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Tópicos sobre Karl Jaspers

Introdução

Karl Jaspers (1883-1969) trabalhou na Clínica Psiquiátrica de Heidelberg de 1908 a 1915, período que teve extraordinária importância para o resto de sua vida.

Desenvolvimento

Participava nas pesquisas de um grupo de estudiosos dos problemas práticos apresentados na clínica diária. Estes problemas não eram apenas médicos, mas também sociais, jurídicos e pedagógicos. O campo da psiquiatria achava-se, então, totalmente dividido e confuso. Jaspers tinha a sensação de viver em um universo onde as teorias divergiam até ao infinito e em uma desordem absoluta. Um dia atreveu-se a falar: "Os psiquiatras devem aprender a pensar". Jaspers descobriu pouco depois que a confusão resultava fundamentalmente da natureza daquilo que estava em discussão, o próprio objeto da psiquiatria, isto é, o homem, não só, e nem principalmente, o seu corpo, mas também a sua alma, a sua personalidade, o seu ser mesmo. De um lado, afirmava-se dogmaticamente, que as doenças mentais eram doenças do cérebro; do outro, que elas eram doenças da personalidade. A psiquiatria parecia estar desprovida das categorias indispensáveis às ciências humanas.

Em 1911, Jaspers foi convidado a escrever uma psicopatologia geral. Além de sua experiência clínica, foi buscar na fenomenologia de Husserl o método descritivo, por ele chamado inicialmente psicologia descritiva.

Julgava ser possível e útil conhecer, como fenômenos de consciência, as experiências subjetivas dos doentes, experiências de que eles poderiam oferecer descrições claras, compreensíveis, identificáveis. A fenomenologia foi aqui utilizada como método científico. Por outro lado, Jaspers inspirou-se em Dilthey, que havia contraposto à psicologia explicativa uma outra psicologia chamada descritiva e analítica. Jaspers apropriou-se deste segundo método, dando-lhe um nome, que se tornou clássico, de psicologia compreensiva. A distinção entre psicologia explicativa (erklärende Psychologie) e psicologia compreensiva (verstehende Psychologie) é hoje fundamental.

Para Jaspers, esta distinção era essencial, e não só em psiquiatria. Aqui ela salvaguarda a pureza dos conhecimentos científicos, a autenticidade da relação médico-paciente, o respeito pelo outro como existência sempre possível. Deriva também das descontinuidades essenciais que a sua filosofia pôs em evidência entre os diversos modos do englobante, essas cisões decisivas entre métodos e perspectivas dentro do saber objetivo, essas fissuras que, não permitindo totalizações e absolutizações ilegítimas, salvam o mundo ético e existencial da liberdade. A compreensão psicológica estabelece o encadeamento dos fenômenos psíquicos, valendo-se, por exemplo, dos motivos. Graças à experiência subjetiva de quem compreende, poder-se-á notar como as impressões geram estados afetivos, os estados afetivos, expectativas, visões imaginárias, temores. A explicação psicológica, pelo contrário, estabelece um nexo de derivação causal entre a excitação de centros nervosos e um movimento, alternância de memória e esquecimento, de fadiga e recuperação de forças etc.

Alguém afirmou que a compreensão psicológica também faz uso do nexo causal, mas que se trata, neste caso, de uma causalidade interna, enquanto a explicação recorre a uma causalidade externa. Mas só esta última merece rigorosamente tal nome. Causalidade interna não passaria de uma metáfora. A natureza do nexo é aqui totalmente diferente: trata-se de uma compreensão genética, por simpatia ou mimo, mediante a qual nos situamos no próprio âmago dos processos psíquicos. É aqui que a psicologia é específica. Nos métodos objetivistas, que, aliás, desempenham um papel indispensável e possuem real valor, caso se estude, por exemplo, a memória, a percepção, a capacidade de trabalho, etc., em suas relações com os dados fisiológicos, não se procura nunca compreender.

Considera-se, em geral, o mecanismo psicofísico como um ser sem alma e estudam-se as suas funções. Poder-se-ão obter deste modo, pela experiência e pela estatística, resultados exatos. Mas não se poderá nunca responder às questões levantadas pela psicologia compreensiva. As duas orientações são legítimas. Mas têm fins muito diferentes. O erro se origina quando uma pretende tomar o lugar da outra e extrapolar seu domínio.

Jaspers quis, sobretudo, denunciar os ensaios em que a explicação dissimulada a falta de um verdadeiro conhecimento, particularmente as teorias que, em psiquiatria, desempenham um papel importante e ambíguo. "As teorias psicológicas, afirmava, são baseadas na analogia com as teorias das ciências físicas, mas nunca puderam atingir a mesma condição". Por que? Em psicologia não se pode falar de um saber que se desenvolva de forma contínua e possa conduzir a dados realmente determinantes dos fenômenos mentais. Nunca alguém pôde realizar em psicologia uma verdadeira pesquisa em comum, obedecendo ao método de verificação e refutação e rebuscando constantes exemplos contrários à hipótese para chegar aos resultados das experiências definitivas. Em realidade, a psicologia só mantém com as ciências da natureza, meras analogias, relações metafóricas, sendo permitidas algumas verossimilhanças, mas ficando campo aberto para outras hipóteses, jamais rigorosas, jamais verdadeiramente verificáveis. A única atitude honesta é, portanto, a de preservar a abertura do espírito buscando em cada teoria as probabilidades parciais que ela oferece à verdade científica.

Por isso, Jaspers, em sua psicopatologia, procurou recensear e expor sistematicamente as teorias existentes, apresentando-as como outras tantas tentativas de descrição mais ou menos metafórica, do que como tal, estaria fora do horizonte do cognoscível. Queria abarcar com o olhar a totalidade das imagens possíveis, sem se deixar prender por nenhuma. Não exclui nenhum método, por pouco que ele servisse para manifestar algum dos aspectos do real. Cada teoria, usando de métodos próprios, se esforça por compreender o homem em sua totalidade, mesmo se tratando de constituição, caráter, temperamento, estrutura fisiológica ou unidade mórbida. Cada uma é mais ou menos fecunda, mas jamais a unidade alvejada é objetivamente apreendida. O homem permanece inacabável, quer como consciência de si, quer como objeto da pesquisa do investigador. Ele é sempre mais que aquilo que sabe de si mesmo, mais que aquilo que outrem pode saber a seu respeito. O fio condutor era, portanto, compreender os métodos como meios de avaliar o conhecimento e tornar clara a situação de fato da psicopatologia.

Jaspers não se interessava pelos métodos e teorias senão na medida em que estes levavam a pesquisa a conhecimentos positivos. Não convinha falar de natação antes de deixar a margem. Só de passagem a diversidade das aproximações fazia surgir a diversidade dos chamados fatos, dados positivos. Mesmo então era necessário aprender a pensar. Segundo Jaspers, é essencial para um clínico que ele não perca de vista a infinitude irredutível de cada ser humano e, conseqüentemente, o respeito que lhe é devido, nem mesmo quando este ser humano for psiquicamente doente. Não se faz o balanço científico de um homem. Todo o doente é ainda inesgotável e guarda seu mistério, seja ele o mais escasso, ou a mais frágil esperança.

Em psiquiatria não se evidenciam progressos espetaculares como aqueles que, em medicina, alongaram a vida vinte ou trinta anos, nos últimos tempos, fazendo recuar a dor. Certas interpretações das neuroses apresentam-nas como processos físicos ou como processos psíquicos concatenados segundo uma necessidade mecânica; sendo assim, elas são submetidas a critérios científicos e os seus erros podem ser demonstrados. Mas entremeia-se uma espécie de fé, cujo conteúdo é assim explicado por Jaspers:

1. Tudo quanto acontece ao homem, tem um sentido. Ora, quando se restringe este sentido a um único plano, absolutizando-o, totalizando-o, recorre-se a uma visão global (Weltanschauung), onde tudo se transforma em símbolo de tipo traduzível. A partir de certos sintomas de histeria, por exemplo, ou de outros distúrbios, estende-se a interpretação a todos os fenômenos mórbidos e à biografia completa. Desde então, as interpretações e contra-interpretações poderão se multiplicar até ao infinito. Os critérios do verdadeiro e do falso se perdem. Não há mais ciência.

2. Afirma-se que o método permite um conhecimento total da própria substância do homem antes da sua divisão em corpo e alma. Este totalitarismo exclui a ciência. A liberdade objetivada já não é liberdade.

3. A doença (não obstante o amoralismo de princípio) converte-se em uma espécie de culpabilidade. Uma filosofia deformada, de conseqüências inumanas, altera o sentido da assistência clínica.

4. Concebe-se, mais ou menos conscientemente, um estado humanamente perfeito que se chama saúde. Proclama-se a unidade do homem, da ciência, da medicina, mas, na realidade, trata-se de uma filosofia, implícita, turva e confusa que exige que o verdadeiro senso crítico se submeta a artigos de fé duvidosa.

5. Disso tudo derivam conseqüências suspeitas: é freqüente o psicoterapeuta intervir ativamente em decisões que resultam aparentemente, por exemplo, um divórcio, um compromisso revolucionário, etc., apresentados como saída para um conflito espiritualizado.

Nestes fatores de fé existe, segundo Jaspers, uma verdade, mas sob formas deturpadas. É que para o clínico (como para quem quer que tenha de lidar com o ser humano) a ciência aprendida e aplicada não basta. Entra em jogo a sua personalidade ética que conta mais que a sua ciência. Esta é para ele um instrumento ao serviço daquilo que soube fazer de si, educando-se em nível filosófico e religioso. Jaspers cita: "Não se pode levar ninguém mais além do lugar onde se está".

Segundo Jaspers, o processo existencial que tende a ver claro em si, e a conquistar a liberdade, agindo interiormente sobre si, não se realiza adequadamente perante outrem, se este não lhe estiver ligado por uma comunicação existencial que implica laços duradouros ao longo da sua vida e o devir de cada um dos dois sujeitos relacionados. Faltando isso, este processo deverá se consumar solitariamente, com a ajuda da tradição dos filósofos, dos poetas, dos sábios, e não graças às técnicas de uma análise levada a efeito por um especialista. Jaspers acentua que neste ponto não pode haver meias-medidas no julgamento. Não é mais questão de ciência unicamente, mas de razão e liberdade.

A obra de Jaspers é "uma meditação racional nos confins da condição humana".

"Uma meditação…" – e não reflexão, sondagem, ou pesquisa, porque as operações do pensamento que tocam os confins, não concernem só a estes, mas também à existência de quem pensa, à sua maneira de ser um sujeito pensante e à sua possível liberdade.

"racional… " – porque esta não se serve nem das experiências de ordem afetiva (emoções, sentimentos, aspirações), nem de uma Revelação, mas dos claros esforços da razão. Esta razão (Vernunft) se apresenta como algo ativo, incansavelmente tensa em direção a uma verdade que fica sempre acima das suas possibilidades.

"nos confins…" – porque seja qual for o domínio em que o pensamento se exerce, ele irá até os limites onde as condições de exercício desaparecem e o malogro o impele ao salto, seja de volta à sua origem, à existência, seja para além dos seus limites, à transcendência.

"da condição humana." – porque, aqui, o pensamento não esquecerá por um só instante que não é pensamento absoluto, de um sujeito absoluto, mas o pensamento de um ser humano situado no tempo e no espaço e, portanto, historicamente condicionado e comprometido. Revela-se assim ao mesmo tempo essencialmente ligado à relatividade do seu universo e voltado ao absoluto pela sua origem e fim.

Algo do glossário jasperiano:

Objetividade – é aquilo que a consciência desperta do homem encontra primeiramente em todos os sentidos, ao redor: uma dada realidade que ele chama mundo. Este mundo, receptáculo inesgotável de dados que se lhe impõem, de fatos que ele constata ao mesmo tempo, que os outros homens, é o mundo que constitui de início para ele o conjunto de tudo quanto existe, o ser. Esforça-se por explorá-lo, por conhecê-lo tal qual é, em sua objetividade. Procura eliminar do seu conhecimento toda a particularidade ligada aos seus pontos de vista, à sua situação, aos seus interesses. O mundo é para ele o ser, justamente na medida em que não depende dele ou a ele se impõe como aos demais. Sendo assim, a objetividade é muito mais que uma exigência científica: ela possui um caráter ontológico.

Totalidade – justamente por este motivo, o homem que busca o ser na configuração do mundo precisa encontrar uma totalidade que englobe todos os seres particulares que nele se apresentam. Historicamente, a questão: "que é que existe?", "o que é o ser?" é muito antiga. Voltados para o mundo que os rodeavam, os pensadores responderam: é a água, o fogo, o ar; é a matéria, os átomos, a vida, o espírito, etc. Mas, cada uma destas respostas implicava a escolha de uma realidade particular do mundo, de um certo dado objetivo, para fazer disso "o ser". O pensador não escapa, não pode escapar a esta característica essencial da vida pensante. O sujeito que pensa encontra-se em face de uma realidade, a realidade-objeto, que se esforça por erigir em totalidade. Ele se coloca, portanto, fora dessa pretendida totalidade. Mais ainda, a maneira como ele interroga o mundo acerca do ser, o método de pensamento de que se serve para obter uma resposta, suscitam no mundo descontinuidades insuperáveis, por exemplo, entre o inerte e o vivente, entre o vivente e o espírito.

Cisão sujeito-objeto – o pensamento humano, eterno prisioneiro da cisão sujeito-objeto, que ele mesmo cria e é, ao mesmo tempo, sua condição essencial, nem pode renunciar à totalidade nem alcançá-la. Uma totalidade que não fosse nem sujeito nem objeto, que englobasse os dois termos, única a merecer o nome de ser, escapa-lhe. É do fundo deste englobante inatingível que surge a cisão humanamente criadora do sujeito e do objeto. Mas, para o pensamento, ela é uma cisão insuperável. Se a objetividade, cujo sujeito devaneia quando trata de descobrir no mundo a totalidade do ser, está irremediavelmente ligada à subjetividade e dela dissociada, se o mundo, com totalidade, é assim negado, o pensamento é afastado para outra tarefa bem diferente. Perdida a esperança de atingir o mundo em si, que seria o ser, o pensamento deverá esclarecer a sua própria situação, em relação à qual se constitui a objetividade do mundo. Ora, esta situação se esclarece pela própria experiência dos limites, contra os quais esbarra a busca da totalidade do mundo como suposta totalidade do ser.

Malogro de uma ontologia – o pensamento jamais descobre o englobante do ser. Este apenas desponta no insucesso dos limites. Pode dizer-se que a filosofia de Jaspers é uma tentativa que visa a tornar explícito aquilo que nos cientifica do ser e da nossa relação com o ser: o malogro de uma ontologia. O sujeito se acha, portanto, empenhado, não na descoberta de um mundo unificável cuja totalidade seria o esperado, mas na de perspectivas descontínuas, irremediavelmente inacabadas e múltiplas. Como compreender, a partir daí, o que ele mesmo é e onde está em relação a um mundo assim fracionado? Em certo sentido, ele se encontra situado em qualquer parte do mundo que perscruta, pode fazer de si mesmo, do seu corpo e da sua consciência, objeto de estudo, conforme esta ou aquela perspectiva adotada em sua sondagem. A data do seu nascimento faz parte da cronologia geral da humanidade, da terra, do universo; o seu corpo ocupa um lugar do espaço comum, está composto de matérias químicas, tem peso como todos os demais corpos; a sua consciência obedece às condições psico e sociológicas gerais. Mas, em outro sentido, é em referência a ele como sujeito que se articulam e estruturam as múltiplas perspectivas do mundo. É o ponto de onde ele observa e o momento em que pensa que conferem às perspectivas aquela coerência, graças à qual a palavra mundo tem um sentido.

Assim, as leis gerais que o sujeito consolidou, orientando-se através das múltiplas perspectivas descontínuas do mundo, e a que, como particular, se acha também subordinado, se unem nele, visto ser ele que as pensa e conhece. Mas, enquanto as pensa e conhece, ele deixa de ser um caso particular dessas leis gerais. Em contraste como o abstrato da lei, ele é o cada vez único (das jeweils Einzige).

Existência – o termo existência não tem o mesmo sentido para todos os filósofos considerados como pertencentes ao movimento do existencialismo ou filosofia da existência. Daí resultaram não poucos mal-entendidos. Para Jaspers, em primeiro lugar, a existência não pertence à ordem dos fatos, mas da liberdade. Eis porque Jaspers fala de preferência da existência possível. Esclarecer a existência não é adquirir um saber, mas suscitar a liberdade, aumentar as suas possibilidades, levá-las a uma atualização autêntica. É submeter a uma crítica restritiva os dogmatismos de todo o gênero que pretendam abafá-la sob sua apodicticidade, sua universalidade, exclusivismo e univocidade das suas evidências ou certezas. É também fixar à existência a sua verdadeira natureza, seu sentido, seu objetivo, impedi-la de pretender uma universalidade impessoal ou de ceder aos caprichos do arbitrário.

O incondicionado e a transcendência – se o conhecimento de quem procura orientar-se na objetividade do mundo se submete às condições da verdade necessária ou apodíctica (zwingende Wahrheit), a existência possível, essa, única, concreta e concretamente situada, se enraíza em uma verdade diferente: o absoluto ou, caso se prefira, o incondicionado (das Unbedingte). A existência não é possível senão em face da transcendência, a qual só tem sentido pela existência. O absoluto projeta-se no tempo pelo ato livre, historicamente situado no seio das realidades empíricas e das circunstâncias particulares. Mas este ato tem outra origem e o seu verdadeiro lugar está alhures.

A existência como possível liberdade não se criou a si mesma. Ela é para si mesma uma dádiva da transcendência. O fato de o homem partilhar, pela sua liberdade existencial, do absoluto, não lhe dá nenhuma auto-suficiência. Pelo contrário. A liberdade vive da dependência em relação à transcendência, que é sua origem. A dependência do absoluto libera-a das necessidades relativas. Sartre pensa que, se Deus existe, não existe a liberdade humana. Para Jaspers, é o contrário: sem vínculos com a transcendência, não existe liberdade. A partir da certeza eterna do "eu sou", à qual, todavia, não pode atribuir qualquer conteúdo objetivável, a existência é fonte de sentido e de atos incondicionados.
Assim, por exemplo, quando Giordano Bruno preferiu a fogueira à negação de uma evidência totalmente científica e racional, a sua escolha não foi racional, mas, na verdade, existencial. Se o homem podia saber o que é o eu, o sujeito, como conhecia as realidades objetivas, saberia igualmente o que são a verdade e a evidência. Mas, verdade e evidência perderiam logo o seu sentido como valores, como convicções existenciais da falta de liberdade.

Metafísica – para Jaspers, metafísica é a tentativa do pensamento se esforçar em conhecer a origem de sua existência, isto é, a transcendência. O pensar metafísico é um pensar surpreendente. Visto que este pensamento visa à transcendência e que a esta, sendo o englobante do sujeito e do objeto, não pode ser tomada por objeto, Jaspers se encontra aqui em uma situação análoga à de Kant, que tentava conhecer o númeno do qual nada mais se pode saber senão que é impensável. Impensável por essência, por definição constitutiva, e por função. Para compreender Kant neste caso, seria preciso concordar em segui-lo, seja no correr das frases que parecem contradizer o seu intento essencial, seja através das palavras que ora designam uma coisa, ora outra e, por vezes, até o contrário daquilo que conviria entender. Assim, a expressão coisa-em-si é, no conceito kantiano, uma contradição nos termos: o em-si não pode ser em nenhum caso uma coisa. Mas o que a linguagem, pela violência que lhe é feita, deve fazer compreender é justamente tal impossibilidade.

Jaspers faz o mesmo. Não poderia deixar de fazê-lo. Vemos apenas nele dois aspectos diferentes. O primeiro é que esta dificuldade insuperável se torna um dos termos da sua reflexão metafísica, ao passo que Kant se debateu sempre com ela sem nunca, ou quase nunca, a tematizar. O segundo é que o método de exposição de Jaspers é menos estaticamente lógico que o de Kant. É itinerante, avança. Conduz o leitor por vias múltiplas até ao ponto em que não só constata a impossibilidade lógica, como também faz a experiência do limite e do malogro. Jaspers recorre constantemente à via negativa, uma via que exige empenho constante que é necessário realmente seguir, e cujas operações intelectuais é forçoso levar progressivamente a termo. Se a existência for efetivamente posta em jogo nestas operações, então a experiência do limite lhe revelará algo da transcendência. Este é o pensar metafísico.

A fé filosófica – tal como aparece em toda a obra de Jaspers, ela é, simultaneamente, o que pode haver de mais frágil e de mais invulnerável, mas em um duplo sentido. Não se vale de nenhum estatuto comunitário, nenhuma autoridade, nenhum livro sagrado ou revelado, nenhuma instituição. Não dispõe de qualquer meio de coação, seja ele, uma simples prova racional. Não pode reivindicar para si a mínima evidência científica. É, portanto, incapaz de ditar, com firmeza impessoal, uma conduta que se suporia a única correta, e de justificar um programa de ação ou ordem que obrigassem a todos. Entretanto, é ela que ilumina o outro lado do real, é nela que a comunidade desunida pode encontrar as suas bases, a autoridade abalada o seu fundamento, a conduta moral as suas raízes, a planificação os seus fins. A própria racionalidade científica é dela que tira a força de sua evidência. Todas essas realidades são no mundo bem mais poderosas do que ela, e se perderia, se tentasse apropriar-se da sua força e do seu prestígio. Mas é ela, em contrapartida, que esclarece a sua origem, o seu sentido, os seus limites, e que pode tornar um homem inabalável firmando-o acima de qualquer receio.

Por fidelidade a esta fé, Jaspers jamais deixou de afirmar, ao longo de sua vida, a mais indomável independência em relação a toda a forma de adesão confessional, fosse a uma comunidade religiosa, uma autoridade consagrada ou um livro tido como o único. Mas esta independência absoluta diferia da dos agnósticos em dois aspectos essenciais. Primeiro, longe de se basear na auto-suficiência da razão, ela hauria a sua força na submissão última à transcendência, ao silêncio do ser. É a plenitude deste silêncio que Jaspers defendeu contra toda a Revelação. Depois, a sua atitude de recusa em relação às diversas confissões institucionais, não foi nunca uma ruptura. Jamais interrompeu o seu debate essencial, o seu esforço por se comunicar com aqueles cuja fé em uma Revelação lhe parecia autêntica.

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Algumas das Obras de Jaspers em português e em espanhol

Esencia y Crítica de la Psicoterapia, 1959 – Entre el destino y la voluntad, 1969 – Los Fundamentos del Filosofar, 1957 Genio y Locura, 1961 – Introdução ao pensamento filosófico, 1976 –  Conferencias sobre Historia de la Filosofia., 1972 – Psicopatologia Geral, 2 v., 1973 – Filosofia da Existência, 1973 – La Filosofia desde el punto de vista de la existencia, 1975Escritos Psicopatológicos, 1977 – Origen y meta de la Historia, 1980 Donde va Alemania? 1993 – O médico na era da técnica,  1998 – La fé filosófica ante la revelación, 1968 – Iniciação Filosófica, 1981Strindberg y Van Gogh. Análisis patográfico comparativo, 1986Los grandes maestros espirituais de Oriente y Occidente, 2001.


Nota: Este artigo é uma adaptação do texto de Jeanne Hersch, "Karl Jaspers", editado pela Universidade de Brasília.

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