (1999) nos faz da neurose obsessiva e do obsessivo:“A neurose obsessiva é sempre um pouco ridícula. O obsessivo é o careta entre os neuróticos, e sempre relatamos seus sintomas com um certo sorriso de ironia. Seus sintomas são picuinhas. Seu sofrimento consiste em ter que se haver com mandatos e injunções simultâneas, contraditórias e absurdas, referentes a pequenos detalhes da ordem cotidiana. O obsessivo é o sindico, o legalista, o bedel. O que tenta barrar qualquer excesso de gozo do seu semelhante, que possa lembrar-lhe tudo quanto ele mesmo não se permite. Pobres obsessivos, que se levam a sério demais e, sobretudo, que levam o Outro a sério”.(p.80)
Do já exposto até aqui percebemos que o neurótico obsessivo não consegue lidar com o desejo pulsional sem ressecá-lo, ou seja, sem desafetizá-lo, dissociá-lo, racionalizá-lo. Diante daquilo que sempre insiste em retornar, o obsessivo se angustia e sofre, sofre muito. O dinamismo obsessivo pode ser descrito em quatro momentos:

* no primeiro, a criança vivencia a polimorfia sexual;

* no segundo há a maturação sexual precoce demais, onde o ego aparece como sintoma, rigidamente constituído. Os mecanismos utilizados são a dessexualização, a intelectualização e a moralidade, bons costumes, prolongando assim o período de latência. Surgem as auto-acusações ligadas às ações prazerosas, havendo a constituição do sintoma primário de defesa – vergonha, concienciosidade, escrúpulo e auto-desconfiança.

A base dessa fase é oconflito e a culpa, desenvolvendo-se uma maturação defensiva do eu. O neurótico obsessivo é no mínimo cúmplice e no máximo culpado. O obsessivo tem o blefe do ser. O eu é falso porque se pretende o avesso da perversão polimorfa da pulsão.

O eu, narcisicamente posicionado, é uma defesa contra a pulsão perversa polimorfa: quer ser inteiro e concatenado, honesto e não fragmentado. O neurótico obsessivo não é vítima, ele não fala que o outro fez com que ele fizesse nada. Ele entra em culpa: “o sujo sou eu”; “eu sou flor que não se cheira”. Assim, não há vilão para diminuir a culpa, tudo fica no eu. No seu desassossego, o obsessivo tem a culpa para piorar e pesar.

A dúvida na neurose obsessiva marca a questão da ambivalência, a questão da incapacidade de tomar decisão e, assim, o obsessivo sempre adia decisões. A compulsão é uma tentativa de alguma compensação pela dúvida, compensação pela paralisia. A compulsão é uma descarga que não traz nenhuma realização, causando culpa e expurgação. A compulsão é um ato que não é assumido pelo sujeito, montando um ritual completo que não tem um valor de um posicionamento.

* após esse segundo momento há o período de “aparente saúde” enquanto essas defesas, valorizadas socialmente principalmente no período de latência, são bem sucedidas. Tudo parece normal e tudo parece ir muito bem;

* o quarto período da doença advém com o retorno das lembranças recalcadas, havendo o fracasso das defesas. Assim há a formação de compromisso e a ela se acoplam um conjunto de outros sintomas que não estão relacionados ao retorno do recalcado e sim ligados ao ego: são derivativos dos esforços defensivos do ego. A defesa clássica desse período seria a formação reativa, que representaria o oposto do desejo: o desejo fica fora de cena.

Portanto, o ciclo obsessivo advém a partir do retorno do recalcado, há defesas para apagar este retorno, defesas secundárias, como foi visto anteriormente. São esforços do ego em segurar o retorno do recalcado, desenvolvendo medidas protetoras: o obsessivo é um devoto do esvaziamento do desejo. Ele precisa recalcar mais uma vez porque percebe, no sintoma, o cheiro de desejo. O neurótico obsessivo teme algo que vem de dentro, possuindo em si a desconfiança em seu poder de controlar seus desejos, seus caos. As defesas secundárias visam enxugar o que de desejo o sintoma posta e porta. Há, então, um esvaziamento da questão desejante e, assim, o obsessivo mata o desejo do outro, desenvolvendo a mortificação como uma de suas característica.. Dessa forma o neurótico obsessivo degrada o desejo em necessidade, degrada a pulsão em função, dever, obrigação. Ele não pronuncia ou diz “eu desejo”. O desejo vira obrigação e dever. É o inferno do dever, e assim ele constrói, com a ordem , a limpeza e o pudor, a defesa do eu contra a pulsão. Podemos dizer que o obsessivo tem um cheiro de perversão, já que aniquila o desejo do outro, tentando bloquear no outro aquilo que ele não se autoriza em si. O desejo tangencia-o: o obsessivo tem repulsa, dever, necessidade: “eu preciso”, “eu necessito”, “é o jeito”, “fazer o quê?”; jamais “eu quero”, “eu gostaria”, “eu desejo”, “ eu banco”, “eu sou um morto que respira!”

Há, no obsessivo, a fantasia de não arcar, de não poder sustentar a situação, os seus desejos e vontades. O obsessivo vive por procuração para não se haver com os fatos que têm a ver com sua própria vida. Ele ocupa o lugar degradado, daquele que não se sustenta. Ele não consegue colocar algo dele em jogo, investir, se implicar. Na verdade, o obsessivo contra-investe para não investir. Assim ele perpetualiza o tempo de compreender para não concluir, evita posicionar-se, advir enquanto sujeito. O obsessivo é normalmente o escravo, obedecendo aos desígnios do senhor para não se implicar.

Com a questão do dever e da necessidade ocorre a degradação do afeto desejante e esse movimento de degradação remete-nos à questão da analidade presente na neurose obsessiva. A fase de fixação do neurótico obsessivo é a fase anal: o sujeito é demandado pela mãe. A atividade é efetivada nesta fase através do controle, da disciplina de uma necessidade para dar conta do desejo de um outro, para atender a demanda de um outro. O desejo é exatamente a “merda” e assim o obsessivo está mais na demanda do outro, permanecendo naquilo que o outro pede: aqui o desejo fica completamente secundarizado: “Não é que eu queira, eu necessito”; “ Eu consigo viajar se tenho um trabalho pra fazer, mas para me divertir ? Me sinto mal”; “ Eu não consigo manter em mim a felicidade por muito tempo, ela some, se esvai, são momentos”.

Na fase anal o objeto mais esperado é aquele que é posto fora, deve ser limpo. O obsessivo também se identifica com o que é dejeto, com o que não tem valor. O obsessivo tem como mecanismo o “deixar para lá”, que corresponde a abrir mão da sua posição desejante. O obsessivo é muito oblativo, tudo para o outro, a oferta toda para o outro, toda doação para o outro. A questão, aqui, é ser visto e não se ver, muito mais do que se doar para alguém.

A oblatividade está igualmente relacionada com a fase anal, com a analidade, assim como estão o dever e a obediência. Nesta fase o sujeito faz para o outro e se define para o outro, mas esta oblatividade é igualmente um blefe de ser do obsessivo porque o tudo para o outro é não somente abrir mão de sua posição desejante como igualmente se manter em uma posição narcísica. O obsessivo ou é o melhor ou é o pior, não há meio termo. O deixar para lá do obsessivo é uma forma de ele estar bem no ambiente no qual está inserido e não tomar um posicionamento. O obsessivo está sempre disposto a tudo, desde que ele não se comprometa e, assim, sua oblatividade ocorre sem singularização, sem vínculo. Ocorre, aqui, uma alienação no campo do outro. É o outro que sabe do meu desejo! Desta forma, o obsessivo “melhora” quando está sendo mandado e “piora” em seus sintomas, entrando em dúvida e culpa, quando tem de decidir sobre algo seu. No “ser mandado”, o indivíduo está sob a autoridade de um outrem que não é ele mesmo. O eu do obsessivo é narcísico, havendo muito ego, muita imagem idealizada e pouco sujeito e essa imagem escamoteia o sujeito. As perguntas das quais o obsessivo se refuta a responder sempre são: “O que você deseja?” “O que você quer?” “O que você é?”

O obsessivo igualmente degrada o desejo em pensamento como uma forma de ele se desconectar como sujeito. O que marca a neurose obsessiva é a descontextualização, é a quebra das interconexões, a quebra da temporalidade, a confusão na relação temporal. A arte da neurose obsessiva é fazer um embaralhamento dos fatos e afetos descontextualizando-os através dos mecanismos da dissociação e da desafetação.

As explosões de raiva do neurótico obsessivo advêm dessa dissociação entre o afeto e os fatos que ele relata, o que nos remete a um outro mecanismo de defesa utilizado por ele, o isolamento – daí a facilidade com que encontramos relacionada à neurose obsessiva, a depressão. O obsessivo não esquece, ele enfraquece a idéia. A idéia e o afeto permanecem no mesmo espaço, porém dissociados. Na neurose obsessiva as peças do quebra-cabeça estão na mesa, mas embaralhadas de tal forma que este não consegue ser montado. O que ocorre é um aborto da questão da aflição a partir da não possibilidade de qualquer associação. A idéia fica desafetizada, desinvestida, não vai para o corpo, fica ainda na consciência, destituída do ato psíquico. O que ocorre na neurose obsessiva é a regressão do agir para o pensar. O neurótico obsessivo gasta uma enorme energia com o pensar e com o elaborar, e isso ocorre por defesa e não por um movimento criativo por parte dele.

Termino minha reflexão sobre a dinâmica neurótica obsessiva a partir de uma música de roda que diz “o anel que tu me destes era vidro e se quebrou/ o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou”. O obsessivo sempre se acha em dívida, a culpa é seu recibo assim como a dúvida poderia ser o carbono desse papel no qual a culpa se inscreve. O laço que o obsessivo constrói com o outro é um laço frágil, posto não ser ele um sujeito que se implica nas coisas ou com as pessoas, é um vínculo de vidro, fino. Enquanto aquele que ele tiver como parceiro mantiver a fantasia de completude, o anel será sustentado e existirá o laço social, porém, quando ele perceber que não existe completude, que o outro falha, o que havia se torna pouco, até por que aponta para a sua incompletude principalmente, se quebra e se degrada em dever, necessidade e obrigação; se resseca, pesa e provoca o afastamento das pessoas. “Não sei por que sempre acontece isso, os amigos somem”.

Kell (1999) nos diz que o obsessivo aparenta ser aquele que é o principal responsável pela sustentação do laço social na sua preocupação com as regras, com as pequenas exigências da lei, com os compromissos, com a opinião do semelhante, mas que o obsessivo nunca está onde se produz o laço social, ou seja, no meio de seus semelhantes. Kell marca que
“o obsessivo é , dentre os irmãos, aquele que se recusa a tapear o pai, o que tenta levar o pai a sério e denuncia os blefes criativos e vitais da fratria. O que não sabe brincar. O que está sempre sozinho, e tenta dar de ombros com desdém : “eu não preciso disso…”. Apartado da fratria, quando o ser se revela cruelmente um blefe, o obsessivo não encontra nada para colocar neste lugar Longe do outro, longe dos jogos de faz-de-conta que jogamos consentidamente com o semelhante, longe dos pequenos e variados sinais do reconhecimento de nossa existência que o semelhante nos envia – o que podemos dizer de nós mesmos? (p.82) (grifo meu)

O que podemos dizer de nós mesmos? Acredito que essa pergunta não conseguiria ser respondida por um obsessivo, ele foge dela, por isso diz, solitário, que não precisa do brincar nem do brinquedo, nem do outro.

Há uma imagem poética que, ao longo desse trabalho, me acompanhou. Ela advém da poesia Quase de Mario de Sá-Carneiro.

Um pouco mais de sol – eu era brasa, Um pouco mais de azul – eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa… Se ao menos eu permanecesse aquém… Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído Num grande mar enganador de espuma; E o grande sonho despertado em bruma, O grande sonho – ó dor! – quase vivido… Quase o amor, quase o triunfo e a chama, Quase o princípio e o fim – quase a expansão… Mas na minh'alma tudo se derrama… Entanto nada foi só ilusão! De tudo houve um começo … e tudo errou… – Ai a dor de ser – quase, dor sem fim… Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim, Asa que se enlaçou mas não voou… Momentos de alma que, desbaratei… Templos aonde nunca pus um altar… Rios que perdi sem os levar ao mar… Ânsias que foram mas que não fixei… Se me vagueio, encontro só indícios… Ogivas para o sol – vejo-as cerradas; E mãos de herói, sem fé, acobardadas, Puseram grades sobre os precipícios… Num ímpeto difuso de quebranto, Tudo encetei e nada possuí… Hoje, de mim, só resta o desencanto Das coisas que beijei mas não vivi… Um pouco mais de sol – e fora brasa, Um pouco mais de azul – e fora além. Para atingir faltou-me um golpe de asa… Se ao menos eu permanecesse aquém…

Vejo, nas metáforas desta poesia, a aflição e a dor daquele que, se achando parte de uma fratria se percebe não sendo parte de nada, que querendo ser ótimo se vê constantemente jogado no lugar do nada, do dejeto, se percebendo um blefe de ser. Vejo, na gradação crescente das metáforas, a angústia que aflora e assola o neurótico obsessivo diante da paralisia dos rituais, diante da angústia que o desejo causa quando ele aflora na sua forma viva, sem estar dissociado, racionalizado, ressecado. Um obsessivo é um quase, titubiando entre uma imagem idealizada de completude e de excelência e a certeza interna de que ninguém jamais é assim, logo ele é um passo que faltou para poder ser tudo ou todo… Como nos diz Sá-Carneiro, ele seria o grande sonho – ó dor! – quase vivido, o grande sonho despertado em bruma, o quase amor, quase triunfo e a chama, quase o princípio e o fim, quase expansão e, diante do quase, o obsessivo foi só ilusão! O obsessivo, como Kell anteriormente descreveu, é aquele que diz de si “ eu falei-me entre os mais, falhei em mim… para atingir faltou-me um golpe de asas, se ao menos eu permanecesse aquém”, mesmo que este “ser aquém” real esteja recoberto nos entulhos das defesas do obsessivo, mesmo que esteja camuflado ou transmutado em excelência falseada.

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