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Revisão: Alterações da Cognição: (b) Memória – parte I

Introdução psicológica

Segundo G. Olerón, o termo memória compreende "um conjunto de ati­vidades que integram processos biofisiológicos, assim como psicológicos, os quais não se podem produzir atualmente senão porque certos acontecimen­tos anteriores, próximos ou distantes no tempo, modificaram, de maneira per­sistente, o estado do organismo".

Os livros de psicologia indicam que em todo ato de memória existem três fases:

1) fase de aquisição, através da qual o indivíduo adquire novos conheci­mentos, em virtude da capacidade de fixar o fato vivido; não se pode reduzir esta fase a um simples ato perceptivo, pois a maior parte daquilo que é vi­venciado consiste em atividades mais ou menos complexas "que se desen­volvem por ocasião de repetições sucessivas" daquilo que é captado de ma­neira intuitiva;

2) fase de retenção, que não tem limites no tempo, mas que compreen­de o decurso no qual o que foi memorizado se acha conservado de modo la­tente;

3) fase de reativação e de atualização do material adquirido, que pode dar lugar a atos mnemônicos observáveis.

Lange, ao estudar as funções mnêmicas, estabelece a seguinte classifi­cação: "Na memória diferenciamos, em primeiro lugar, a memória no sentido estrito, como a soma de todas as lembranças existentes e as aptidões que determinam a extensão e a precisão dessas lembranças; em segundo lugar, a capacidade de fixação, que é a função que acrescenta novas impressões à memória, graças à qual é possível adquirir novo material mnemônico, e, fi­nalmente, a capacidade de evocação, ou reprodução, pela qual revivem os traços mnêmicos e dispomos livremente do material de nossa memória".

A memória propriamente dita é considerada por alguns psicólogos como um processo puramente fisiológico. Enquanto a capacidade de fixação e a evocação das lembranças são tidas como atos psíquicos, pelo fato de serem vividos pelo indivíduo.

Wernicke designa sob o nome de capacidade de fixação a aptidão para adquirir imagens mnêmicas e representações novas. A memória de fixação constitui apenas uma premissa para o acréscimo e a complementação de nos­sas recordações; porém, não nos oferece a verdadeira medida da capacidade da memória.

A memória de evocação, segundo Kraepelin, abrange, sobretudo, o con­tingente de imagens anteriormente adquiridas e é determinada pela força de retenção das impressões passadas.

A condição indispensável para que se estabeleça uma lembrança é a com­preensão do objeto observado, condição essa que depende da atenção e do interesse. Kraepelin considera que a lembrança pode ser conservada mais tem­po quando se percebe claramente a impressão original e quanto mais nume­rosas forem as suas ligações com o resto do conteúdo da consciência; em outras palavras, quanto maior tenha sido o interesse despertado no indivíduo. As lembranças perduram mais tempo quando são reforçadas pela repetição.

As pesquisas fisiológicas de I. P. Pavlov demonstraram que a fase cen­tral nas funções da memória é a formação e o fortalecimento das ligações temporárias. Tais ligações se constituem à base dos reflexos condicionados e incondicionados, formando-se também por influência dos reflexos condi­cionados elaborados anteriormente. "Os excitantes do segundo sistema de sinalização – as palavras ouvidas ou vistas – entram em ligação com os tra­ços das excitações anteriores no primeiro e segundo sistemas de sinalização. Os laços são mais fortes quando é combinada a sua repetição rápida e quan­do o córtex dos hemisférios cerebrais possui suficiente excitabilidade e mo­bilidade dos processos nervosos fundamentais. É fora de dúvida que nas fun­ções da memória desempenham importante papel a inibição interna, os refle­xos em seqüência, o desaparecimento e o restabelecimento das ligações con­dicionadas. (…) Esses dados fisiológicos constituem a base da memória" (Gui­liarovski) .


Patologia

As alterações da memória podem ser classificadas em quantitativas e qua­litativas. No primeiro grupo se incluem a hipermnésia, a hipomnésia e a amnésia.

Hipermnésia

Para Bleuler ocorre hipermnésia quando "se evocam lembran­ças casuais com mais vivacidade e exatidão que ordinaria­mente, ou quando se recordam particularidades que comumente não surgem (…)". Pode ser observada nas afecções febris, quando aparecem lembran­ças da juventude ou da infância; na hipnose, como recordação de particulari­dades muito complicadas, com tal exatidão como se as coisas estivessem acontecendo de novo; no sonho surgem, às vezes, com grande clareza, coi­sas que na vigília não poderiam ser reproduzidas, e em casos raros de esqui­zofrenia. Na hipermnésia não existe, na realidade, aumento da memória; ve­rifica-se, apenas, maior facilidade na evocação, limitada habitualmente a pe­ríodos específicos, a eventualidades específicas ou a experiências realizadas com afetos particularmente intensos. Observa-se, nesses casos, que não há seleção, estando diminuídas e perturbadas a fixação e a conservação de no­vos acontecimentos. Os enfermos com hipermnésia podem dar a falsa im­pressão de riqueza de conceitos, mas isso não corresponde à realidade.

O aumento da evocação das lembranças pode ocorrer em estados não patológicos, tais como os que precedem a morte ou quando o indivíduo se defronta com uma situação limite, ou no transe de morte por afogamento. Na literatura psiquiátrica há muitas referências a casos dessa natureza, em que a pessoa se recorda, em poucos instantes, de todos os acontecimentos da vida com absoluta clareza.

Algumas pessoas que foram salvas da morte iminente por afogamento descrevem que "no momento em que a asfixia começava parecia estarem a ver toda a sua vida passada, nos seus mais pequenos incidentes". Relata uma delas que "pareceu ver toda a sua vida anterior desenrolando-se em su­cessão retrógrada, não como simples esboço, mas com pormenores muito precisos, como formando um panorama de sua existência inteira, em que ca­da ato era acompanhado de um sentimento de prazer ou desprazer".

Jaspers descreveu as situações limites. Perante o infortúnio, o sofrimen­to e a morte iminente, a existência humana é lançada em uma situação anímica extrema. Serve de exemplo de uma situação dessa espécie, em que ocorreu uma lembrança panorâmica de toda a vida passada, um caso citado por For­bes Winslow. Em circunstâncias dramáticas, "um homem de lucidez de espí­rito notável atravessava uma linha de estrada de ferro no momento em que um comboio avançava a toda velocidade. Não teve tempo senão de se esten­der entre os carris. Enquanto o comboio passou, o sentimento do seu perigo trouxe-lhe à memória todos os incidentes de sua vida, como se o livro do Juí­zo Final tivesse sido aberto diante de seus olhos".

Admitindo-se que possa haver algum exagero nesses relatos, no entanto não há dúvida de que esses fatos demonstram uma superatividade da memó­ria evocativa, da qual não se pode fazer uma idéia precisa no estado normal.

Deve-se fazer a distinção entre hipermnésia e hipertrofia da memória, cor­respondendo esta última ao que se denomina uma boa memória, podendo ser parcial, como acontece nos deficientes mentais.


Hipomnésia e amnésia

Alguns autores consideram a hipomnésia e a am­nésia como graus de hipofunção da memória. Mira y López define a hipomnésia como "a diminuição do número de lembranças evocáveis na unidade de tempo". A amnésia para o mesmo autor seria "a desaparição completa das representações mnêmicas correspondentes a um determinado tempo da vida do indivíduo".

Bleuler não define a hipomnésia; usa o termo ao descrever a "debilidade da memória" em diversas entidades mórbidas (Korsakov, senis, neuróticos e epiléticos). Em continuação define a amnésia: "As lacunas limitadas da memória se chamam amnésias; a limitação pode afetar o conteúdo (sistema­tizadas) ou o tempo". Em outro parágrafo declara: "A amnésia não precisa ser completa. Há todas as gradações entre o nada absoluto e a lembrança incompleta."

Segundo Jaspers, "denominam-se amnésias as perturbações da memó­ria que se estendem a um período de tempo delimitado, do qual nada ou quase nada pode ser evocado (amnésia parcial), ou ainda a acontecimentos menos nitidamente delimitados no tempo". Em seguida, estuda quatro varie­dades de amnésia: 1) No primeiro grupo – diz Jaspers – não se trata de perturbação da memória. Nos casos de profunda obnubilação da consciên­cia, nada se pode aprender, nada se pode fixar. Nenhum acontecimento atin­giu a consciência, por isso não é possível nenhuma reprodução. 2) No se­gundo tipo, verifica-se que é possível a compreensão durante certo período de tempo (síndrome de Korsakov). porém a capacidade de fixação está pro­fundamente diminuída não sendo possível reter nada. 3) Numa terceira va­riedade, certos acontecimentos podem ser compreendidos passageiramen­te, porém as disposições da memória foram destruídas por um processo or­gânico. É, por exemplo, o que acontece nas amnésias retrógradas, após gra­ves lesões cerebrais, em que desaparecem totalmente as experiências das últimas horas ou dias antes do acidente. 4) Trata-se, no último tipo, de am­nésias extremamente acentuadas, consistindo o defeito em uma alteração da capacidade de reprodução. A memória como a soma das lembranças exis­tentes está conservada, porém o enfermo nada pode evocar. A evocação é conseguida, nesses casos, por meio de hipnose. Essa variedade de amnésia foi estudada por Janet. Nesses casos o comportamento dos enfermos des­perta a atenção. Não agem como alguém que tivesse perdido as disposições da memória, não estão perturbados subjetivamente pela amnésia e a ela são indiferentes. A amnésia é contraditória e pode desaparecer por si mesma, pe­riodicamente, ou pela hipnose.

Nas amnésias parciais, verifica-se o desaparecimento de algumas lem­branças, às vezes restritas a determinadas palavras ou a nomes próprios. Bleu­ler designa esses casos de amnésia sistematizada. Já têm sido publicados casos em que, após um traumatismo cerebral ou como resultado de envene­namento, foram esquecidos os vocábulos de um idioma estrangeiro, que era dominado perfeitamente pelo enfermo. Quando o esquecimento se limita a certos acontecimentos da vida do indivíduo, e este é capaz de rememorar cor­rentemente os fatos da mesma época, Bleuler denomina de "amnésia catatí­mica" .

Bleuler estuda as alterações de natureza deficitária da memória nos or­gânicos sem usar a palavra amnésia, mas, apenas, os termos "debilidade da memória", "hipofunção", "hipomnésia", "desordens da memória". Depois que define a amnésia e começa a empregar o vocábulo, não mais inclui os orgânicos como exemplo, ao contrário do que ocorre em quase todos os ma­nuais de psiquiatria.

Exemplo de hipomnésia – Carpenter cita o caso de um seu amigo de in­fância, que, na idade adulta, se tornou um sábio famoso: "Com mais de 70 anos, era ainda vigoroso; mas a sua memória começou a declinar. Esquecia, sobretudo, os fatos recentes e as palavras pouco usadas. Posto que conti­nuasse a freqüentar o Museu Britânico, a Sociedade Real e a Sociedade de Geologia, não se lembrava dos seus nomes; designava-os pelo termo 'este lugar público'. Continuava a visitar os amigos, reconhecia-os em casa deles e em outros lugares onde costumava encontrá-Ios (como, por exemplo, nas sociedades científicas); não em outra qualquer parte. Encontrei-o um dia em casa de um dos nossos amigos mais antigos, que reside ordinariamente em Londres, mas que estava em Brighton. Não me reconheceu e fez outro tanto quando saímos da casa. A sua memória foi diminuindo de maneira pro­gressiva e morreu de um ataque de um AVC".

Nesta observação, verifica-se o enfraquecimento progressivo das capa­cidades de evocação e de reconhecimento de pessoas, o esquecimento de nomes, mas, o mais significativo é a impossibilidade de identificação de pes­soas quando não se inserem em uma totalidade significativa e em suas inter­relações topológicas. A simples presença de um dos seus amigos não é o ele­mento suficiente para o seu reconhecimento. Para que este tenha lugar é pre­ciso que seja sugerido ou antes ajudado pela impressão total dos lugares em que eles se encontravam habitualmente presentes. A recordação desses lu­gares, fixados pela experiência que se repetiu ao longo da vida, formou ver­dadeiras Gestalten em que a evocação só se tornava possível dentro da con­figuração total.

Descrevem-se os seguintes tipos de amnésia:


Amnésia anterógrada

A expressão amnésia anterógrada é utilizada pela maioria dos autores para designar a amnesia que se refere aos fatos transcorridos depois da causa determinante do distúrbio, co­mo sinônimo de perturbação da fixação. Ocorre nos casos de ofuscamento da consciência, nos estados de agitação, na síndrome de Korsakov. Bumke diz que "o transtorno mais freqüente da memória é o da fixação". Costuma ser devido a uma perturbação da apreensão ou do interesse, mas pode apresentar-se como fenômeno isolado (casos com lesões orgânicas), sendo então devido à diminuição da receptividade do sistema nervoso. A alteração é observada em todas as lesões cerebrais manifestas agudas ou crônicas, se­jam devidas a causas mecânicas, sejam de natureza tóxica. Os doentes com amnésia anterógrada não podem relembrar os fatos recentes, conservando, entretanto a capacidade para recordar acontecimentos do passado mais re­moto. A amnésia anterógrada pertence ao quadro clínico de todos os ofusca­mentos da consciência e não falta em nenhuma demência orgânica. Observa­-se como fato geral que os defeitos pronunciados da fixação se acompanham freqüentemente de fabulações.

Pitres e Mabile publicaram, em 1913, na Revue de Médicine, um caso ilustrativo de amnésia anterógrada pura, cuja observação transcrevemos aqui em seus trechos principais:

Um homem de 34 anos, sifilítico, foi acometido de um AVC. Depois de ter permanecido durante meses em estado grave, que se caracterizou por de­bilitamento físico predominante nos membros do lado esquerdo e por acen­tuada obnubilação da consciência, pouco a pouco recuperou completamente o uso dos membros e em parte o exercício de suas faculdades intelectuais.

Verificou-se então que o enfermo se recordava de sua vida passada, dos acontecimentos aos quais se achava vinculado, dos conhecimentos que ha­via adquirido antes da enfermidade, porém que era incapaz de adquirir e fixar novos conhecimentos. Morreu aos 57 anos, 23 anos depois do ictus inicial, sem que a sua memória recuperasse o poder de aquisição. Dez, quinze, vinte anos depois de sua admissão no hospital, ele imaginava ter entrado nessa mesma manhã, e era tão alheio aos hábitos do estabelecimento, como se ne­le houvesse ingressado momentos antes. Tudo via, tudo escutava, mas não recordava nada do que acabava de ver ou de ouvir. Sua vida mental se dete­ve em 10 de março de 1885, momento exato em que sobreveio o ictus que marcou o início de sua enfermidade.

Eis alguns exemplos típicos:

Perguntamos: – "Que dia é hoje?" – Respondeu: – "Não sei." – "Qual o mês?" – "Não sei." – "Em que ano estamos?" – "Não sei." – "Está bem. Vamos dizê-Io. Preste atenção para não esquecer. Hoje é sábado, 4 de fevereiro de 1899. Repita em voz alta."

Ele repetiu em voz alta: – "Sábado, 4 de fevereiro de 1899".

Deixamos passar 15 segundos, durante os quais tivemos o cuidado de não distrair a atenção do enfermo para assuntos novos. No fim de 15 segun­dos, perguntamos: – "Que dia é hoje?" – Respondeu: – "Não sei." ­

"Qual o mês?" – "Não sei." – "Qual o ano?" – "Não sei.".

Colocamos em sua mão o estetoscópio, explicando-lhe que era um ins­trumento do qual se serviam os médicos para auscultar os doentes. Ele o ob­servou com curiosidade e o manteve em suas mãos. Quinze segundos de­pois, perguntamos que objeto tinha na mão. Respondeu que não sabia.

Repetimos a mesma experiência com um dinamômetro, com idêntico resultado.

Colocamos em suas mãos um jornal e pedimos que lesse em voz alta uma notícia sobre um acidente ocorrido em Rochelle. Cinco segundos depois re­cordava o que havia lido. Trinta segundos mais tarde não se recordava de nada.

Fizemos com que experimentasse um pouco de aloés, que ele achou amar­go. Vinte segundos depois perguntamos se o que lhe havíamos feito provar era doce. Respondeu que não lhe havíamos feito provar nada.

Pedimos que dissesse em voz alta a palavra Paris, cada vez que levan­tássemos a mão. Executamos o gesto indicado de dez em dez segundos. Du­rante 50 segundos ele disse a palavra cada vez que levantávamos a mão. Aos 60 permaneceu silencioso, e como insistíssemos em perguntar-lhe por que não havia continuado, declarou não lembrar em absoluto do que havíamos pedido.

O paciente dizia que nunca havia visto o mar e gostaria muito de vê-Io. Em 5 de fevereiro de 1899, nós o levamos de carro até a porta de Rochelle. Descemos diante do posto de peixe. Ele olhou os barcos de pesca grandes e pequenos amarrados e as pilhas de peixe fresco sobre os bancos do posto. Conduzimo-Io além da porta, sobre o cais do Mail, de frente para o mar. Não pareceu emocionado com o espetáculo. "É exatamente como o imaginei", disse. Voltamos e 4 minutos depois lhe perguntamos se tinha desejos de ver o mar. Respondeu: "Ah, sim, isso deve ser muito bonito. Eu tenho grande vontade de vê-Io". – "Você nunca o viu?" – "Não. Nunca."

Os autores dessa observação salientam que, no enfermo, todas as im­pressões sensitivas e sensoriais eram nitidamente percebidas, porém elas não se fixavam na memória e não constituíam lembranças suscetíveis de revives­cência. Por outro lado, os conhecimentos adquiridos pelo paciente, ante­riores ao início da enfermidade, estavam conservados e podiam ser normal­mente evocados.


Amnésia retrógrada

Refere-se à perda da memória dos fatos ocorridos an­tes de um insulto cerebral (traumatismos cranianos, AVC, ictus paralítico, eclampsia, tentativas de enforcamento, intoxica­ção por monóxido de carbono, embriaguez grave) e que se estende a dias ou se­manas para trás da lesão. Consiste, habitualmente, na perda da memória re­lativa a um espaço de tempo limitado: algumas horas, dias, mais raramente semanas ou anos. Em alguns casos, a amnésia retrógrada pode compreender todos os acontecimentos anteriores da vida do enfermo.

A amnésia retrógrada é observada com mais freqüência nos transtornos mentais senis, após um ictus na aterosclerose encefálica, nos traumatismos cranianos que se acompanham de perda da consciência. Durante a última Guerra Mundial foram registrados casos nos quais, em conseqüência de con­tusões cerebrais graves, os pacientes não podiam recordar as circunstâncias em que se verificaram os acontecimentos. A amnésia retrógrada pode ser re­versível ou irreversível, ocorrendo a regressão a partir dos fatos mais antigos para os mais recentes. Há também tanto mais probabilidade de restauração quanto mais antigo é o fato.

Exemplo – "Uma senhora jovem, casada com um homem por quem se sentia apaixonada, teve durante o parto uma demorada síncope, em seguida à qual perdeu a memória do tempo que tinha passado desde o seu casamen­to inclusive. Lembrava-se com muita exatidão de todo o resto da sua vida até aí. Nos primeiros instantes repudiou com horror o marido e o filho que lhe apresentavam. Desde então, nunca mais pôde recuperar a memória des­se período da vida, nem dos acontecimentos que o acompanharam. Os pais e os amigos conseguiram, pela razão e pela autoridade do seu testemunho, persuadi-Ia de que era casada e tinha um filho. Ela acreditava-os, porque pre­feria acreditar que perdeu a lembrança de um ano a julgá-Ios todos imposto­res. Mas a sua convicção, a sua consciência íntima, permaneciam alheias. Via ali aquelas duas criaturas, mas não podia compreender por que uma era o seu marido e a outra o seu filho" (Ribot).

Trata-se de um caso de amnésia irreparável com extensão apenas retró­grada, relativa ao período de um ano. Diz Ribot que a sua explicação psicoló­gica pode ser encontrada em uma destruição dos resíduos ou em uma impossibili­dade de evocação.

A amnésia retrógrada pode ser psicogênica, em conseqüência de trau­mas emocionais intensos. Nesses casos, a amnésia pode referir-se apenas a determinado período de tempo, limitada a lembranças relacionadas com acontecimentos que despertam angústia. Na realidade, não há esquecimen­to; a dificuldade da evocação consiste em um processo ativo de defesa: o en­fermo não quer relembrar acontecimentos desagradáveis que lhe causam so­frimento. Como bem acentuou Noyes, a amnésia psicogênica não só permite o desaparecimento da memória das experiências insuportáveis, como serve também de artifício para escapar às conseqüências de um ato.

A amnésia psicogênica foi estudada de modo minucioso por Pierre Ja­net. Serve de exemplo o caso seguinte: "Uma jovem senhora apresentou uma crise nervosa durante o parto; em seguida se torna manifesto um singular transtorno da memória: não se recorda de nada a respeito do parto, como também do período da gravidez, nem do seu casamento, incluindo o dia em que este se realizou". Em comentário a esta observação clínica, diz Lersch que, nesses casos, deve ser admitida a confluência de vários fatores intrapsíquicos. Em primeiro lugar, deve-se admitir que o parto constituiu uma expe­riência penosa, a qual, para ser enfrentada, foi necessário vencer grandes re­sistências internas. Por essa razão, a paciente procurou apagar de sua me­mória todos os acontecimentos que se achavam em relação imediata com o mesmo. Mas pode também ter acontecido que o casamento em si mesmo representasse algo contra o qual intimamente se rebelava, e que em sua re­sistência utilizara o processo dramático do parto para expressar-se sob a for­ma da amnésia. "Não se pode colocar em dúvida que essa amnésia está con­dicionada animicamente, porque o que desapareceu da memória foi um setor da vida que mantém uma unidade temática" (Lersch).


Amnesia retroanterógrada ou total

É a que se refere aos fatos ocorridos antes e depois da causa determinante. Trata-se de uma alteração simultânea da fixação e da evocação. Encontra-se nos casos graves de demências orgânicas, de amência e de trau­matismos cranioencefálicos. "Se é de instalação súbita e total, privando o indivíduo da capacidade de compreensão e de orientação no tempo e no es­paço, toma o nome de psicorrexe" (Bumke).

Exemplo clínico – "Trata-se de um homem de 44 anos de idade, ferro­viário, que até a época do acidente gozava de boa saúde. Certo dia, após ter cumprido a sua jornada de trabalho, ao retornar para casa de bicicleta, próxi­mo de sua residência, chocou-se com uma motocicleta. Em conseqüência do choque foi lançado por cima desta última a certa distância. No momento do acidente alguns populares o socorreram. Em presença de sua esposa, que acorreu ao local, o paciente a reconheceu, interrogando-a: "EIsa, onde es­tou, o que aconteceu?" Reconheceu também o médico que lhe prestou os primeiros curativos. Este era o seu médico de cabeceira, que o descreveu co­mo obnubilado, desorientado no lugar e no tempo e com afasia motora. O paciente se encontrava confuso na noite consecutiva ao acidente, porém no dia seguinte a sua esposa observou que ele estava mais lúcido, pois se levantou da cama em dado momento em que não era vigiado, pediu o vaso noturno e urinou. Durante a segunda noite, piorou de tal maneira o seu estado que foi necessário transportá-Io para o Hospital. Foi demonstrado radiologicamente a existência de fratura de crânio na região temporal esquerda. Ao ser dada alta dois meses e meio depois estava bastante recuperado, porém revelava paralisia facial central do lado direito e ligeira dificuldade para encontrar, ao falar, as palavras adequadas. Em seguida apareceram acessos epiléticos ge­neralizados (não jacksonianos).

"O paciente pode dizer exatamente o caminho que seguiu de bicicleta até certo ponto do povoado que se encontra muito distante do lugar onde sofreu o acidente, porém não pode recordar em absoluto o último trecho do caminho, assim como não guarda nenhuma lembrança do próprio acidente nem de nada mais do que ocorreu até que recuperou a consciência no hospi­tal. Do último trecho do trajeto, assim como dos dias transcorridos até voltar a si no hospital não conserva nenhuma lembrança" (Luzitano Ferreira).


Amnésia transitória

Observa-se com relativa freqüência, especialmente na convalescença de enfermidades infecciosas graves, uma síndrome amnésica transitória, que se caracteriza pela incapacidade de fixar os acontecimentos recentes. Os enfermos conservam a capacidade de evocação, porém revelam transtornos da orientação têmporo-espacial, fabulações e perseveração. Além destes sintomas nas formas avançadas, verificam-se empobrecimento e simplificação do pensamento e amorteci­mento da vida emocional, de tal modo que os doentes se mantêm indiferen­tes, apáticos, sem iniciativa, apragmáticos. Em alguns casos, podem surgir síndromes de transição de tipo paranóide-alucinatória.

A síndrome amnésica transitória deve ser considerada, com proprieda­de, como alteração resultante dos transtornos exógenos agudos e não co­mo uma síndrome inserida no curso desses transtornos. Em muitos casos, a síndrome tem duração breve, porém nas pessoas idosas pode determinar o aparecimento de uma demência orgânica.

Exemplo – "Um maquinista de um vapor cai de costas e bate com a nu­ca contra um objeto duro; permanece algum tempo inconsciente. Voltando a si, recupera com bastante rapidez a completa lucidez da consciência. Con­serva a recordação de todos os anos decorridos até o acidente; mas deste momento em diante, a memória deixa de existir, mesmo para os atos estrita­mente pessoais. Chegado ao hospital, não pode dizer se veio a pé, de carro ou de metrô. Acabando de almoçar esquece-se imediatamente do que fez; não tem nenhuma noção da hora, nem do dia, nem da semana. Tenta refletir para responder às perguntas que lhe fazem; não consegue. A sua palavra é lenta, mas precisa. Diz o que quer dizer e lê corretamente. Esta perturbação desapareceu depois de alguns meses" (Laycock).       

Em comentário, diz Laycock que, de modo geral, nos casos de amnésia transitória devida a uma comoção cerebral, verifica-se a recuperação retroa­tiva. "O doente, recuperando a consciência, não perdeu somente a lembran­ça do acidente e do período seguinte; perdeu também a lembrança de um pe­ríodo mais ou menos longo, anterior ao acidente."


Amnésia lacunar

Observa-se, em geral, nos casos de traumatismos cra­nioencefálicos.

Há muitos anos Koempfen publicou esta observação de amnésia lacu­nar, mais tarde reproduzida por Ribot: "Um oficial do meu regimento encontra­va-se em exercícios quando caiu do cavalo, batendo fortemente com a cabe­ça no solo. Houve comoção, seguida de ligeira síncope. Quando voltou a si, tornou a montar a cavalo 'para dissipar uns restos de atordoamento' e conti­nuou a sua lição de equitação durante três quartos de hora com uma grande regularidade. Contudo, de quando em quando dizia ao professor: 'Sinto-me como se estivesse despertando de um sonho. Que me aconteceu?' Levaram­-no para casa.

"Como habitava na mesma casa que o doente, fui chamado a vê-Io ime­diatamente. Estava de pé, reconheceu-me, cumprimentou-me como de cos­tume e disse: 'Parece-me que estou a despertar de um sonho. Que foi que me aconteceu?' Procurei observá-Io de hora em hora.

"Toda vez que voltava para examiná-Io, o enfermo julgava ver-me pela primeira vez. Não se recordava de nenhuma das prescrições médicas que ti­nha seguido até então (banhos, fricções). Em suma, nada existe para ele além da ação do momento.

"Oito horas depois do acidente, o enfermo lembrava-se de me ter visto uma vez. Duas horas e meia mais tarde, ele não esqueceu nada do que lhe foi dito. A memória foi voltando gradualmente.

"No dia seguinte, após uma noite de sono tranqüilo, começou a recordar-­se de alguns fatos, porém tudo quanto fez, viu e ouviu no dia anterior, antes da queda, ignora-o ainda hoje, isto é, não tem conhecimento disso por si mes­mo, mas só por testemunhos."

"Esta perda da memória esteve, como dizem os matemáticos, na razão inversa do tempo que decorreu entre as ações e a queda, e a volta da memória operou-se em uma ordem determinada, do mais longínquo para o mais próximo."

Os casos mais típicos e mais comuns de amnésia lacunar encontram-se na epilepsia, especialmente nos acessos tônicos-clônicos e nas ausências.

Os transtornos qualitativos da memória de evocação denominam-se, de modo geral, paramnésias. Estudam-se neste grupo as seguintes alterações: 1) ilusões mnêmicas; 2) alucinações mnêmicas; 3) fabulações; 4) fenômeno do já visto; 5) criptomnesia; 6) ecmnesia.


Ilusões mnêmicas

As ilusões mnêmicas são constituídas pela formação das lembranças em virtude do acréscimo de elementos falsos ao núcleo da imagem mnêmica, razão pela qual esta adquire o caráter de lembrança fictícia. Como resultado imediato, os enfermos não podem evo­car com fidelidade as suas vivências. Por essa razão muitos deles nos dão informações fantásticas como, por exemplo, que viveram milhares de anos, que têm centenas de filhos ou que tomaram parte ativa nos principais acon­tecimentos da história da humanidade.

É a forma mais freqüente de paramnesia e desempenha importante papel nos enfermos mentais, principalmente na esquizofrenia. Diz Bleuler que "as ilu­sões da memória constituem, freqüentemente, o principal material para a cons­trução dos delírios nos enfermos paranóides". Bleuler inclui nas ilusões mnê­micas as lembranças imprecisas, observadas no alcoolismo agudo e crônico, nos orgânicos e nos epiléticos. Escreve: "Lembranças inexatas e imprecisas costumam apresentar também os deficientes mentais de grau moderado."

Entre as ilusões mnêmicas se incluem os falsos reconhecimentos, obser­vados com freqüência entre os esquizofrênicos. Os enfermos podem identifi­car o médico ou a enfermeira como uma pessoa de sua família, a quem atri­buem o mesmo nome e a quem falam de seus problemas familiares. Não se trata de alteração da percepção e sim de formação da imagem mnêmica, que leva o paciente a identificar uma pessoa desconhecida com um dos seus pa­rentes próximos.

One thought on “Revisão: Alterações da Cognição: (b) Memória – parte I”

  1. Ali Assane disse:

    elogio bastante as pessoas com essa capacidade de desifrar os conhecimentos!

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