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Ciência e Filosofia

Numerosas vias secretas de interco­municação formam aí, no fundo, como que uma vasta e extensa rede de ligações, muitas vezes ocultas ou inaparentes. Rede de finas e estreitas malhas invisíveis, que ora confinam, sem solução de continuidade, ora se enlaçam ou se anasto­mosam em complicada trama, desdobrando-se e projetando-se então nas mais diversas direções.
Basta invocar, para ilustrá-lo, as correlações, desde sempre reconhecidas, e hoje cada vez mais íntimas, entre a Física e a Química; ou de ambas, a um só tempo, de um lado, com as Matemáticas em geral, e de outro, com a Biologia em particular; bem como desta, por sua vez, com a Fisiologia, a Psicologia, a Antropologia e, por fim, com as próprias ciências morais e sociais.

Nessa ordem de idéias, ante a pergunta que se nos impõe agora: qual a função ou o objetivo da Ciência em geral? Caberia, responder de pronto: a captação da totalidade do real. Mas aduzir, incontinenti: pelo estudo metó­dico das diversas classes de fenômenos que a representam, visando ao esclareci­mento de sua significação, conexões recíprocas, causas e conseqüências imediatas.

Assim, diferente do conhecimento primário, direto, espontâneo ou vulgar, o conhecimento científico registra, descreve e busca explicar racionalmente os fatos da realidade. Deve considerá-los em seus domínios respectivos e fazê-los, quer em termos de experiência ordinária, quer mediante o emprego de fórmulas ou símbolos convencionais, capazes de exprimir o que os sentidos não apreendam ou o que as palavras não possam traduzir.

Para Aristóteles que, durante mais de dois milênios, entravou, com o imenso prestígio de suas idéias, o desenvolvimento das ciências naturais, o objetivo da Ciência era explicar o porquê das coisas, à base, inclusive, do que há muito se conhece, sob a denominação de "princípios evidentes por si mesmos". So­mente a partir da Renascença, e, mais precisamente, após as desco­bertas de Copérnico, Kepler, Galileu e Newton, passou-se então a aceitar, que a Ciência deveria contentar-se, tão-somente, com o poder explicar o como as coisas acontecem.

Persistia, não obstante, o grande impasse, salientado desde Demócrito e Platão, até Descartes, Leibniz, Spinoza e Berkeley, quanto às limitações dos nossos sentidos e ao abismo que nos separa da essência real das substâncias, mercê da inevitável disjunção preliminar sujeito-objeto.

Prisioneiro de suas percepções, escravizado à precariedade de seus informes sensoriais, o homem tende sempre a modelar a realidade objetiva, de conformidade com esse resíduo de impressões, que lhe chegam do mundo exterior, e cons­trói, com isso, um universo fictício e enganoso, de que vem, por fim, a aper­ceber-se.

Ora, se a aparência do mundo não traduz a verdadeira natureza das coisas, então o conhecimento científico não pode restringir-se a uma simples transcrição fiel e concreta de dados objetivos, apreendidos, tão-somente, através das vigias embaçadas do nosso sensório. Nem será tampouco, é óbvio, mera descrição, clara e breve, de fatos brutos, como o pretendera Ernst Mach.

Conhecer
significa, antes de tudo, saber distinguir e relacionar. Quer isso dizer, que há em todo processo de conhecimento sistemático, uma operação prévia de análise que o espírito realiza, obrigatoriamente, para surpreender a ordem subjacente e tentar descobrir a causalidade material do mundo.

Sem análise, não há Ciência.

Não procede objetar, por exemplo, a esse propósito, que o primeiro momento de tomada de consciência da realidade, vale dizer, o ato inicial de apre­ensão perceptiva do mundo seja eminentemente sintético e englobante, como o sustentam hoje, com boa soma de razões, aliás, as concepções ditas "universalistas", de crescente predomínio em quase todos os departamentos da cultura. Também será de somenos ponderar que a apreensão cognitiva da realidade, no conhecimento espontâneo ou vulgar, se processa habitualmente sob forma indiferenciada e confusa. Pois nem por outro motivo, justamente, é que os dados dessa espécie, à força de serem imprecisos e imperfeitos, não chegam a alcançar o nível do autêntico saber científico.

Assim, pois, somente pela decomposição dos elementos, que integram o espetáculo que a natureza e a vida nos oferecem, ou seja, pelo discernimento dos atributos e predicados, que os identifiquem, reúnam ou separem, é que podemos chegar então à construção de uma nova síntese, que é uma síntese a posteriori, sem dúvida alguma, porém mais alta e mais geral.

Análise e síntese constituem, portanto, dois momentos essenciais de sistema­tização do saber, duas etapas metodológicas distintas de um só processo indis­sociável, mas que é o único, em verdade, capaz de conduzir a certo grau de certeza científica.

A idéia de que saber também quer dizer prever outorga à Ciência a função indeclinável de investigar, quanto possível, e por todos os meios ao seu alcance, o porquê e o como do mundo manifesto. Sua estrutura teórico-lógica é, todavia, uma construção ideal, quer dizer, abstrata. A partir de um mínimo de hipóteses e axiomas, essa construção envolve um conjunto de princípios, proposições e postulados, induzidos, direta ou indiretamente, pela observação de fatos brutos, mas tendentes a abranger, por dedução racional, o maior número possível de eventos integrantes da realidade empírica imediata.

Buscando encontrar correlações entre fatos aparentemente heterogêneos, dís­pares ou desconexos, a Ciência observa, registra, coleciona e intenta reproduzir, experimentalmente, fenômenos isolados e singulares, que aspira, enfim, a uni­ficar em esquemas teóricos viáveis, de modo a tornar inteligível o caos fenomê­nico. Seu objetivo supremo é, entretanto, penetrar o revestimento interno, unitário e imutável desse mundo aparente, efêmero, variável e multifário, que nos é dado contemplar, na atitude espontânea e natural.

Já por aqui se pode verificar que Ciência e Filosofia, esses dois grandes ramos do conhecimento sistemático, nada têm de intrinsecamente incom­patíveis entre si. Representam, pelo contrário, duas vertentes da mesma fonte, oriundas do mesmo manancial. E embora corram, em seus leitos próprios, cumprindo itinerários até por vezes divergentes, não raro confundem-se ao longo do imenso trajeto percorrido, em cujo término, confluem, deci­didamente, para a mesma região. Ambas propendem, efetivamente, a fins idênticos. Seu objeto-material é, pois, o mesmo, ou seja, em última análise, ­tudo que exista de acessível, no campo da realidade, às sondagens da razão e da experiência. Difere então, unicamente, o seu objeto-formal, isto é, a posição especial em que cada qual se coloca em seu processo de aproximação e abordagem da natureza, e, conseqüentemente, o instrumental metodológico, de que uma e outra se utilizam, para perquirir a racionalidade do universo e chegar, enfim, a alguma possível formulação das leis gerais que o regem.

Nutre-se, além disso, a Filosofia, das contribuições específicas das diversas ciências particulares. Estas, porém, por sua vez, se bem que possam trabalhar com autonomia e, até certo ponto, progredir com relativa independência, dentro dos setores estritos de suas respectivas especializações, nem por isso prescindem inteiramente dos recursos e subsídios, facultados pela especulação filosófica.

É que toda pesquisa científica há de partir, necessariamente, de determi­nados postulados gerais, reflexivos e críticos, que têm por fim assegurar, de antemão, ao pesquisador a viabilidade das hipóteses aventadas e que lhe com­pete verificar, bem assim como permitir-lhe ajuizar, acerca da adequação do método a ser utilizado, com respeito à qualidade do material que será objeto da indagação. Tais postulados tornar-se-ão, ademais, indispensáveis para a ulterior comprovação da validez e legitimidade de suas conclusões e descobertas, servindo ainda, finalmente, para a unificação dedutiva de suas proposições, achados e inferências imediatas.

Devemos reconhecer aqui, desta forma, que a Filosofia exerce função normativa e valorizadora dos dados da experiência, coordenando e correlacio­nando as verdades parciais ou relativas, postas em evidência pelas diversas ciências particulares, em seus respectivos territórios de investigações.

Mas, isso ainda não é tudo.

Há, em toda ciência, uma base ontológica implícita, ou mais ampla e precisamente, uma Weltanschauung (visão-de-mundo, ou cosmovisão) compulsória e imanente, que oculta, em seu bojo, uma intuição ou concepção prévia, geral, do Homem, do Mundo, da Vida, do Universo, e que a obriga (a Ciência), em conseqüência, à tomada, consciente ou incons­ciente, de uma posição filosófica fundamental, frente ao objeto de suas indagações.

Quem primeiro veio a postular essa tese, e a desenvolver e demonstrar, com maior penetração e propriedade, foi Karl Jaspers em sua obra Psvchologie der Weltanschauungen, aparecida em 1919, e que, desde então, propiciou a esse psicopatologista germânico, autor de tantas contribuições ao Campo Psi, lugar definido entre as figuras de maior relevo nos quadros da Filosofia contemporânea.

Consoante tal proposição, o homem-de-ciência que ostenta, com orgulho, o seu menosprezo pela especulação filosófica, que apregoa a inanidade das reflexões metafísicas e que, presumindo-se isento de quaisquer compromissos e influências dessa ordem, proclama a supremacia da investigação empírico-objetiva, e a infalibilidade do crivo laboratorial e dos dados concretos da experiência, está se mostrando, com isso, lastimavelmente perdido, em uma densa floresta de equívocos e anacronismos.

É que essa atitude, ao contrário do que aparenta e muito longe de expressar o que almeja, também implica, na verdade, e em última análise, uma profissão­-de-fé metafísica. A definição-de-princípios, que lhe serve de conteúdo, é nada mais que a explicitação de uma Weltanschauung. E, por sinal, de uma Weltanschauung que se ignora a si mesma, que não se dá conta de sua própria existência, e que, afirmando a onipotência da objetividade empírica e experiencial, não se apercebe dos falseamentos e distorções da realidade a que estamos expostos, toda vez que confiamos demasiado no testemunho dos nossos sentidos. Sem vislumbrar sequer o que há de arbitrário e obsoleto nos pressu­postos de que arranca, nas crenças que abraça, nos preceitos que propaga, essa atitude reflete a sobrevivência daquele mesmo velho preconceito, cultivado ao exagero pelos corifeus da chamada "ciência positiva", e hipertrofiado ao máximo pelo monismo naturalista dos fins do século XIX, qual seja o que consiste em conceder-se, aprioristicamente, ao conhecimento empírico-objetivo (ou cien­tífico) o primado soberano e incontrastável sobre o conhecimento reflexivo, especulativo e ontológico (ou filosófico). Trata-se, pois, de um remanescente espúrio e retardatário de antigos esquemas e modelos, que já de nenhum modo se coadunam com o próprio espírito da Ciência moderna.

Assim, ao inverso do que pretende, ao presumir-se uma espécie de sentinela avançada da Ciência, fortaleza inexpugnável às investidas da crítica, revela, antes, essa posição um apego ingênuo e obstinado a paradigmas culturais, específicos de uma etapa histórica já transposta e superada. Traduz, em suma, a estagnação, a injustificável permanência em um tempo-de-cultura, que positivamente não pertence à nossa época, tão profundas e substanciais foram, de fato, as transfor­mações operadas na estrutura mesma do pensamento científico, em toda a primeira metade do século XX.

Que a Ciência não exclui a Filosofia, eis a ilação a que induzem, acerta­damente, essas considerações, e que bem define a tendência, tida por dominante e característica dos tempos atuais. Negá-la era apanágio do cientificismo do século XIX, que imaginava então poder a Ciência repudiar, impunemente, a Filosofia, sem atentar em que, com isso, cedo ou tarde voltaria a ser, por ela, forçosamente, reabsorvida e dominada. Ao invés de querer renegar a Filosofia, a Ciência moderna busca deliberadamente amparar-se no pensamento filosófico, reconhecendo a validez geral de suas fundamentações e o precioso concurso dos seus ensinamentos, para a penetração e captação transfenomenal da realidade.

Por isso, não só a Epistemologia como também, a Ontologia e a Axiologia estão sendo vistas, presentemente, pela maioria dos grandes vultos, representativos da Ciência contemporânea, como legítimos campos de estudo, dignos do melhor apreço, e de que promanam conhecimentos, não apenas úteis, mas em verdade inapartáveis do genuíno saber científico.

Aí está do que decorre, em primeiro plano, essa tão acelerada "ressurreição da Metafísica" a que temos assistido em nossos dias, o que, entretanto, não significa, está bem visto, nenhum recuo ou retrocesso da Ciência. Até porque, cumpre frisá-lo urgentemente, o que se entende hoje por Metafísica é já qualquer coisa muito distante daquelas especulações e devaneios mais ou menos inconse­qüentes, em que tanto se compraziam os escolásticos e seus descendentes, acerca da natureza supra-sensorial ou extra-material de uma realidade, toda concebida em termos estáticos e povoada de seres sobrenaturais, eternos e antropomórficos, responsáveis pelos destinos do mundo. A Metafísica moderna é, ao contrário, um modo de conhecimento eminentemente dinâmico e ativo dos seres e das coisas, em seu incessante devenir.

Essa "ressurreição da Metafísica", é, antes, índice expres­sivo do alto nível de amadurecimento espiritual, a que logramos atingir, e isso, sobretudo, do enorme e espetacular desenvolvimento e aperfeiçoamento científicos da nossa era.

Ante a impossibilidade de eliminar a Metafísica, o reconhecimento de sua necessidade se impôs por toda parte, fazendo-se sentir sua presença até mesmo nos círculos neo-positivistas mais intransigentes. Meyerson o exprimiu, há muitos anos, ao advertir-nos, parafraseando Aristóteles, de que "o homem faz metafísica como respira, isto é, sem querer, e, no mais das vezes, quase sem saber que o faz".

A grande verdade, porém, é que o despertar dessa consciência filosófica obedeceu, fundamentalmente, à exigência imperiosa e inadiável de uma revalo­rização da pessoa humana, em toda a sua plenitude e transcendência.

Dir-se-ia que tendo adquirido, enfim, uma compreensão mais clara e exata de sua própria condição, perdidas as frágeis "certezas" de que se julgava possui­dor, o Homem se viu novamente presa de seus velhos anseios e inquietudes. Desamparado, sentira-se então como que repentinamente apoderado por um estranho e catastrófico sentimento de angústia cósmica, ante os enigmas concretos, que se lhe deparavam. Entreviu, em um relâmpago, toda a singularidade de sua posição na natureza, a infinitude de suas possibilidades reais, dentro da finitude de sua existência individual. Percebeu mais ainda, que de qualquer dos ângulos de que fosse ele próprio analisado e estudado – e por mais que o fosse – sempre restaria aí qualquer coisa a definir e a explicar, esse algo inapreensível a que corresponde, afinal, a sua essência mesma, o todo do ser humano. Não o todo temporal, a totalidade relativa e múltipla, mas o todo absoluto, unitário e permanente do seu existir-em-um-mundo.

Eis, em síntese, o que melhor parece traduzir o verdadeiro sentido da grave "crise do século XX", episódio de que se originou todo esse movimento de renovação do espírito e da cultura. Nos tempos modernos, graças ao qual, Ciência e Filosofia logram hoje harmonizar-se, em seu esforço comum, para a conquista de uma visão mais ampla, generalizadora e integradora dos fatos da realidade.

Escusado é salientar quão longe estamos, presentemente, daquelas insinuações aleivosas e apressadas, tão insistentemente veiculadas a princípio, a esse respeito, inferências sofísticas que mal podiam encobrir ou mascarar a intenção, a serviço do qual se colocavam, intenção jamais confessada, é certo, mas onipresente, de clamar pelo urgente retorno do pensamento especulativo à maneira dogmática de "filosofar", que representa, afinal, esta sim, a negação de toda filosofia.

Altamente significativo, a favor do que temos sustentado, é que, embora tal movimento se tenha originado no âmbito das ciências físico-ma­temáticas, coube, de fato, e precisamente, às denominadas Ciências do Homem, a posição de vanguarda na consolidação do consórcio fecundo e construtivo, em que hoje se aliam, pacificamente, Ciência e Filosofia. Daí que tenha passado a pertencer então à Psicologia, que é a disciplina básica de todo grupo, matéria essencial para o conhecimento antropológico, a função de estabelecer e resguardar o enlace, o vínculo, entre as ciências naturais e as ciências culturais, entre a Bio­logia e a Sociologia, entre a Antropologia e a História, entre a Física e a Metafísica.


Notas:

1. Este artigo se complementa com o, da Seção de Artigos da RedePsi, "Diretivas…"

2. A bibliografia, como sempre, está à disposição dos interessados.

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